A perigosa competição sino-americana
pela hegemonia na Ásia-Pacífico
A China espera um passo errado de
Donald Trump na crise coreana para tirar vantagem. Um erro de cálculo poderá
ser o princípio do fim da hegemonia dos EUA na Ásia-Pacífico. E trágico para o
mundo.
JOSÉ PEDRO TEIXEIRA FERNANDES
5 de setembro de 2017, 16:28
1. Só é possível perceber a crise da Coreia do Norte no
quadro mais vasto da política mundial, marcado pela competição entre a China e
os EUA, e da natureza complexa das alianças. Há uma tendência de olhar para
esta crise perdendo de vista o quadro da política mundial e esquecendo o que dá
consistência às alianças militares: a permanência de interesses estratégicos no
longo prazo. Sobrevalorizar o que são conflitos pontuais, ou desentendimentos
conjunturais, entre aliados — neste caso, a China e a Coreia do Norte —, não
ajuda a perceber a dimensão do problema. Subestimar a especificidade e
sofisticação da cultura estratégica chinesa também não. É uma cultura
estratégica não obcecada pelo sucesso de curto prazo, como os ocidentais.
Contém objectivos nacionais de longo prazo, prosseguidos com determinação e
habilidade, por múltiplos meios. No caso da aliança entre a China e a Coreia do
Norte, é inadequado vê-la como obsoleta e apenas uma fonte de problemas para o
governo chinês. É uma visão superficial do problema: focaliza nos riscos e
negligência as oportunidades estratégicas. Uma comparação com outras alianças
pode ser um bom ponto de partida para compreender a relação complexa entre a
China e a Coreia do Norte. Olhando, por exemplo, para as alianças dos EUA com
Israel, ou, talvez melhor, dos EUA com a Arábia Saudita, podemos ver o que está
em causa.
2. A China preferia que a Coreia do Norte não tivesse feito
o seu último teste nuclear, de uma bomba de hidrogénio, especialmente na altura
em que o fez, próximo de uma cimeira dos BRICS no seu território — e nas
vésperas do Congresso do Partido Comunista. Tal como os EUA, durante a
presidência de Barack Obama, teriam preferido que o governo de Benjamin
Netanyahu, do Likud, não tomasse uma atitude de tentar boicotar, por todos os
meios, as negociações com o Irão sobre o seu programa nuclear e facilitasse as
negociações de paz com os palestinianos. E que a Arábia Saudita não apoiasse —
ainda que oficialmente o negue — grupos islamistas-jihadistas no Iraque, na
Síria e expandisse o seu perigoso Islão wahhabita, ou que tivesse uma maioria
de cidadãos sauditas envolvidos nos atentados terroristas de 11 de Setembro.
Isto levou ao rompimento dessas alianças? Iriam os EUA apoiar hipotéticas
sanções contra o seu interesse estratégico fundamental? Sabemos a resposta:
não. Por que razão a China iria romper a sua aliança — avançando com sanções
económicas, que, se quisesse, poderiam mesmo enfraquecer e fazer ruir o regime
de Kim Jong-un — quando há interesses estratégicos permanentes que partilha com
a Coreia do Norte? Por que razão deveria fazer algo que só favoreceria os EUA e
seus aliados na Ásia-Pacífico?
3. Importa compreender a China. Não é União Soviética, que
já faz parte da história. Os protestos na praça de Tiananmen, em Pequim, em
1989, foram esmagados. A China não se rendeu à democracia liberal, nem se
desagregou com o final da Guerra-Fria. Pelo contrário, tornou-se o grande
vencedor da actual globalização, com a sua própria forma de capitalismo
autoritário. A Coreia também não é a Alemanha dividida da Guerra-Fria,
reunificada em 1990 e integrada na NATO. Não está destinada a ser reunificada
sob a esfera de influência dos EUA, tal como aconteceu com a antiga República
Democrática Alemã. Isso só foi possível dada a enorme quebra de poder da União
Soviética, que acabou por levar à sua desagregação. A China conseguiu evitar
uma reunificação da Coreia, quando os EUA estavam no pico do seu poder, durante
os anos 1990. Certamente que agora também não deixará de o fazer, se isso
implicar esta ficar sob influência norte-americana. Mais: o objectivo último da
China é afastar a presença militar e influência política dos EUA da Península
da Coreia e na Ásia-Pacífico. É um objectivo estratégico permanente,
prosseguido com paciência, determinação e sentido de oportunidade e do qual a
China não abdicará nunca.
4. Olhemos agora a questão do ponto de vista da Coreia do
Norte. Na sua óptica de manutenção no poder, Kim Jong-un tem todas as razões
para não querer abdicar do armamento nuclear. Os exemplos do Iraque e da Líbia
são amostras óbvias do que lhe poderia suceder. A confiança que lhe merecem os
EUA e Ocidente é nula. O Iraque de Saddam Hussein, que foi acusado de estar a
preparar armas nucleares, mas não as tinha, foi invadido em 2003 pelos EUA, com
Saddam Hussein detido e posteriormente executado. Quanto à Líbia, Muammar Kadhafi,
depois de ter negociado o término do seu problema nuclear com o Ocidente, viu,
em 2011, uma coligação entre os EUA, Reino Unido e França, actuar como força
aérea dos rebeldes, pondo fim ao seu regime e levando à sua própria morte. Esta
total falta de confiança leva a que uma hipotética negociação bilateral sobre o
seu programa nuclear esteja destinada ao fracasso. Para os EUA, esse seria o
único objectivo aceitável para entrar em negociações. Mas esse é totalmente
inaceitável para a Coreia do Norte. Kim Jong-un procura mostrar a credibilidade
da sua dissuasão nuclear e obter um reconhecimento internacional do seu status
como potência nuclear. Pelo menos, de algo parecido com outras potências
nucleares “não oficiais” — Paquistão, Índia e Israel.
5. Para a China, a crise provocada pelo programa nuclear e
balístico da Coreia do Norte oferece o potencial de uma "guerra por
procuração". Claro que tem riscos para esta, como todas as estratégias
desse tipo. Basta recordar o que aconteceu aos EUA, que fizeram guerra por
procuração contra a União Soviética no Afeganistão, durante os anos 1980,
através dos talibãs, via Paquistão e Arábia Saudita. Mais tarde sofreram os
efeitos da estratégia que alimentaram contra a União Soviética, em si próprios.
Mas, na altura, a perspectiva de abalar o poder soviético, o objectivo
fundamental da sua estratégia na Guerra-Fria, prevaleceu. No caso da China, a
perspectiva de ganhos — e o ganho supremo é afastar os EUA da Península da
Coreia e da Ásia-Pacífico — justifica não deixar cair a Coreia do Norte. Mais:
leva a ultrapassar os problemas que, por vezes, também coloca aos próprios
chineses, com o objectivo de tirar proveito do desgaste que provoca aos EUA e
seus aliados. Tem sido apontado que seria mau para a China uma nova guerra na
Coreia, entre outras coisas, pela massa de refugiados que fugiriam para o seu
território. Claro que seria mau. No entanto, também aqui temos de aferir o
problema à escala da China. Vinte e cinco milhões, a totalidade da população da
Coreia do Norte, seria muito, noutras partes do mundo. No caso chinês, com
quase 1,4 mil milhões de habitantes, e um território comparável ao dos EUA, não
é um número particularmente significativo. Além do mais, o exército chinês, o
maior do mundo, com mais de 2,2 milhões de efectivos, teria capacidade e meios
para gerir uma crise na fronteira.
6. Como resolver este impasse? Há, fundamentalmente, três
cenários possíveis. O primeiro é deixar continuar a situação, intensificando as
sanções económicas e reforçando o dispositivo de segurança, no pressuposto de
que a Coreia do Norte não tomará a iniciativa de um ataque militar nuclear,
pela represália devastadora que sofreria dos EUA. Mas este é um cenário de
continuidade do impasse e de insegurança. Nada indica que leve à queda de Kim
Jong-un. Levanta ainda um problema para Donald Trump. Ao entrar no jogo de
bluffs e ameaças de Kim Jong-un colocou a sua credibilidade — e a do poder dos
EUA — em jogo. Este primeiro cenário poderia ser visto como alguma naturalidade
com Barack Obama, ou Hillary Clinton. Donald Trump, com a sua retórica de
acusações à fraqueza de Obama e Clinton — e respostas belicosas às ameaças de
Kim Jong-un, ameaçando-o com “fogo e fúria como o mundo nunca viu” —,
colocou-se numa posição de ter de actuar. Mas como? Ficam, assim, dois
possíveis cenários de ruptura. Um é pela via de um ataque armado dos EUA e seus
aliados, respondendo a uma qualquer provocação futura da Coreia do Norte,
tentando eliminar a sua capacidade nuclear. Para além da sua eficácia ser muito
duvidosa, arrisca-se a provocar uma guerra de consequências totais
imprevisíveis, mas certamente devastadora. Na pior hipótese, a Península da
Coreia seria o que os Balcãs foram para a Europa e o mundo em 1914 — o rastilho
de uma confrontação militar generalizada que ninguém queria, mas que acabaria
por atingir proporções apocalípticas. Resta um terceiro cenário de ruptura do
impasse, através de uma abrangente negociação de paz. Vejamos como poderia
funcionar.
7. O cenário seria o de uma negociação diplomática, para
além de uma mera negociação bilateral entre os EUA e Coreia do Norte, ou
trilateral, entre os EUA, a Coreia do Sul e a Coreia do Norte. Poderia trazer
uma paz negociada para a crise da Coreia do Norte. Provavelmente sim. Mas, para
além das duas Coreias e dos EUA, teria de envolver e China e também outros
interessados influentes, como a Rússia, talvez ainda também o Japão. Exceptuado
o já referido cenário de guerra, de consequências imprevisíveis, só a China
poderá ter, em quaisquer negociações diplomáticas abrangentes, o papel de
desbloqueador do actual impasse. Mas, na óptica da China, só com a satisfação
do seu interesse nacional se justificará pressionar, até à exaustão, o regime
da Coreia do Norte para um acordo, tomando, se necessário, medidas que de outra
forma nunca tomará. Essas, sem dúvida, asfixiariam o regime norte-coreano, como
fechar a fronteira, bloquear o fluxo de remessas dos trabalhadores, ou cortar o
fornecimento de petróleo. Mas essa paz teria um preço para os EUA. A China iria
exigir a total retirada militar dos EUA da Coreia do Sul, em troca de uma
pressão decisiva para a desnuclearização da Coreia do Norte. Seria um duro
golpe no "Make America Great Again" de Donald Trump, e, pior ainda,
na influência norte-americana na Ásia-Pacífico. Colocaria em causa a confiança
dos seus aliados quanto ao empenhamento na sua defesa. Ficava a pairar no ar
que, sentido os EUA o seu território directamente ameaçado pelo poder nuclear
da Coreia do Norte, os abandonavam à China em troco da sua própria segurança.
8. Para parte da opinião pública internacional, Donald Trump
parece hoje quase tão perigoso para a paz e segurança como Kim Jong-un da
Coreia do Norte. Instalando-se esta percepção, Xi-Jinping e a China já estão a
ganhar no objectivo de afastar os EUA da liderança global. O jogo de bluffs e
ameaças de Kim Jong-un, replicado por Donald Trump, colocou a sua credibilidade
e o poder dos EUA em causa, enquanto garantes de uma pax americana na
Ásia-Pacífico. Pela sua retórica, necessita agora de agir, mas só tem más
opções. Para além disso, a obsessão em rasgar acordos comerciais — já se
retirou do TTP, a Parceria Transpacífico / Trans-Pacific Partnership e agora
pretende retirar-se acordo de livre comércio com o seu aliado, a Coreia do Sul
(KORUS FTA na sigla inglesa) — criou um desnecessário mal-estar adicional. Logo
na pior altura, quando ambos deviam enfrentar, de forma coesa, a grave crise da
Coreia do Norte. Também não ajudam as críticas públicas que fez a Moon Jae-in,
o Presidente da Coreia do Sul — que é filho de refugiados norte-coreanos da
guerra dos anos 1950, e sabe o que são os horrores da guerra — acusando-o de
uma resposta demasiado apaziguadora ao teste nuclear da Coreia do Norte. A
situação contém grandes riscos para todos os envolvidos, mas a China espera um
passo errado de Donald Trump para tirar vantagem. A esperança chinesa tem
fundamento e sentido estratégico. Um erro de cálculo poderá ser o princípio do
fim da hegemonia dos EUA na Ásia-Pacífico. E trágico para o mundo.
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