segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Não, o bárbaro de ontem não é o turista de hoje


(…) “Poucos meses depois da divulgação desse dado, o historiador da Arquitetura Antonio Sergio Rosa de Carvalho, em artigo publicado no jornal português Público, e intitulado “Os efeitos da turistificação de Lisboa”, identificava nas ruas da capital lusitana sinais da “turismofobia” que viraria assunto frequente no ano seguinte em vários outros países da Europa Ocidental:
“Um clamor profundo, uma agitação permanente de insatisfação e um desejo urgente e imperativo de mudança, de regulamentos, de fiscalização e de liderança por parte dos habitantes, ameaça traduzir-se em consequências políticas”.

'TURISMOFOBIA'
Não, o bárbaro de ontem não é o turista de hoje
A chamada 'turismofobia' se espalha como um rastilho de pólvora entre os paióis da desordem mundial, como as crises econômica e migratória na Europa
Hugo Souza
29 ago, 2017 /
http://opiniaoenoticia.com.br/…/nao-o-barbaro-de-ontem-nao…/
A senha para o sucesso, o econômico – ou para o malogro do cotidiano, a julgar pelas notícias que chegam da Europa –, foi dada em setembro de 2013 pelo secretário-geral da Organização Mundial do Turismo (OMT), Taleb Rifai. Naquela feita, Rifai defendeu que o turismo deveria ser colocado a serviço da recuperação pelos países que atravessavam, e muitos ainda atravessam, no indicativo presente, profundas e agudas dificuldades: “No caso de Portugal – disse – a questão não é como pode crescer, mas antes se pode dar-se ao luxo de não usar o turismo na sua recuperação”.
Já no ano seguinte, em 2014, um estudo publicado pelo Conselho Mundial de Viagens e Turismo mostrou que em Portugal o setor respondia naquela ocasião por 5,8% do PIB do país, muito acima da média mundial, que ainda hoje é de cerca de 3%. A proporção subia para 7,2% quando se tratava da contribuição do turismo na geração de empregos diretos, enquanto a média mundial é de 3,4%. Em meados de 2016 um outro estudo, esse do instituto de pesquisa independente em macroeconomia Capital Economics, mostrava que o impacto total do turismo no PIB português já poderia chegar na verdade a 16%.
Poucos meses depois da divulgação desse dado, o historiador da Arquitetura Antonio Sergio Rosa de Carvalho, em artigo publicado no jornal português Público, e intitulado “Os efeitos da turistificação de Lisboa”, identificava nas ruas da capital lusitana sinais da “turismofobia” que viraria assunto frequente no ano seguinte em vários outros países da Europa Ocidental:
“Um clamor profundo, uma agitação permanente de insatisfação e um desejo urgente e imperativo de mudança, de regulamentos, de fiscalização e de liderança por parte dos habitantes, ameaça traduzir-se em consequências políticas”.
Naquela altura, a rigor, a capital da Alemanha, Berlim, já havia proibido totalmente o aluguel de imóveis na cidade via AirBNB, o famoso site-serviço pelo qual qualquer pessoa pode transformar um apartamento comum, ou um quarto de um apartamento comum, em um pequeno hotel. A medida visava conter os efeitos, aqueles para o cotidiano, do turismo de massa, predatório, demasiadamente fugidio.
A capital da Holanda, Amsterdam, também já tinha decidido enquadrar o AirBNB, impondo-lhe os termos de uma ocupação máxima de 60 dias por ano, por imóvel, e limite de quatro pessoas por prédio, a fim de conter a tendência de descaracterização dos bairros da cidade, que, nas palavras de Antonio Sergio Rosa de Carvalho, vinham se transformando em “plataformas rotativas e contínuas de ‘idas e vindas’ de forasteiros hiper individualizados e indiferentes aos locais”; “locais alienados onde ninguém se conhece e onde reina o anonimato”.
Também naquela altura a capital da Catalunha, Barcelona, já anunciava medidas contra a “airbnbização”. Atualmente pupulam na cidade movimentos anti-turismo, como a plataforma popular La Barceloneta Diu Prou (“A Barceloneta Diz Basta”, contra o turismo massivo no tradicional bairro da Barceloneta) e a campanha Cap Més Estiu Com Aquest (“Mais Nenhum Verão como Esse”). Em janeiro desse ano uma manifestação de moradores nas Ramblas barcelonenses tinha à frente uma grande faixa com a frase: “Barcelona não está à venda”. Em junho, menos de dois meses antes dos atentados nas Ramblas, uma pesquisa da prefeitura mostrou que os moradores de Barcelona consideram o turismo o principal problema da cidade, empurrando o principal problema da cidade, o desemprego, para a segunda posição. Barcelona tem registrado até casos de ataques de jovens anticapitalistas a hotéis e depredação de ônibus e bicicletas de uso turístico.
Com o atentado terrorista do último 17 de agosto, subitamente os barcelonenses se viram em uma espécie de saia justa macabra: a da imbricação, ainda que involuntária, ainda que sem nexo, entre “turismofobia” e terrorismo: como seguir reivindicando que se entregue as Ramblas de volta aos moradores, em vez de entregá-las aos turistas, ante o rastro cruento de 14 cadáveres e mais de 100 feridos de pelo menos 34 diferentes nacionalidades? Na edição com a polêmica capa, mais uma, essa sobre o atentado em Barcelona, o jornal satírico Charlie Hebdo – ele próprio com sua história para sempre marcada por um ataque terrorista – publicou um artigo intitulado “Não à turismofobia!”, no qual diz:
“Antes do atentado de Barcelona, os cretinos do Estado Islâmico não eram os únicos a pensar que havia turistas demais nas Ramblas. Surgiu uma turismofobia, como em outros lugares. Entretanto, o que aconteceu ali em 17 de agosto nos recorda que turismo é vida”.
O fenômeno da resistência à vulgarização turística não é novo. Em 1979, décadas antes da era das selfies em monumentos, museus e aeroportos, a escritora americana Susan Sontag já observava que “hoje tudo existe para terminar em fotografia”. Vinte anos antes, em 1959, a escritora e jornalista britânica Nancy Mitford já dizia que “o bárbaro de ontem é o turista de hoje”. Agora, a “turismofobia” se espalha como um rastilho de pólvora entre os paióis da desordem mundial, como a crise econômica e a crise migratória na Europa.

Os atentados em Barcelona e a marcha em Barcelona de 500 mil pessoas contra o terrorismo, realizada no último sábado, 26, sob as palavras de ordem No tinc por (“Não tenho medo”), mostram que estava errada a senhora Mitford: a distância de uma volta ao mundo separa o turismo, por mais que massificado, por mais que predatório, daquilo que verdadeiramente pode-se chamar de barbárie

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