O título lido assim “tout court” é tendencioso … O o autor
afirma: “Assim é o turismo: devidamente controlado e canalizado, pode servir
para fertilizar uma cidade tornando-a cosmopolita e desenvolvida; indevidamente
descontrolado, servirá apenas para descaracterizar essa urbe, prostituindo-a ao
sabor dos interesses económicos e financeiros em voga.
E agrava também o problema da especulação imobiliária…
Agrava. No entanto, o problema da especulação imobiliária
transcende o turismo. Quando a rentabilidade de arrendamento ou venda um imóvel
ultrapassa aquela oferecida por qualquer produto bancário, a especulação
imobiliária entra no campo da própria especulação financeira tornando-se um
problema global.”
O título devia portanto ser: “O problema da especulação imobiliária não é SÓ o turismo”
OVOODOCORVO
Luís Rodrigues. “O problema da
especulação imobiliária não é o turismo”
Para o autor do livro “Manual de
Crimes Urbanísticos”, a incomportabilidade de preços dos imóveis resolve-se com
políticas salariais globais.
SÓNIA PERES PINTO
07/09/2017 16:02
O livro trata de crimes urbanísticos. Que crimes são esses?
Normalmente, associamos «criminalidade» a uma qualquer
infracção jurídica. Nesse sentido, um crime urbanístico pode ser entendido como
uma violação dos instrumentos legais (planos, normas, regulamentos, etc.) que
regem a forma como se fazem as cidades. Contudo, numa área tão vasta como esta,
acho que precisamos ir mais longe e perceber que a criminalidade urbanística
transcende a dimensão legal.
Pode dar exemplos?
Imaginemos que um edifício ou uma paisagem com elevados
valores estéticos, patrimoniais ou ambientais não se encontram legalmente
classificados e, como tal, não estão abrangidos por qualquer regime de
protecção. Se por acaso ou necessidade for decretada a sua destruição, a
ausência de enquadramento jurídico para estes casos pode não configurar um
crime urbanístico sob o ponto de vista legal, ainda que, sob o ponto de vista
ético, esse crime exista. Assim, ainda que possamos achar censurável essa
destruição, ela não chega a ser condenável.
Mas são projetos que
têm o aval das autarquias…
É um facto.
Porque é que as
autarquias não recusam determinados projetos? E os técnicos…
Essa pergunta conduz-nos para muitos aspectos de
disfuncionalidade das autarquias que eu critico com algum detalhe no Manual de
Crimes Urbanísticos. Desde logo, a postura de submissão perante os «fortes» e
imposição perante os «fracos»: quantas vezes o professor arquitecto doutorado e
premiado tem via verde para implementar a mais abjecta e monstruosa
urbanização, enquanto o recém-licenciado em arquitectura que pretenda legalizar
uma insignificante fracção numa zona histórica é barrado por patéticos
preciosismos técnicos (ora relacionado com a dimensão dos WC, ora com a
dimensão da caixa de escadas e outras acessibilidades, etc.)? Outro aspecto
disfuncional prende-se com a submissão de factores técnicos a ditames
políticos. É raro encontrar directores de departamento e chefes de divisão cuja
escolha não tenha sido feita por indicação ou nomeação política. Veja-se o caso
da Câmara de Lisboa, em que mais de uma centena de dirigentes se encontram
investidos como tal em regime de substituição há vários anos, dispensando a
realização de concursos – os quais, quando existem, não passam igualmente de
encenações destinadas a legitimar escolhas pré-determinadas. Obviamente não
está em causa o mérito das pessoas escolhidas, mas do princípio ético que
subjaz a essa escolha: um princípio em que a precariedade permanente em que se
encontram os dirigentes (pois podem ser removidos a qualquer momento se não
corresponderem às expectativas de quem os nomeou) favorece a sua tutelagem,
docilidade e submissão. Com que isenção ou distanciamento podem ser tomadas
decisões técnicas nestas condições? Para já não mencionar a total ausência de
cursos de formação em criminalidade urbanística e prevenção de corrupção na
Administração Pública - algo que foi recomendado pelo Conselho de Prevenção
para a Corrupção em 2009 e que nenhuma câmara municipal ou orgão do Estado
parece ter seguido. Para o cidadão comum, a imagem positiva ou negativa que ele
tem de uma câmara municipal, é-lhe dada muito mais pelos rostos de presidentes
e vereadores do que pela forma como trabalham técnicos e dirigentes nessa
complexa orgânica administrativa e funcional. Esta é uma lacuna muito grave
porque ofusca critérios de exigência e responsabilização que devem ser
transparentes e basilares nas instituições públicas. Quando, por exemplo, muita
gente critica a «segurança no trabalho» que existe na Administração Pública,
essas pessoas ignoram as implicações daquilo que estão a criticar: se essa
segurança não existisse e os técnicos corressem o risco de ser facilmente
demitidos por qualquer político ou dirigente que não gostasse dos seus
pareceres ou da sua pessoa, isso seria o fim da Democracia e do conceito de
interesse público e o início de uma qualquer forma de Oligarquia comandada por
interesses corporativos/privados.
A corrupção também tem aqui um papel preponderante ou não?
Sim, mas não na sua totalidade. Muitas das vezes, o
objectivo principal consiste não em obter um ganho indevido, mas em
corresponder a uma expectativa: os políticos querem corresponder às
expectativas da população, os dirigentes às expectativas dos políticos e os
técnicos às expectativas dos dirigentes. Na prática, esta cultura de
unanimidade acrítica e hierárquica, patente nas frases «eu faço o que as
pessoas querem» ou «eu faço o que me mandam», pode produzir resultados
equivalentes ou até mesmo piores do que aqueles gerados pela corrupção.
Há alguma
cidade/região em que esse crime é mais evidenciado?
A dimensão e sofisticação dos crimes estão associadas à
dimensão e sofisticação das cidades. A predisposição ética para a prática
desses crimes é que não possui necessariamente a mesma correlação: pessoas
íntegras e menos íntegras podem encontrar-se em qualquer contexto.
Corre-se o risco de afetar mais o litoral do país?
Sim, na medida em que é no litoral que se encontram os mais
elevados índices de urbanização.
Como diz no livro assistiu-se nos últimos anos ao fenómeno
da moda da torre. Ainda persiste?
Persiste e persistirá na medida em que a torre continuar a
ser vista como paradigma de rentabilização imobiliária. Inventar-se-ão torres
verdes, torres com painéis solares, autossuficiência energética e outras
balelas acerca da sustentabilidade, mas na realidade, o que subjaz à sua
implementação, é essencialmente o cifrão. Um dos argumentos mais recorrentes e
equivocados para a defesa da torre é aquele em que se assume como inevitável a
seguinte dicotomia: “é melhor construir em altura para deixar espaços verdes à
volta do que construir mais baixo e em extensão, eliminando esses mesmos
espaços verdes”. Como se o urbanismo se cingisse a critérios exclusivistas e
inevitáveis, ditados apenas pela prioridade construtiva.
Em véspera de eleições autárquicas é um tema mais sensível?
Deveria ser, mas não é. Fala-se muito em temas como a
«habitação» mas ninguém parece preocupado em integrar essa habitação em
conceitos mais vastos e holísticos como «planeamento», «ordenamento» ou
«urbanização». Compreendo que assim seja, pois do ponto de vista da mensagem
política, é mais fácil conquistar o voto de alguém a quem se promete dar uma
grande casa do que o voto de alguém a quem se promete dar uma boa cidade.
Nos programas eleitorais que tem assistido nota que há essa
preocupação nos candidatos?
Não muito. As preocupações são essencialmente de índole
conjuntural e não estrutural. Por exemplo, quando a economia e o turismo
assumem a primazia dos discursos, estamos no campo do conjuntural: hoje as
coisas são óptimas e uma cidade está na moda, mas amanhã surge uma crise e tudo
piorará; e o ciclo repete-se. Quando falamos da história e da identidade de uma
cidade, entramos no campo estrutural: se eu destruir um edifício emblemático
para construir um hotel só porque isso é mais rentável na actual conjuntura, o
edifício emblemático desaparecerá para sempre; não irá ser ressuscitado por
nenhum «boom» económico posterior. A importância que se coloca nas questões
económicas e conjunturais é louvável e necessária, mas pode ser perigosa quando
começa a assumir contornos prioritários, messiânicos e salvíficos sacrificando
a identidade da cidade às leis do mercado. É necessário recentrar os programas
para o essencial e a essência de um município está nos seus habitantes e na sua
história.
E do lado dos cidadãos, sente que há mais queixas agora do
que havia?
A queixa pela queixa não é um valor em si mesmo. A queixa só
tem valor quando é informada ou fundamentada. Hoje em dia preza-se muito as
estatísticas de «participação», mas pouca atenção se presta à educação para a
participação». Muitos dos planos de urbanização à época de Duarte Pacheco pouca
ou nenhuma discussão pública tiveram, mas não deixaram por isso de possuir
grande qualidade – ao contrário de alguns planos actuais, muito participados e
debatidos, mas que não deixam ainda assim de ser medíocres. Nesse sentido, não
basta criar fóruns onde as pessoas possam participar ou queixar-se; é
necessário ajudá-las a compreender o que se passa à sua volta com algum rigor e
exigência para que elas possam participar não em quantidade mas em qualidade.
De outra forma, estamos a dar-lhes os tubos de escape para elas expelirem e
exteriorizarem sentimentos, mas não lhes estamos a dar o motor que permite pôr
em andamento o processamento de conteúdos conducentes a verdadeiro
desenvolvimento.
Ou há um maior
cuidado com o planeamento urbanístico?
Há um maior cuidado com a apresentação do planeamento
urbanístico. Não quer isto dizer que exista maior cuidado com o conteúdo. Por
via das novas tecnologias, o urbanismo tornou-se um apelativo produto de
marketing apresentado com cores vivas e com imagens 3D. Na senda dessa popularização e divulgação,
também a justificação das propostas urbanística passou a ser muito mais
retórica e superficial do que profunda e quantitativa – como tal, a aceitação
de um plano passou a depender muito mais da capacidade argumentativa do
mediador que faz a apresentação desse plano do que do mérito (ou demérito)
intrínseco do mesmo.
O crescimento do
turismo principalmente nos grandes centros urbanos não pode agravar esta
situação?
O turismo assemelha-se à água de uma barragem: quando é
pouca ou inexistente, toda a gente se queixa da secura e da esterilidade que
essa ausência de água provoca. Quando é demasiada, toda a gente se queixa
porque a água pode inundar as povoações e destruí-las na enxurrada. Assim é o
turismo: devidamente controlado e canalizado, pode servir para fertilizar uma
cidade tornando-a cosmopolita e desenvolvida; indevidamente descontrolado,
servirá apenas para descaracterizar essa urbe, prostituindo-a ao sabor dos
interesses económicos e financeiros em voga.
E agrava também o
problema da especulação imobiliária…
Agrava. No entanto, o problema da especulação imobiliária
transcende o turismo. Quando a rentabilidade de arrendamento ou venda um imóvel
ultrapassa aquela oferecida por qualquer produto bancário, a especulação
imobiliária entra no campo da própria especulação financeira tornando-se um
problema global.
Os preços nas grandes cidades está a tornar-se incomportável
para a maioria dos portugueses…
As causas para esse aumento são várias e complexas, no
entanto, ele abrange com maior intensidade as regiões de Lisboa, Porto e
Algarve. Penso que a incomportabilidade de preços dos imóveis para a maioria
dos portugueses não se resolve com políticas habitacionais municipais mas com
políticas salariais globais. Quando os funcionários públicos, elementos
representativos da classe média que poderia dinamizar esse mercado imobiliário,
não recebem aumentos há mais de uma década, falar de imóveis a preços acessíveis
é pura hipocrisia.
E os fundos de
investimento imobiliário?
Os fundos de investimento são mais um instrumento
institucional de rentabilização imobiliária. Falo especificamente em detalhe
dos seus benefícios e malefícios num dos capítulos do Manual de Crimes
Urbanísticos.
Mas não é um problema
tipicamente português….
Afecta na medida em que todas as cidades se tornaram objecto
de cobiça e potencial rentabilidade num mundo cada vez mais globalizado e
competitivo.
Há algum país/cidade
que está mais longe destes problemas?
Provavelmente, só Pyongyang na Coreia do Norte. Tem o maior
hotel do mundo totalmente abandonado e não parece estar preocupada com questões
de rentabilidade...
Como é que para si devia ser uma cidade ideal?
É um erro pensar que a cidade é apenas um aglomerado de
edifícios. Numa cidade, existem espaços verdes, vias de circulação,
instituições, relações sociais e toda uma diversidade de outros componentes que
contribuem para a sua vivacidade. Como tal, uma cidade ideal deveria assemelhar-se
a uma orquestra: suficientemente diversa nos seus instrumentos e sonoridades,
mas apta a produzir coesão musical através do ritmo, melodia e harmonia que
cada um desses instrumentos e sonoridades produzem. E nesta orquestra urbana
inclusiva, a todos os cidadãos deve ser dado um instrumento para tocar.
A ideia de existir uma cidade sustentável não passa de um
sonho?
As cidades sustentáveis já existem e são aquelas de que
ninguém fala como tal. São as cidades média de Portugal que tem a sua população,
o seu emprego, o seu património e o seu modo de vida minimamente estabilizado.
São aquelas que não precisam de arranjar sistemas complexos de transporte
porque as pessoas deslocam-se para qualquer lado sem problemas (dado que as
distâncias são curtas); são aquelas onde a criminalidade é reduzida porque
quase toda a gente se conhece; são aquelas que produzem bens e serviços
essenciais à escala local; são aquelas que não precisam de ser faladas em
conferências internacionais porque não existe nenhum produto ou tecnologia
«smart city» que seja necessário vender-lhes para melhorá-las. Enfim, são
aquelas cidades simples, parcimoniosas, humanas, funcionais, belas, com
história e com carácter.
Sem comentários:
Enviar um comentário