"Cowspiracy"
Pode um documentário sobre vacas
mudar os nossos hábitos?
Chamam-lhe a conspiração
da indústria da carne e revelam dados que a provam, alegam os realizadores. Já
exibido em Portugal, o documentário reabriu a discussão sobre a alimentação
sustentável — e até já mudou hábitos
Texto de Ana Maria
Henriques • 29/01/2015 – P3 / PúBLICO
Não tem (muitas) imagens
que impressionam, ao contrário do que acontece com outros documentários que
alertam para a realidade da criação de animais para consumo. São os números,
apresentados em hora e meia, que mais chocam quem assiste a “Cowspiracy — A Sustainability
Secret”. Entre tentativas falhadas de chegar à fala com associações de defesa
do ambiente, entrevistados que evitam questões incómodas e especialistas que
sublinham o impacto altamente nocivo da exploração pecuária intensiva para a
saúde da Terra, Kip Andersen e Keegan Kuhn criaram um documentário “que
incentiva as pessoas a agir, sem ser impositivo”.
A análise é de Rita Silva, presidente da
Animal há já 11 anos. “Tenho recebido dezenas de e-mails de pessoas, que me
conhecem ou não, que depois de verem o filme ficaram mesmo mudadas, tiveram um
clique”, diz em entrevista ao P3. No início de Janeiro, “Cowspiracy” foi
exibido num cinema de Lisboa, com sessão dupla. A iniciativa partiu de Rita e
do apresentador de televisão João Manzarra. A primeira é amiga de um dos
realizadores do filme e desde que ouviu falar dele que o queria passar em
Portugal. O segundo reconheceu o impacto que ver o documentário teve na sua
vida: perante milhares de seguidores nas redes sociais, Manzarra assumiu uma
nova dieta baseada em produtos de origem vegetal e vendeu a participação numa
petisqueira da qual era sócio, por uma questão de consciência.
Sheila Teodoro foi uma das espectadoras no
cinema do Saldanha Residence. Já tinha ouvido falar do filme, mas não sabia
propriamente o que esperar. Como veterinária, a jovem tinha noção de algumas
das consequências ambientais da agro-pecuária mas não estava preparada para os
números [vê coluna da esquerda]: “Depois de ver os factos foi fácil mudar”.
Sheila, que não come carne há perto de 20 anos, abandonou de vez os derivados
de origem animal e o peixe. Sente-se bem com esta mudança alimentar — “hoje em
dia é tão mais fácil ser-se vegano do que era há 20 anos” —, consequência
assumida dos factos revelados por Kip e Keegan. “Para mim, faz todo o sentido,
sobretudo depois de saber a percentagem de emissão de gases, o gasto de água na
produção de lacticínios e o impacto nos oceanos”, enumera.
A mesma reacção teve Raquel Graça, designer
freelancer de 30 anos: “Tu olhas para aqueles dados e pensas: tenho que fazer
alguma coisa para contrariar isto”. Assim Raquel pensou, assim o fez: a carne
deixou de fazer parte da dieta, bem como o leite de vaca. Reduziu o consumo de
queijos e ovos e passou a comprar aqueles cuja origem conhece, com a
preocupação de optar por produtos locais — agir localmente para alcançar um
impacto global. “Não sou defensora de radicalismos, apenas de agir de forma
sustentável. É isso que tenho tentado fazer”, expli Má distribuição dos
alimentos produzidos
Má distribuição dos alimentos
produzidos
“Não seria necessário
todos deixarmos de comer carne. Seria, isso sim, que todos deixássemos de comer
tanta carne”, defende a jovem que vive no Porto. Opinião similar tem o
presidente da Quercus, Nuno Sequeira, que acrescenta outros dados à discussão.
A média anual de consumo de carne está, actualmente, nos 40 quilogramas por
pessoa; na década de 60 do século XX, ficava-se pelos 25. “Mais do que discutir
se devemos optar por um regime exclusivamente vegetariano ou não, o
documentário reitera que todos temos que fazer um esforço para alterar a nossa
dieta alimentar”, acredita.
Ao P3, o Grupo de Estudos de Ordenamento do
Território e Ambiente (GEOTA) observou ser “fácil concordar” com a redução de
ingestão de proteínas de origem animal, mas que esta implicaria “enormes
desafios”. “Será, sem dúvida, uma revolução global inevitável para a
civilização humana, tal como a conhecemos, poder sobreviver", remata. Até
porque, de acordo com o filme, uma dieta vegetariana reflecte-se numa
diminuição de 50% da pegada de carbono de cada um na Terra.
Há estimativas da Organização da ONU para a
Alimentação e Agricultura (FAO) que vão ao encontro desta ideia: é produzida
uma quantidade suficiente de alimentos, a nível mundial, para alimentar de
forma satisfatória toda a população terrestre. São é mal distribuídos — há
1.500 milhões de pessoas com excesso de alimentos.
Podem 51% das emissões globais de gases com
efeitos de estufa ter origem na pecuária e em todos os seus produtos derivados,
um valor muito superior àquele da responsabilidade de todos os transportes
combinados (13%)? Segundo dados da associação World Watch, sim. Mas para a FAO,
a percentagem desce para os 18%. A discrepância pode explicar-se, sugere o
presidente da Quercus, pelo facto de nas contas da FAO estar apenas considerada
a produção e não o transporte, por exemplo.
Portugal com elevada pegada hídrica
A dupla de realizadores
norte-americanos centrou-se, sobretudo, na realidade do seu país. Mas, e em
Portugal? “A nossa realidade é comparável numa outra dimensão”, alega Rita
Silva, concepção que o secretário-geral da Confederação dos Agricultores de
Portugal (CAP), Luís Mira, partilha. “A forma de alimentação dominante nos EUA
é uma aberração em termos de carga calórica e de quantidade, levando aos graves
problemas de obesidade que todos conhecem. Um exemplo: num restaurante
americano serve-se uma costeleta com 700 gramas, o que é impensável em
Portugal”, afirmou, remetendo para as declarações ao “Expresso”.
Portugal é dos países europeus com maior
pegada hídrica, aponta Nuno Sequeiro: 80% da água consumida é para efeitos de
agricultura. A nível mundial, de acordo com o documentário, um terço da água
doce da Terra é gasta na indústria da carne e dos lacticínios; o valor médio da
União Europeia é ainda mais elevado, chegando aos 46%.
Na introdução do filme, Kip conta como “Uma
Verdade Inconveniente” (2006), do antigo vice-presidente dos Estados Unidos Al
Gore, teve um impacto impressionante na sua vida. Os dados que o Prémio Nobel
da Paz de 2007 revelou fizeram com que Kip se tornasse “obcecado pelo
ambiente”: passou a reciclar absolutamente tudo, a usar a bicicleta como
principal transporte, a tomar duches mais curtos e a fechar a torneira na hora
de lavar os dentes.
Achava que estava a fazer tudo que podia para
“mudar o mundo” — afinal, parece que não. Estes gestos ajudam, claro, considera
Raquel. Mas, tal como o realizador de “Cowspiracy”, também a jovem se apercebeu
que um banho mais curto “representava uma coisa mínima”. “Isso foi mesmo o
choque maior”, confessa, porque “não tinha noção dos números”: 2500 litros de
água são suficientes para dois meses de banhos de chuveiro, mas apenas chegam
para a produção de um hambúrguer.
Ao não mencionar o impacto da pecuária nas
alterações climáticas, Al Gore deixou Kip “desiludido”, que juntamente com
Keegan trabalhou durante meses para perceber como o assunto está a ser tratado.
Associações de defesa do ambiente de nível global recusaram-se a prestar
esclarecimentos ou sequer a recebê-los. A Greenpeace — provavelmente a mais
conhecida e mediática — foi uma das que declinou. Raquel sentiu-se “muito
enganada”. “Tu achas que são elas que têm um papel importante em tentar mudar
algumas coisas e estão é a encobrir dados, a varrer para debaixo do tapete.”
Kip e Keegan, que a meio das filmagens viram
uma das fontes de financiamento retirar o apoio, recorreram a uma campanha de
“crowdfunding” em 2014. Inicialmente pediram 54.000 dólares (47.600 euros),
terminaram com mais de 117.000 ( perto de 103.000 euros). O DVD do documentário
pode ser adquirido por perto de 18 euros e a visualização online não chega aos
9 euros. Parte dos objectivos dos dois amigos — revelar a conspiração que
acreditam existir na indústria agro-pecuária e pôr as pessoas a pensar sobre o
assunto — parece ter sido alcançada.
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