quarta-feira, 6 de setembro de 2017

A perigosa competição sino-americana pela hegemonia na Ásia-Pacífico


A perigosa competição sino-americana pela hegemonia na Ásia-Pacífico
A China espera um passo errado de Donald Trump na crise coreana para tirar vantagem. Um erro de cálculo poderá ser o princípio do fim da hegemonia dos EUA na Ásia-Pacífico. E trágico para o mundo.

JOSÉ PEDRO TEIXEIRA FERNANDES
5 de setembro de 2017, 16:28

1. Só é possível perceber a crise da Coreia do Norte no quadro mais vasto da política mundial, marcado pela competição entre a China e os EUA, e da natureza complexa das alianças. Há uma tendência de olhar para esta crise perdendo de vista o quadro da política mundial e esquecendo o que dá consistência às alianças militares: a permanência de interesses estratégicos no longo prazo. Sobrevalorizar o que são conflitos pontuais, ou desentendimentos conjunturais, entre aliados — neste caso, a China e a Coreia do Norte —, não ajuda a perceber a dimensão do problema. Subestimar a especificidade e sofisticação da cultura estratégica chinesa também não. É uma cultura estratégica não obcecada pelo sucesso de curto prazo, como os ocidentais. Contém objectivos nacionais de longo prazo, prosseguidos com determinação e habilidade, por múltiplos meios. No caso da aliança entre a China e a Coreia do Norte, é inadequado vê-la como obsoleta e apenas uma fonte de problemas para o governo chinês. É uma visão superficial do problema: focaliza nos riscos e negligência as oportunidades estratégicas. Uma comparação com outras alianças pode ser um bom ponto de partida para compreender a relação complexa entre a China e a Coreia do Norte. Olhando, por exemplo, para as alianças dos EUA com Israel, ou, talvez melhor, dos EUA com a Arábia Saudita, podemos ver o que está em causa.

2. A China preferia que a Coreia do Norte não tivesse feito o seu último teste nuclear, de uma bomba de hidrogénio, especialmente na altura em que o fez, próximo de uma cimeira dos BRICS no seu território — e nas vésperas do Congresso do Partido Comunista. Tal como os EUA, durante a presidência de Barack Obama, teriam preferido que o governo de Benjamin Netanyahu, do Likud, não tomasse uma atitude de tentar boicotar, por todos os meios, as negociações com o Irão sobre o seu programa nuclear e facilitasse as negociações de paz com os palestinianos. E que a Arábia Saudita não apoiasse — ainda que oficialmente o negue — grupos islamistas-jihadistas no Iraque, na Síria e expandisse o seu perigoso Islão wahhabita, ou que tivesse uma maioria de cidadãos sauditas envolvidos nos atentados terroristas de 11 de Setembro. Isto levou ao rompimento dessas alianças? Iriam os EUA apoiar hipotéticas sanções contra o seu interesse estratégico fundamental? Sabemos a resposta: não. Por que razão a China iria romper a sua aliança — avançando com sanções económicas, que, se quisesse, poderiam mesmo enfraquecer e fazer ruir o regime de Kim Jong-un — quando há interesses estratégicos permanentes que partilha com a Coreia do Norte? Por que razão deveria fazer algo que só favoreceria os EUA e seus aliados na Ásia-Pacífico?

3. Importa compreender a China. Não é União Soviética, que já faz parte da história. Os protestos na praça de Tiananmen, em Pequim, em 1989, foram esmagados. A China não se rendeu à democracia liberal, nem se desagregou com o final da Guerra-Fria. Pelo contrário, tornou-se o grande vencedor da actual globalização, com a sua própria forma de capitalismo autoritário. A Coreia também não é a Alemanha dividida da Guerra-Fria, reunificada em 1990 e integrada na NATO. Não está destinada a ser reunificada sob a esfera de influência dos EUA, tal como aconteceu com a antiga República Democrática Alemã. Isso só foi possível dada a enorme quebra de poder da União Soviética, que acabou por levar à sua desagregação. A China conseguiu evitar uma reunificação da Coreia, quando os EUA estavam no pico do seu poder, durante os anos 1990. Certamente que agora também não deixará de o fazer, se isso implicar esta ficar sob influência norte-americana. Mais: o objectivo último da China é afastar a presença militar e influência política dos EUA da Península da Coreia e na Ásia-Pacífico. É um objectivo estratégico permanente, prosseguido com paciência, determinação e sentido de oportunidade e do qual a China não abdicará nunca.

4. Olhemos agora a questão do ponto de vista da Coreia do Norte. Na sua óptica de manutenção no poder, Kim Jong-un tem todas as razões para não querer abdicar do armamento nuclear. Os exemplos do Iraque e da Líbia são amostras óbvias do que lhe poderia suceder. A confiança que lhe merecem os EUA e Ocidente é nula. O Iraque de Saddam Hussein, que foi acusado de estar a preparar armas nucleares, mas não as tinha, foi invadido em 2003 pelos EUA, com Saddam Hussein detido e posteriormente executado. Quanto à Líbia, Muammar Kadhafi, depois de ter negociado o término do seu problema nuclear com o Ocidente, viu, em 2011, uma coligação entre os EUA, Reino Unido e França, actuar como força aérea dos rebeldes, pondo fim ao seu regime e levando à sua própria morte. Esta total falta de confiança leva a que uma hipotética negociação bilateral sobre o seu programa nuclear esteja destinada ao fracasso. Para os EUA, esse seria o único objectivo aceitável para entrar em negociações. Mas esse é totalmente inaceitável para a Coreia do Norte. Kim Jong-un procura mostrar a credibilidade da sua dissuasão nuclear e obter um reconhecimento internacional do seu status como potência nuclear. Pelo menos, de algo parecido com outras potências nucleares “não oficiais” — Paquistão, Índia e Israel.

5. Para a China, a crise provocada pelo programa nuclear e balístico da Coreia do Norte oferece o potencial de uma "guerra por procuração". Claro que tem riscos para esta, como todas as estratégias desse tipo. Basta recordar o que aconteceu aos EUA, que fizeram guerra por procuração contra a União Soviética no Afeganistão, durante os anos 1980, através dos talibãs, via Paquistão e Arábia Saudita. Mais tarde sofreram os efeitos da estratégia que alimentaram contra a União Soviética, em si próprios. Mas, na altura, a perspectiva de abalar o poder soviético, o objectivo fundamental da sua estratégia na Guerra-Fria, prevaleceu. No caso da China, a perspectiva de ganhos — e o ganho supremo é afastar os EUA da Península da Coreia e da Ásia-Pacífico — justifica não deixar cair a Coreia do Norte. Mais: leva a ultrapassar os problemas que, por vezes, também coloca aos próprios chineses, com o objectivo de tirar proveito do desgaste que provoca aos EUA e seus aliados. Tem sido apontado que seria mau para a China uma nova guerra na Coreia, entre outras coisas, pela massa de refugiados que fugiriam para o seu território. Claro que seria mau. No entanto, também aqui temos de aferir o problema à escala da China. Vinte e cinco milhões, a totalidade da população da Coreia do Norte, seria muito, noutras partes do mundo. No caso chinês, com quase 1,4 mil milhões de habitantes, e um território comparável ao dos EUA, não é um número particularmente significativo. Além do mais, o exército chinês, o maior do mundo, com mais de 2,2 milhões de efectivos, teria capacidade e meios para gerir uma crise na fronteira.

6. Como resolver este impasse? Há, fundamentalmente, três cenários possíveis. O primeiro é deixar continuar a situação, intensificando as sanções económicas e reforçando o dispositivo de segurança, no pressuposto de que a Coreia do Norte não tomará a iniciativa de um ataque militar nuclear, pela represália devastadora que sofreria dos EUA. Mas este é um cenário de continuidade do impasse e de insegurança. Nada indica que leve à queda de Kim Jong-un. Levanta ainda um problema para Donald Trump. Ao entrar no jogo de bluffs e ameaças de Kim Jong-un colocou a sua credibilidade — e a do poder dos EUA — em jogo. Este primeiro cenário poderia ser visto como alguma naturalidade com Barack Obama, ou Hillary Clinton. Donald Trump, com a sua retórica de acusações à fraqueza de Obama e Clinton — e respostas belicosas às ameaças de Kim Jong-un, ameaçando-o com “fogo e fúria como o mundo nunca viu” —, colocou-se numa posição de ter de actuar. Mas como? Ficam, assim, dois possíveis cenários de ruptura. Um é pela via de um ataque armado dos EUA e seus aliados, respondendo a uma qualquer provocação futura da Coreia do Norte, tentando eliminar a sua capacidade nuclear. Para além da sua eficácia ser muito duvidosa, arrisca-se a provocar uma guerra de consequências totais imprevisíveis, mas certamente devastadora. Na pior hipótese, a Península da Coreia seria o que os Balcãs foram para a Europa e o mundo em 1914 — o rastilho de uma confrontação militar generalizada que ninguém queria, mas que acabaria por atingir proporções apocalípticas. Resta um terceiro cenário de ruptura do impasse, através de uma abrangente negociação de paz. Vejamos como poderia funcionar.

7. O cenário seria o de uma negociação diplomática, para além de uma mera negociação bilateral entre os EUA e Coreia do Norte, ou trilateral, entre os EUA, a Coreia do Sul e a Coreia do Norte. Poderia trazer uma paz negociada para a crise da Coreia do Norte. Provavelmente sim. Mas, para além das duas Coreias e dos EUA, teria de envolver e China e também outros interessados influentes, como a Rússia, talvez ainda também o Japão. Exceptuado o já referido cenário de guerra, de consequências imprevisíveis, só a China poderá ter, em quaisquer negociações diplomáticas abrangentes, o papel de desbloqueador do actual impasse. Mas, na óptica da China, só com a satisfação do seu interesse nacional se justificará pressionar, até à exaustão, o regime da Coreia do Norte para um acordo, tomando, se necessário, medidas que de outra forma nunca tomará. Essas, sem dúvida, asfixiariam o regime norte-coreano, como fechar a fronteira, bloquear o fluxo de remessas dos trabalhadores, ou cortar o fornecimento de petróleo. Mas essa paz teria um preço para os EUA. A China iria exigir a total retirada militar dos EUA da Coreia do Sul, em troca de uma pressão decisiva para a desnuclearização da Coreia do Norte. Seria um duro golpe no "Make America Great Again" de Donald Trump, e, pior ainda, na influência norte-americana na Ásia-Pacífico. Colocaria em causa a confiança dos seus aliados quanto ao empenhamento na sua defesa. Ficava a pairar no ar que, sentido os EUA o seu território directamente ameaçado pelo poder nuclear da Coreia do Norte, os abandonavam à China em troco da sua própria segurança.


8. Para parte da opinião pública internacional, Donald Trump parece hoje quase tão perigoso para a paz e segurança como Kim Jong-un da Coreia do Norte. Instalando-se esta percepção, Xi-Jinping e a China já estão a ganhar no objectivo de afastar os EUA da liderança global. O jogo de bluffs e ameaças de Kim Jong-un, replicado por Donald Trump, colocou a sua credibilidade e o poder dos EUA em causa, enquanto garantes de uma pax americana na Ásia-Pacífico. Pela sua retórica, necessita agora de agir, mas só tem más opções. Para além disso, a obsessão em rasgar acordos comerciais — já se retirou do TTP, a Parceria Transpacífico / Trans-Pacific Partnership e agora pretende retirar-se acordo de livre comércio com o seu aliado, a Coreia do Sul (KORUS FTA na sigla inglesa) — criou um desnecessário mal-estar adicional. Logo na pior altura, quando ambos deviam enfrentar, de forma coesa, a grave crise da Coreia do Norte. Também não ajudam as críticas públicas que fez a Moon Jae-in, o Presidente da Coreia do Sul — que é filho de refugiados norte-coreanos da guerra dos anos 1950, e sabe o que são os horrores da guerra — acusando-o de uma resposta demasiado apaziguadora ao teste nuclear da Coreia do Norte. A situação contém grandes riscos para todos os envolvidos, mas a China espera um passo errado de Donald Trump para tirar vantagem. A esperança chinesa tem fundamento e sentido estratégico. Um erro de cálculo poderá ser o princípio do fim da hegemonia dos EUA na Ásia-Pacífico. E trágico para o mundo.

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