Breve chave de leitura para os
últimos acontecimentos na Catalunha
A vanguarda independentista precisa
de uma de duas coisas: ou ganhar a maioria ou, no mínimo, assegurar a
neutralidade da grande maioria da população.
Jorge Almeida Fernandes
9 de setembro de 2017, 7:25
É muito fácil equivocar-nos perante os acontecimentos da
Catalunha. Antes das comoções, devemos “tentar perceber”. A primeira coisa a
ter em conta é que a conduta dos independentistas obedece a uma lógica e tem um
fim tão simples quanto difícil: tentar passar de minoria a maioria. Tanto a
marcação do referendo de 1 de Outubro (designado por 1-O) como as cenas desta
semana no parlament de Barcelona, em que foram aprovadas leis “que violam todas
as leis” e em que a oposição foi silenciada, fazem parte desse dispositivo. E
pressupõem uma táctica: forçar o confronto de modo a que Madrid responda com
uma escalada repressiva.
É esta a chave de leitura do que se passou no parlament: “A
lei [do referendo de autodeterminação], lançada a toda a pressa e sem travões,
tem um primeiro objectivo: suscitar a resposta mais dura e contundente do Governo
central e do Tribunal Constitucional antes da Diada [11 de Setembro]; para que
a reacção a essa investida alimente a mobilização independentista”, anota
Ignacio Escolar, director do El Diario.
O jornalista catalão Joan Tapia explicou o cenário ideal para
os independentistas: 72 deputados encerrados no parlament em sessão permanente,
com 30 mil pessoas a defendê-los na praça perante as televisões de todo o
mundo. Já citei este cenário num artigo anterior mas vale a pena repeti-lo.
Números e votos
A vanguarda independentista precisa de uma de duas coisas:
ou ganhar a maioria ou, no mínimo, assegurar a neutralidade da grande maioria
da população. A realidade não é brilhante. O último inquérito do Centro de
Estudos de Opinião, da Generalitat (governo de Barcelona), indica que entre
Março e Julho deste ano, a percentagem de apoio à independência baixou de 44,3%
para 41,1%. Uma outra sondagem publicada em Julho por La Vanguardia, sobre a
identidade nacional, indicava que 43% dos inquiridos se declaram “tão catalães
como espanhóis”; 24,4 são “mais catalães do que espanhóis”; 18,1 “unicamente
catalães”; e 10,2 declaram-se “apenas espanhóis ou mais espanhóis que
catalães”. É um puzzle difícil de gerir.
Quando uma vanguarda decide impor a sua agenda nacionalista tem
de forçar a realidade. O chamado “processo” passou já por várias estações. Em
Janeiro de 2013, o parlament aprovou uma declaração segundo a qual a soberania
reside no povo catalão. A manifestação da Diada de 11 de Setembro de 2013 foi
majestosa e marcou um salto na mobilização independentista. O govern de
Barcelona, então dirigido por Artur Mas, convocou depois um “referendo” não
vinculativo sobre a independência. Realizado em Novembro de 2014, teve a
participação de 2,35 milhões de pessoas, pouco mais de 33% do censo. Cerca de
1,8 milhões votaram pela independência.
Era pouco. Na sequência, Mas provoca eleições antecipadas
“plebiscitárias”: se a coligação independentista Juntos pelo Sim obtivesse a
maioria absoluta (72 mandatos em 135 deputados) o govern e o parlament
declarava-se aptos a desencadear a secessão. Realizadas a 27 de Setembro de
2015, a eleições foram um desaire para Mas. O Juntos pelo Sim apenas obteve 68
lugares. Mais incómodo: neste “plebiscito” os independentistas somaram 47,7% e
os não independentistas 50,6.
É este mesmo parlament que inicia a fuga para a frente. Para
formar uma maioria, o Juntos pelo Sim fez um acordo com a Candidatura de
Unidade Popular (CUP), um pequeno partido com 10 deputados e pouco mais de 300
mil eleitores, que depressa assumirá a liderança do “processo”.
A CUP é uma reemergência do antigo e trágico anarquismo
catalão. Anticapitalista radical e funcionando em assembleia, defende uma
ruptura unilateral com o “reino de Espanha”, com a UE, a NATO e o FMI. Propõe uma
estratégia de confronto e de desobediência perante o Estado. O que é notável é
que os partidos tradicionais do Juntos pelo Sim depressa ficaram reféns da CUP.
Foram os “cuperos” que forçaram a substituição de Mas por Carles Puigdemont na
presidência da Generalitat e que, depois, passaram a ditar o ritmo.
Tanto Puigdemont como Oriol Junqueras, líder da Esquerda
Republicana da Catalunha, terão pretendido avançar mais lenta ou prudentemente.
Terão querido, por exemplo, adiar a “lei da transitoriedade” para depois de 1
de Outubro, isto é, conhecido o desfecho do referendo. A CUP não o permitiu. O
problema é que foram tão longe que lhes é difícil travar sem descarrilamento. E
não querem submeter-se a novas eleições.
Por seu lado, a CUP prepara-se para endurecer a luta na rua:
criar “as condições necessárias” para forçar o uso da força e a produção de
“mártires”. Avisa ainda que se oporá radicalmente a qualquer hipótese de
“diluir a proposta de referendo num processo negocial com o Estado, que
significaria necessariamente a renúncia ao direito de autodeterminação”.
O 1 de Outubro
Rajoy garante que o referendo não terá lugar. Até agora
recorreu apenas a medidas judiciais. O recurso ao artigo 155 da Constituição,
que prevê a suspensão dos órgãos autonómicos, ficaria guardado para o caso
limite de proclamação da independência. A Fiscalía Superior de Catalunya
(procuradoria) ordenou às forças de segurança, incluindo Mossos d’Esquadra, que
impeçam a celebração do 1-O. “A inflamação política e mediática é fenomenal”,
escreve o La Vanguardia. O resto é uma incógnita.
Terá lugar o referendo? Ontem, 640 municípios garantiam
promover a votação. Faltava a resposta de 290. Grandes municípios da periferia
de Barcelona, geridos pelo PSOE, deverão negar-se a colaborar. A presidente de
Barcelona, Ada Colau, mantinha-se em silêncio, depois de pedir um parecer aos
seus serviços jurídicos: estes desaconselharam a colaboração no 1-O. A
manifestação da Diada de segunda-feira será explosiva.
Com ou sem referendo, a independência permanece no plano do
sonho. A grande maioria dos catalães não acredita nela. No entanto, a própria
derrota dos independentistas será explorada no registo de uma cultura de
vitimização. Argumenta o escritor catalão Antoni Puigverd: “Ainda que fosse
muito clara a vitória de Rajoy e do statu quo espanhol seria uma vitória de
Pirro, do mesmo modo que a derrota do independentismo seria épica e auguraria
um novo começo.”
Uma solução negocial continua longínqua porque Madrid e
Barcelona não dispõem neste momento de um terreno comum para chegar a um
acordo. Portanto, cresce a tensão
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