(…) “Poucos meses depois da divulgação desse dado, o
historiador da Arquitetura Antonio Sergio Rosa de Carvalho, em artigo publicado
no jornal português Público, e intitulado “Os efeitos da turistificação de
Lisboa”, identificava nas ruas da capital lusitana sinais da “turismofobia” que
viraria assunto frequente no ano seguinte em vários outros países da Europa
Ocidental:
“Um clamor profundo, uma agitação permanente de insatisfação
e um desejo urgente e imperativo de mudança, de regulamentos, de fiscalização e
de liderança por parte dos habitantes, ameaça traduzir-se em consequências
políticas”.
'TURISMOFOBIA'
Não, o bárbaro de ontem não é o
turista de hoje
A chamada 'turismofobia' se espalha como um rastilho de
pólvora entre os paióis da desordem mundial, como as crises econômica e
migratória na Europa
Hugo Souza
29 ago, 2017 /
http://opiniaoenoticia.com.br/…/nao-o-barbaro-de-ontem-nao…/
A senha para o sucesso, o econômico – ou para o malogro do
cotidiano, a julgar pelas notícias que chegam da Europa –, foi dada em setembro
de 2013 pelo secretário-geral da Organização Mundial do Turismo (OMT), Taleb
Rifai. Naquela feita, Rifai defendeu que o turismo deveria ser colocado a
serviço da recuperação pelos países que atravessavam, e muitos ainda
atravessam, no indicativo presente, profundas e agudas dificuldades: “No caso
de Portugal – disse – a questão não é como pode crescer, mas antes se pode
dar-se ao luxo de não usar o turismo na sua recuperação”.
Já no ano seguinte, em 2014, um estudo publicado pelo
Conselho Mundial de Viagens e Turismo mostrou que em Portugal o setor respondia
naquela ocasião por 5,8% do PIB do país, muito acima da média mundial, que
ainda hoje é de cerca de 3%. A proporção subia para 7,2% quando se tratava da
contribuição do turismo na geração de empregos diretos, enquanto a média
mundial é de 3,4%. Em meados de 2016 um outro estudo, esse do instituto de
pesquisa independente em macroeconomia Capital Economics, mostrava que o
impacto total do turismo no PIB português já poderia chegar na verdade a 16%.
Poucos meses depois da divulgação desse dado, o historiador
da Arquitetura Antonio Sergio Rosa de Carvalho, em artigo publicado no jornal
português Público, e intitulado “Os efeitos da turistificação de Lisboa”,
identificava nas ruas da capital lusitana sinais da “turismofobia” que viraria
assunto frequente no ano seguinte em vários outros países da Europa Ocidental:
“Um clamor profundo, uma agitação permanente de insatisfação
e um desejo urgente e imperativo de mudança, de regulamentos, de fiscalização e
de liderança por parte dos habitantes, ameaça traduzir-se em consequências
políticas”.
Naquela altura, a rigor, a capital da Alemanha, Berlim, já
havia proibido totalmente o aluguel de imóveis na cidade via AirBNB, o famoso
site-serviço pelo qual qualquer pessoa pode transformar um apartamento comum,
ou um quarto de um apartamento comum, em um pequeno hotel. A medida visava
conter os efeitos, aqueles para o cotidiano, do turismo de massa, predatório,
demasiadamente fugidio.
A capital da Holanda, Amsterdam, também já tinha decidido
enquadrar o AirBNB, impondo-lhe os termos de uma ocupação máxima de 60 dias por
ano, por imóvel, e limite de quatro pessoas por prédio, a fim de conter a
tendência de descaracterização dos bairros da cidade, que, nas palavras de
Antonio Sergio Rosa de Carvalho, vinham se transformando em “plataformas
rotativas e contínuas de ‘idas e vindas’ de forasteiros hiper individualizados
e indiferentes aos locais”; “locais alienados onde ninguém se conhece e onde
reina o anonimato”.
Também naquela altura a capital da Catalunha, Barcelona, já
anunciava medidas contra a “airbnbização”. Atualmente pupulam na cidade
movimentos anti-turismo, como a plataforma popular La Barceloneta Diu Prou (“A
Barceloneta Diz Basta”, contra o turismo massivo no tradicional bairro da
Barceloneta) e a campanha Cap Més Estiu Com Aquest (“Mais Nenhum Verão como
Esse”). Em janeiro desse ano uma manifestação de moradores nas Ramblas
barcelonenses tinha à frente uma grande faixa com a frase: “Barcelona não está
à venda”. Em junho, menos de dois meses antes dos atentados nas Ramblas, uma
pesquisa da prefeitura mostrou que os moradores de Barcelona consideram o turismo
o principal problema da cidade, empurrando o principal problema da cidade, o
desemprego, para a segunda posição. Barcelona tem registrado até casos de
ataques de jovens anticapitalistas a hotéis e depredação de ônibus e bicicletas
de uso turístico.
Com o atentado terrorista do último 17 de agosto,
subitamente os barcelonenses se viram em uma espécie de saia justa macabra: a
da imbricação, ainda que involuntária, ainda que sem nexo, entre “turismofobia”
e terrorismo: como seguir reivindicando que se entregue as Ramblas de volta aos
moradores, em vez de entregá-las aos turistas, ante o rastro cruento de 14
cadáveres e mais de 100 feridos de pelo menos 34 diferentes nacionalidades? Na
edição com a polêmica capa, mais uma, essa sobre o atentado em Barcelona, o
jornal satírico Charlie Hebdo – ele próprio com sua história para sempre
marcada por um ataque terrorista – publicou um artigo intitulado “Não à
turismofobia!”, no qual diz:
“Antes do atentado de Barcelona, os cretinos do Estado
Islâmico não eram os únicos a pensar que havia turistas demais nas Ramblas.
Surgiu uma turismofobia, como em outros lugares. Entretanto, o que aconteceu
ali em 17 de agosto nos recorda que turismo é vida”.
O fenômeno da resistência à vulgarização turística não é
novo. Em 1979, décadas antes da era das selfies em monumentos, museus e
aeroportos, a escritora americana Susan Sontag já observava que “hoje tudo
existe para terminar em fotografia”. Vinte anos antes, em 1959, a escritora e
jornalista britânica Nancy Mitford já dizia que “o bárbaro de ontem é o turista
de hoje”. Agora, a “turismofobia” se espalha como um rastilho de pólvora entre
os paióis da desordem mundial, como a crise econômica e a crise migratória na
Europa.
Os atentados em Barcelona e a marcha em Barcelona de 500 mil
pessoas contra o terrorismo, realizada no último sábado, 26, sob as palavras de
ordem No tinc por (“Não tenho medo”), mostram que estava errada a senhora
Mitford: a distância de uma volta ao mundo separa o turismo, por mais que
massificado, por mais que predatório, daquilo que verdadeiramente pode-se
chamar de barbárie
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