Grande título que exprime em síntese, os paradoxos
destruidores dos efeitos da Turistificação desenfreada no Porto e em Lisboa
OVOODOCORVO
“As lojas e restaurantes não aguentam, as rendas são
excessivas”
Na Casa Soleiro, os turistas também
tentam salvar o que o turismo condenou
Loja com 80 anos recebeu ordem de
despejo. Mas resiste ao fecho com uma petição que também os turistas estão a
assinar. Programa Porto de Tradição ainda a pode salvar.
MARIANA CORREIA PINTO 14 de setembro de 2017, 4:23
Não há souvenirs à moda do Porto para turista comprar, nem
glamour de uma cidade em pose para a fotografia. Mas os turistas parecem não se
ralar. Entram na Casa Soleiro encantados com uma espécie de viagem no tempo
para lá dos dois sapatos de madeira gigantes pendurados nas portas de entrada,
números 104 e 106 da Rua Chã, na Sé. Por isso, quando há coisa de um mês e meio
Emílio Silva comunicou o possível fecho da loja, a contas com uma ordem de
despejo, as páginas de uma petição que afixou nas paredes — também escrita em
inglês e francês, para turista ver — encheram-se rapidamente.
Emílio Silva, o neto do fundador e agora proprietário do
espaço, nem precisava de pedir. "As pessoas entravam, liam e ficavam muito
espantadas e revoltadas", conta ao PÚBLICO. Há assinaturas de geografias várias
na petição: Espanha, França, Reino Unido, Alemanha, Polónia, Brasil. Quando lhe
perguntam o que se está a passar, Emílio Silva improvisa as respostas no seu
melhor inglês ou francês. "A especulação imobiliária, promovida pelo
turismo, está a expulsar-nos daqui."
O portuense não se deixa enredar em discursos militantes
contra o turismo. Pelo contrário. Gosta de sublinhar a importância dos turistas
para o seu negócio de solas e cabedais. São muitos os que ali entram. Às vezes
só por curiosidade, para fotografar. "Dizem que nos países deles já não se
vêem lojas destas." Outros para comprar, sobretudo cintos — daqueles que
duram uma vida. "Tenho material que dura 40 anos, é de uma qualidade que
já não se vê." O problema, diz, é o turismo estrangular negócios e pessoas
que sempre ali estiveram. "Estão a dar um tiro no próprio pé. Quantas
lojas e pessoas vão restar? Aqui na rua já somos muito poucos", conta em
tom de lamento.
A ordem de despejo chegou à Casa Soleiro há cerca de meio
ano. Veio numa carta registada — com aviso de recepção, mas sem avisos prévios.
Emílio ficou arrasado. Esteve duas noites seguidas sem dormir, ainda tem o sono
agitado de quem conta com um ponto de interrogação no lugar do futuro. Os
últimos meses têm sido desgastantes. Cartas para a câmara, para a junta, para a
associação de comerciantes. Reuniões. Advogados. E o prazo de saída imposto
pelo senhorio — início de Outubro — a morder os calcanhares.
Decisão final na próxima semana
A Casa Soleiro fez parte da lista inicial do Porto de Tradição,
um programa da responsabilidade de várias entidades sob a direcção do pelouro
do Comércio e Turismo da Câmara Municipal do Porto, que foi criado para
salvaguardar algumas lojas históricas da cidade. Mas depois da visita de um
grupo de trabalho, a loja criada em 1947 e identificada inicialmente como um
dos 81 estabelecimentos comerciais e entidades sem fins lucrativos que poderiam
ser classificados, acabou por ficar fora do projecto. Justificação? Não ter
obtido “a valoração mínima para integrar a lista de estabelecimentos que o
Grupo de Trabalho propôs à CMP para reconhecimento”, explicou o vereador Manuel
Aranha, acrescentando que tal se deveu “ ao facto de não ter apresentado
evidências relativas a alguns elementos”.
Mas o processo não está fechado. Depois de uma exposição
feita pela Casa Soleiro e de novas provas apresentadas, a loja obteve “uma
valoração que permitirá ser proposta para reconhecimento”. Não está garantido
que será classificada, mas a possibilidade de ser é agora maior. A decisão final
acontece na próxima reunião do executivo, na terça-feira, dia 19.
Emílio Silva chegou à loja do avô ainda menino de 14 anos, a
fugir da escola que não o conquistava. Admite que não agarrou o negócio por
paixão, porque ser comerciante é ofício para dar “muitas dores de cabeça, às
voltas com as burocracias”. Mas aos 60 anos de vida, e mais de 40 de loja,
habituou-se àquilo. E ainda que não tenha descendentes directos, a continuidade
está a ser pensada com os funcionários da casa. “Quero dar continuidade a esta
herança.”
Luís Buchinho “despejado” da Baixa hoje, Good Vibes no
próximo ano
Os caixotes vão ocupando espaço no interior da loja, a
confirmar uma mudança anunciada na montra em registo cru: “Novas instalações”.
Hoje, o atelier e loja do estilista Luís Buchinho, o primeiro de renome a
mudar-se para a Baixa do Porto, há uma década, já não fica no número 157 da Rua
José Falcão.
A intenção de venda do prédio tinha sido anunciada há meses
e não apanhou o estilista desprevenido. Buchinho não sabe para que fim será
utilizado o prédio. Mas conhece bem a “histeria generalizada” que se tem
espalhado na cidade nos últimos anos, uma “ambição desmesurada” que pode “fazer
o carisma [do Porto] desaparecer”. É preciso um meio termo, pede: “A cidade não
está morta, como estava, e isso agrada-me. Mas esta situação também não é boa.”
Até ao final do mês, vai abrir novo espaço na Rua Sá da Bandeira: “Não tenho
assim tanta pena de sair porque esta zona está, de facto, selvagem.”
Também na José Falcão, a concept store Good Vibes já prepara
a saída, depois de seis anos naquela rua — e 18 no centro do Porto. O contrato
de arrendamento termina no fim do próximo ano e o senhorio já anunciou que não
o quer renovar. Ivo Ferreira e Sousa, designer da marca e proprietário, atira as
culpas para a “bolha imobiliária” em que o Porto vive. Ali deverá nascer um
hotel, diz. E contra esse poder económico nada pode fazer: “As lojas e
restaurantes não aguentam, as rendas são excessivas”, protesta, dando um
exemplo do que se passa numa zona próxima: “Nos Loios, há uma loja de 100 m2 a
ser arrendada por cinco mil euros. É incomportável.” Ivo Ferreira e Sousa ainda
não desistiu da baixa, mas admite que é um “caminho complicado”. “Queremos
estar no Porto, vamos ver se conseguimos.”
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