Quando a Justiça
se senta no banco dos réus
Paulo Ferreira
1 Março 2020
A Justiça é o
último reduto quando tudo o resto falha. As imperfeições da democracia têm ali,
muitas vezes, a correcção possível. Se ela nos falha pode falhar-nos tudo. E
ela falha-nos.
Neste sábado a
“bolha” das redes sociais entreteve-se a discutir se o Expresso devia ter ou
não feito manchete com uma declaração da directora-geral da Saúde em entrevista
ao jornal: “Graça Freitas admite 1 milhão de infectados em Portugal”. Sim, é
uma discussão interessante. Mas prefiro destacar a honestidade e transparência
de Graça Freitas, colocando em cima da mesa cenários extremos num país onde a
regra é a relativização, a desvalorização e o relaxe. E isso, como sabemos,
volta e meia acaba muito mal.
O que é
preocupante é que mesmo ao lado dessa manchete o Expresso tinha outro título
que, aparentemente, não fez ninguém pestanejar: “Presidente da Relação viciou
escolha do juiz no caso Rangel”. Neste caso já não estamos perante cenários que
podem ser trágicos. O que se vai passando na Justiça é real, está a acontecer.
E não é bonito de se ver.
O Público deste
domingo volta ao tema com detalhes: o anterior presidente do Tribunal da
Relação de Lisboa combinou com o actual que seria este a ajuizar o recurso de
um processo que o também juiz Rui Rangel tinha perdido na primeira instância.
Tudo a pedido do interessado e, claro, feito à margem das regras para a
distribuição de processos por juízes. E, surpresa, não é que o Tribunal da
Relação veio a dar razão ao queixoso, invertendo a decisão anterior? E, nova
surpresa, não é que um novo recurso para o Supremo Tribunal de Justiça veio a
confirmar a primeira sentença, para desgosto de Rui Rangel e atirando para o
lixo o “cozinhado” que preparou com os dois colegas juízes da Relação?
É evidente que
aqui, como em qualquer área, não é uma andorinha que faz a Primavera. Nem duas
ou três. Nem quatro, vá lá, se recordarmos que a juíza Fátima Galante é também
arguida na Operação Lex, que está na origem disto tudo. Em todo o lado há gente
séria e gente pouco recomendável e os juízes não são uma casta especial.
Tem havido mais
casos individuais como a condenação do magistrado Orlando Figueira na Operação
Fizz ou a venda de informações processuais relacionadas com o Benfica a um
assessor jurídico do clube.
Mas há outros
sinais que denotam uma doença profunda do sistema. Nos últimos dias ficámos a
saber que um dos processos contra Vale e Azevedo prescreveu por terem passado
20 anos sobre os factos que deviam ter ido a julgamento – em causa estava o
desvio de 1,2 milhões de euros do Benfica para os bolsos do então presidente –
e que a decisão judicial que decidiu a demolição do Prédio Coutinho em Viana do
Castelo acaba de ser anulada por um tribunal superior 15 anos depois.
Estes são os
casos mediáticos. Por eles podemos suspeitar o que se passará em centenas,
milhares de outros processos que deixam vidas em suspenso durante décadas ou
permitem a impunidade de criminosos.
E podemos também
falar da falta de preparação moral e de valores que alguns juízes demonstram em
sentenças machistas que violam os mais básicos direitos de vítimas que tiveram
o segundo infortúnio de ir parar às mãos daqueles magistrados.
Não podemos
sequer ficar espantados com isso porque o machismo começa por reflectir-se na
carreira das próprias juízas.
Um sistema que
perpetua uma abissal diferença de tratamentos entre ricos e pobres, que não
consegue tomar decisões em tempo útil para cumprir a sua função mais básica,
que maltrata vítimas com frequência, onde aparecem focos de corrupção a vários
níveis ou onde a percepção de independência e coragem na investigação criminal
de poderosos anda ao sabor de quem ocupa os cargos é um sistema doente.
De todas as
grandes áreas sectoriais a Justiça é aquela onde a democracia mais falhou. Nada
na Educação, Saúde, Segurança, Defesa ou áreas sociais se lhe compara, apesar
das visíveis dificuldades numa ou noutra área.
E logo a Justiça.
Ela que é olhada como o último reduto quando tudo o resto falha. As
imperfeições da democracia têm ali, muitas vezes, a correcção possível. É na
Justiça que os cidadãos devem confiar para o equilíbrio de relações que, à
partida, são desequilibradas e injustas. É para ela que todos olham para travar
abusos dos poderes. É nela que queremos confiar para lutar contra a corrupção
ou a fraude, a violência ou os ataques à propriedade os abusos da liberdade de
imprensa ou dos eleitos.
Se ela nos falha
pode falhar-nos quase tudo. Não sabemos se todos os protagonistas da Justiça
terão a noção do que se está a passar e da gravidade das consequências.
Pelo menos a
Associação Sindical dos Juízes já terá percebido, o que já não é pouco num
sector onde o corporativismo reina, como em tantos outros. Vamos ver os estes
alertas vindos de dentro são eficazes.
E as restantes
partes interessadas? O Conselho Superior da Magistratura? O Supremo Tribunal de
Justiça? O Presidente da República e o Governo? Os advogados?
Não se vê ninguém
particularmente preocupado com o que se passa. Nem para os habituais “é preciso
uma profunda investigação, doa a quem doer, custe o que custar” que, como os vestidos
pretos, ficam sempre bem e nunca comprometem.
Os rituais do
sector sucedem-se da mesma forma, com as mesmas vestes, com os mesmos
formalismos, com o mesmo respeitinho, com os mesmos salamaleques, com os mesmos
e repetitivos discursos e apelos. As aberturas oficiais dos anos judiciais são,
aliás, um bom retrato do imobilismo e clausura a que o sector se remeteu,
alheio ao mundo que o rodeia.
Fazem-se ou
simulam-se “pactos para a Justiça”.
Mas há uma parte
da Justiça que teima em perpetuar os tiques do tempo da outra senhora. E não há
democracia saudável que possa resistir a uma coisa destas.
Paulo Ferreira
Colunista
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