“Em Alfama, na Rua dos Remédios, há 230 casas no Airbnb e só
uma ou duas disponíveis para moradores.
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Alojamento local. Prólogo de uma
Lisboa sem alma
Nos bairros históricos de Lisboa, os
impactos do alojamento local são uma constante. Não há números sobre saídas
forçadas, mas há quem esteja a estudar o fenómeno de gentrificação. “Em Alfama,
na Rua dos Remédios, há 230 casas no Airbnb e só uma ou duas disponíveis para
os moradores”, diz investigador
Beatriz Dias Coelho
21 de setembro 2017
Aproxima-se o final da manhã de uma terça-feira e na zona da
Sé vive-se o bulício já tão característico da Baixa lisboeta. Carros e tuk-tuks
compõem a paisagem e as buzinas enchem os ouvidos, enquanto nos passeios
pululam turistas com mochilas às costas e os portugueses são uma espécie rara.
No sítio para onde nos encaminhamos, porém, o ritmo é calmo – ouve--se até,
ocasionalmente, o canto dos pássaros –, há uma aura da Lisboa típica intocada e
a língua mais ouvida (ainda) é o português. Fica ali muito perto, depois da Sé,
escondido por um portão bem na esquina de dois prédios – chama-se Pátio do
Carrasco.
“Antigamente, Lisboa era pobre em riqueza, mas rica em alma.
Hoje em dia, é rica como cidade, mas pobre em alma.” Quem o diz é Carla Cunha,
de 38 anos, uma moradora do pátio que está a sofrer um dos efeitos mais
impactantes da explosão do turismo em Lisboa: o novo senhorio, que comprou o
prédio em abril, não lhe renova o contrato de arrendamento porque quer fazer
obras profundas, para, segundo Carla, abrir um alojamento local. “Já o faz em
dois apartamentos...” Por isso, até dia 30 de setembro tem de deixar a casa
onde vive há cinco anos com as duas filhas menores e o companheiro.
Carla não morou sempre aqui, é certo, mas Lisboa é a sua
cidade: nasceu no Regueirão dos Anjos e sempre viveu na capital. É a cidade que
viu nascer as suas filhas, justifica, e não queria ter de abandoná-la. É a mais
nova entre os vizinhos do pátio, mas criou uma ligação com eles e ajudam-se
todos no que é preciso. “Aqui, é como se fôssemos uma pequena aldeia”, diz. É
ali na zona, também, que as suas filhas frequentam a escola. A acompanhar a
conversa, o barulho das obras do último andar, propriedade do mesmo senhorio.
Desde abril tem procurado casas para arrendar naquela e
noutras zonas, mas as opções que encontrou têm uma renda que não consegue
suportar – e as que consegue são casas demasiado pequenas para quatro pessoas.
Paga 220€ de renda e vive com pouco mais de 480€ por mês de rendimento social
de inserção. Está desempregada, mas vai fazendo “uns biscates”. Tal como o
marido, é assistente de jardinagem, mas não arranja trabalho na área. Não
apresenta o marido porque esteve a trabalhar durante a noite, “a substituir um
padeiro que está de férias”, e ainda está a dormir.
Dia 26, Carla vai escrever à vereadora da Habitação da
Câmara Municipal de Lisboa, Paula Marques, com a ajuda de uma advogada, para
tentar uma vez mais ter uma audiência para expor a sua situação. Tem esperança
de que a câmara, com tantas casas devolutas e fechadas, possa ajudá-la e
alugar-lhe uma. “Mas o Estado quer é vender o património”, acusa. O tema tem marcado
o debate dos candidatos à CML, com Fernando Medina a garantir que a câmara tem
comprado mais património do que aquele que vende e garantindo que está em
marcha o programa Renda Acessível, que vai criar 6 mil novas habitações na
cidade. Os adversários do autarca à esquerda e direita não poupam críticas às
políticas de habitação seguidas nos últimos anos e ao ritmo demasiado lento na
criação de ofertas acessíveis.
“Tenho uma tenda T3 e monto-a em qualquer lado” Carla aponta
duas casas que já estavam fechadas quando se mudou para o Pátio do Carrasco.
“Os donos não aparecem”, lamenta, e a câmara nada faz. Num pátio histórico como
aquele, com marcas arquitetónicas que remontam a 1755, a câmara podia, aliás,
“ter-se metido na venda” do prédio onde Carla mora, “mas não liga”.
Se até dia 30 não arranjar uma solução, recusa-se a
abandonar a casa. “Se fosse só eu e o meu marido… Eu tenho uma tenda T3 e
monto-a em qualquer lado. Agora, com as minhas filhas, não. Vou para a rua e
vem o Tribunal de Menores.”
Em Alfama encontramos outro caso: António Melo, de 71 anos,
está desde 31 de maio a viver ilegalmente na casa que arrendou durante dez
anos, um rés-do-chão no Beco da Lapa. No ano passado, o prédio foi comprado e
não lhe renovaram o contrato. Além de um casal e outro senhor, é o único
inquilino que não saiu – todos os outros, conta, cederam à pressão para saírem
das casas. Agora, os apartamentos estão em obras, e o barulho impede a conversa
dentro de casa. António Melo sabe que quem comprou o prédio – “uma empresa com
um nome pomposo, Trilhos de Charme” – quer fazer alojamento local. Uma rápida
pesquisa online confirma-o: a empresa exerce como atividade “alojamento
mobilado para turistas”.
Enquanto caminhamos com António para uns bancos e deixamos o
barulho das obras para trás, passam vários turistas. Uma mulher com sotaque
inglês mete a chave à porta numa casa típica do bairro. “O presidente da junta,
Miguel Coelho, e outras pessoas na câmara dizem-me para não abandonar a casa
enquanto não me arranjarem outra”, prossegue o lisboeta. Sabe que no caso dos
moradores do n.o 25 da Rua dos Lagares, a ação conjunta da Junta de Freguesia
de Santa Maria Maior e da Câmara Municipal de Lisboa impediu o despejo
coletivo. Quer que o mesmo aconteça no seu caso, já que “a freguesia é a
mesma”.
Por agora, não há qualquer ajuda à vista. António Melo
nasceu em Santa Catarina e foi viver para Alfama com cinco anos. A vida deu
voltas e, depois de passar por outras localidades do país, acabaria por
regressar a Alfama há dez anos. Alfama é a sua casa. E, de um dia para o outro,
tudo mudou. Recebeu uma ordem de despejo do Balcão Nacional de Arrendamento,
mas “eles dão 15 dias para a pessoa contestar”. Assim fez, e neste momento está
à espera que a Segurança Social nomeie um advogado para o defender. Já procurou
casa, mas todas têm rendas acima de 400€ e a reforma – cerca de 600€ – não
chega. Tal como Carla, fala da falta de casas que existem para arrendamento de
longa duração e das rendas elevadas – e incomportáveis – que têm as que existem
no mercado. Mas não desiste: sabe que na Rua do Vigário há dois apartamentos em
obras, e está à espera que as obras acabem para ver se lhe arrendam um. “Não se
sabe se eles depois querem transformar aquilo em alojamento local, não é? Isto
agora é o que está a dar”, desabafa.
Alguns vizinhos do prédio foram para casas de familiares. Há
um casal que ocupa, há quase dois anos, uma casa que estava desocupada – “o
senhorio não se interessa pela casa”, deduz. Nos últimos dias, um movimento
cívico tentou também ocupar um prédio em Arroios. António não tem esses planos.
Diz apenas que é em Alfama que tem todas as suas relações – da família, restam
apenas uns primos afastados – e se sair do bairro teme ficar isolado. “Há dias
em que, se acordo mais tarde, os vizinhos ficam logo preocupados e acham que
aconteceu alguma coisa.” Além disso, foi operado ao coração há alguns anos e
ali tem a médica de família, que o segue todos os meses. Receia perdê-la.
Uma questão de memória Os moradores dos bairros históricos
de Lisboa sabem que o turismo é bom para a economia, mas pedem um equilíbrio. O
que será dessas zonas lisboetas com cada vez menos habitantes locais e cada vez
mais turistas? O sociólogo João Pedro Nunes lembra que esta é uma tendência
cada vez mais comum, não só em Lisboa, mas à escala global. Traça, em poucas
palavras, a realidade lisboeta: o que tem vindo a acontecer nestes bairros é
que “muitas vezes são os mais novos os primeiros a sair, e os mais velhos ficam
por estarem protegidos pelas leis do arrendamento”.
A maioria da população idosa residente nestes bairros tem
contratos de arrendamento anteriores a 1990. Em muitos casos, os senhorios
acabam por negociar a saída com os inquilinos, em troca de indemnizações
atrativas. E, por vezes, a pressão dos senhorios acaba por gerar situações
trágicas.
Carla Cunha fala de um episódio que aconteceu com uma
vizinha da zona: “Houve uma senhora que já tinha 92 ou 93 anos, muito lúcida,
que ficou maluca por causa do senhorio. Hoje está num lar.” Era uma mulher
sozinha, sem filhos, que ali viveu toda a vida. Os vizinhos fizeram um
abaixo-assinado na esperança de conseguirem travar a situação, mas a idosa
acabou por ter de sair.
À medida que muitos vão saindo instala-se em quem fica “um
sentimento de que já não há lugar, de que se está fora do lugar”, explica João
Pedro Nunes.
São os idosos aqueles que mais sofrem com esta conjuntura,
admite o sociólogo. À sua volta, nas casas onde outrora viveram os amigos de
uma vida, entram e saem caras desconhecidas que se sucedem de forma muito
rápida. “As redes de relacionamento tornam-se muito débeis e precárias”, nota o
investigador. Consequentemente, surge um paradoxo: se é certo que estes bairros
são particularmente atrativos para os visitantes, que “procuram sempre
elementos tidos por autênticos”, também o é que esse ambiente genuíno “está em
risco de desaparecer”. João Pedro Nunes contextualiza, mostrando que há uma
perda de referências daquilo que é antigo e histórico: “A mercearia passa a ser
uma ‘deli’ aberta 24h por dia, o antigo cafezinho e leitaria do bairro
transforma-se em casa de fados à noite.”
O sociólogo não tem dúvidas de que “há, de facto, um
problema nestes bairros”. É natural que as memórias associadas a um espaço e
que o caracterizam se vão perdendo mas, atualmente, isso está a acontecer de
uma forma mais acelerada.
Uma Lisboa dos turistas e sem dados sobre saídas forçadas “O
alojamento local explodiu em Lisboa como explodiu noutras cidades do mundo”,
mas aqui “não está a ser minimamente regulado”, diz Rita Silva, presidente da
Associação Habita – Coletivo Pelo Direito à Habitação.
Nos últimos anos, à semelhança desta associação, têm surgido
inúmeros movimentos que na sua base têm, entre outros motivos, a explosão do
turismo e os efeitos que tem tido pelo país em geral e em Lisboa em particular.
Rita Silva defende que o alojamento local “tem de ser regulado” e que, em
Portugal, tem sido promovido – ou não tivesse um “regime fiscal melhor e mais
compensador para os senhorios do que o regime fiscal do arrendamento”. A
presidente da Habita denuncia uma realidade familiar a quem procura casa na
capital: “há um aumento brutal das rendas” e há pouca oferta para arrendamento
de longa duração.
O facto de não haver regulação gera outro problema: a
inexistência de números e estatísticas. “Já foram milhares de pessoas
expulsas”, denuncia Rita Silva, que tem acompanhado várias famílias em risco de
perderem as suas casas. As únicas estatísticas que existem são do Balcão
Nacional do Arrendamento – ao qual compete dar ordem de despejo a inquilinos
por falta de pagamento ou por se manterem na casa depois da data acordada no
contrato, os casos extremos. Revelam que, entre janeiro e junho de 2017, cinco
famílias foram despejadas por dia em Portugal.
A face oculta do problema são os inquilinos cujo contrato
não é renovado e têm de deixar as casas. Não há números sobre isso nem
estatísticas que indiquem quantas dessas casas são depois usadas para
alojamento local.
Apesar de não haver números, é possível ter uma ideia da
extensão do problema. Agustin Cocola Gant, investigador catalão do Centro de
Estudos Geográficos na Universidade de Lisboa, tem vindo a estudar desde 2015,
juntamente com a investigadora Ana Gago, o impacto do turismo nos bairros
históricos de Lisboa e o fenómeno da gentrificação. Tem ainda poucos dados, mas
revela ao i um exemplo que ilustra bem o que está a acontecer: “Em Alfama, na
Rua dos Remédios, há 230 casas no Airbnb e só uma ou duas disponíveis para
moradores. Se uma pessoa quiser arrendar uma casa lá, não há”, denuncia,
acrescentando que “há uma substituição do mercado de arrendamento de longa
duração por curta duração”.
O investigador lamenta o que está a acontecer na cidade ao
nível da habitação e do turismo e defende que é muito semelhante ao que
aconteceu em Barcelona, onde investigou o mesmo fenómeno. Tal como Rita Silva,
verifica que “há muitas pessoas que estão a ser despejadas, mas não se sabe ao
certo quantas porque não há quem controle”. Uma das conclusões do investigador
é que há muitos prédios nesses bairros que estão a ser recuperados, “mas não
para o residente local, é para os turistas”.
Segundo Gant, Lisboa está imersa num “círculo vicioso”: as
pessoas são despejadas, os prédios são reabilitados para alojamento local, há
cada vez menos oferta no mercado de arrendamento de longa duração e os preços
são cada vez mais elevados. Contudo, refere que o problema habitacional não se
deve apenas à explosão do alojamento local, apontando o exemplo do estatuto dos
residentes não habituais. “Estas zonas turísticas são atrativas para moradores
europeus, turistas de longa duração, que compram aqui habitação para segunda
residência. São muitas vezes ingleses ou alemães que durante vários anos têm
benefícios fiscais”, afirma.
Para o investigador, a falta de informação estatística é
“preocupante” e resulta da ação da Câmara Municipal de Lisboa, que “não tem
vontade de saber exatamente o que está a acontecer”.
Um futuro melhor? Contactada pelo i, fonte da Câmara
Municipal de Lisboa evocou o caso da Rua dos Lagares, sublinhando que tem dado
provas de que está empenhada em regular o alojamento local e conseguir um
“equilíbrio” entre as casas para turismo e o arrendamento de longa duração.
Eduardo Miranda, presidente da Associação do Alojamento
Local em Portugal (ALEP), também se mostra positivo em relação ao que tem sido
feito para regular o setor. “Tem havido uma grande evolução ao nível dos
registos”, sublinha. A 1 de julho entrou em vigor uma medida que obriga
plataformas como o Airbnb ou a Homeaway a mostrar o número de registo dos
alojamentos locais.
A medida veio combater a ilegalidade: nas plataformas, só
podem agora constar casas que estejam registadas no Registo Nacional de
Alojamento Local (RNAL), ou seja, que estejam legais e cumpram as obrigações
fiscais que disso advêm. Até à aprovação dessa medida havia uma “grande
disparidade” entre o número de imóveis que apareciam nas plataformas e o número
de imóveis registados no RNAL, isto é, legais, continua Miranda. Segundo as
contas da ALEP, “até a nova medida entrar em vigor, 20% dos alojamentos locais
em Lisboa não estavam registados”.
A associação fez uma análise relativa ao período
compreendido entre o anúncio da medida e a sua implementação – maio, junho e
julho –, “e nesse período registou--se o maior processo de legalização de
sempre”. Eduardo Miranda revela que “em Portugal inteiro, houve 3500 novos
registos, um número que está muito acima do que é o crescimento normal do setor
– e que provavelmente advém da legalização e está muito associado à nova
medida”. Lisboa revelou a mesma tendência: houve quase 600 registos “que, quase
de certeza, se devem ao processo de legalização, porque em Lisboa o número de
registos já estava bastante estabilizado e, de repente, houve um salto
completamente invulgar”.
Miranda acredita que, no futuro, as novas obrigações legais
levem a menos alojamentos locais, principalmente nas zonas onde há maior
concentração, como é o caso da freguesia de Santa Maria Maior, que integra
bairros históricos como Alfama, Baixa, Castelo ou Mouraria. E recorda que, a
par do crescimento do turismo, a crise e o desemprego foram os principais
motores para o crescimento tão acentuado do setor. Mas reconhece o outro lado
da moeda. “Perante a hipótese de os proprietários que tinham rendas baixas há
muitos e muitos anos fazerem outra coisa com o imóvel”, muitos optaram por
alojamento local.
Eduardo Miranda recusa, porém, a ideia de que a atividade
seja sinónimo de dinheiro fácil. O responsável assinala que esta é mesmo uma
mensagem que a ALEP tem procurado clarificar. “Se alguém tira uma rentabilidade
um pouco maior é porque é um emprego, é um autoemprego, e tira-se uma
rentabilidade maior pelas horas que se dedicam à atividade”, remata.
Um problema maior Para Rita Silva, da Habita, é inegável que
existe um problema de habitação não só nos bairros históricos mas em toda a
cidade e no país. E apesar da explosão do alojamento local ser em parte
responsável, uma vez que tem vindo a subtrair um grande número de habitações ao
arrendamento de longa duração e provocou um aumento exponencial das rendas,
afirma que não se deve reduzir a questão a este fenómeno em particular. “As
políticas de habitação quase não existem”, lamenta.
E se aí os avanços foram parcos, nos últimos anos, a nova
lei das rendas, o estatuto dos residentes não habituais e os vistos gold
facilitaram a vida a apenas algumas das pessoas que escolhem a capital para
viver, e quase sempre as que vêm de fora.
A discussão promete continuar, entre moradores e também no
centro da campanha eleitoral em Lisboa. Amanhã há um novo debate a juntar os
primeiros candidatos das listas do BE, do CDS, da CDU, do PAN, do PSD e do PS à
Câmara de Lisboa, desta feita promovido pela Morar em Lisboa. A iniciativa terá
lugar no Fórum Lisboa, pelas 21 horas.
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