O
leilão onde todos vão perder
MANUEL CARVALHO
08/11/2015 / PÚBLICO
A política em
Portugal virou o mundo ao contrário e já ninguém pode dizer ao
certo quem é quem e o que é o quê. Com o descalabro do sistema
partidário tradicional vemos agora a Coligação do PSD e do CDS a
querer governar com partes do programa do PS, vemos o PS a negociar
um programa inspirado nas propostas do Bloco e do PCP, vemos o Bloco
a renunciar a muitas das suas exigências de esquerda para se
aproximar do centro e só não sabemos em que lugar está o PCP
apenas porque o PCP ainda está aturdido com tantas novidades. O que
tudo isto quer dizer antes de mais é que os partidos, todos os
partidos, se tornaram ainda mais máquinas de conquistar o poder, nem
que para isso tenham de vender a sua alma ao diabo, dar o dito pelo
não dito e transformar os jogos de alianças em necessidades
absolutas para derrotar os inimigos. Se a política portuguesa já
era uma duvidosa artimanha alimentada por uma elite (a oligarquia,
como lhe chama o historiador Rui Ramos), está agora a transformar-se
numa barraca de feira onde vale tudo para vender melhor o peixe.
Deste pântano,
ninguém se salva. Passos Coelho, que conseguiu passar uma imagem de
coerência e determinação a uma parte significativa do eleitorado
durante a campanha eleitoral, foi o primeiro a afundar-se. As suas 23
propostas para a negociação de um acordo com o PS foram um primeiro
passo para declarar em público que, afinal, toda a prudência com as
contas do Estado, todos os cuidados com o ritmo da devolução dos
salários cortados ou dos impostos cobrados eram apenas um engodo
para legitimar a dureza da sua governação e a submissão aos
ditames dos credores internacionais. Afinal, o rosto da ortodoxia
fiscal e da inevitabilidade da austeridade era capaz de sorrir e de
avançar medidas mais simpáticas. Já nas últimas semanas, o
desespero de Passos e Portas em evitar a fuga do PS para a órbita da
esquerda foi tão longe que deixamos de poder falar em cedências
negociais para seduzir os socialistas para ser legítimo concluir
que, afinal, o programa da Coligação era, como diz a esquerda, um
embuste para esconder a tentação ideológica que afastou o PSD da
sua raiz social-democrata.
Quando Passos e
Portas concordam com uma devolução mais rápida dos salários ou
aceitam adiar por um ano o cumprimento das metas orçamentais
inscritas no Pacto de Estabilidade de Crescimento, não estão a
negociar: estão a desconstruir a sua imagem e a banalizar as suas
prioridades políticas. Porque se, como nos disseram e reiteraram,
Portugal só poderá aspirar a uma nova fase de crescimento se for
capaz de disciplinar as suas finanças públicas, então jamais
poderiam ceder nesse princípio essencial. Fazendo-o agora entregam
os seus despojos políticos à razão dos adversários e erguem-se
como os arautos de um fundamentalismo e de uma arrogância que, tarde
ou cedo, lhes custará caro. Dificilmente a curto prazo terão como
responder a perguntas simples e directas: por que razão não
recuaram antes nestes domínios para obter a aquiescência do PS em
reformas essenciais? Por que razão não apresentaram um programa
eleitoral mais flexível e amigo dos cidadãos, se, como agora
reconhecem, era possível relaxar os cortes e o ritmo da consolidação
orçamental sem que o mundo acabasse?
Neste mundo ao
contrário, também o PS soçobra na coerência, derrapa na firmeza
da palavra e deixa esvair a sua identidade. Já lá vai o tempo em
que se acusava António Costa de falta de lealdade e transparência
perante o seu eleitorado, já deixaram de se ouvir as patetices de
uma certa direita em relação a golpes ilegítimos e acabaram de vez
os sobressaltos com a ameaça de uma frente esquerdista capaz de
fazer regressar os fantasmas do PREC. O que hoje vale a pena notar é
como o PS se tornou numa bola de plasticina que o PCP e, mais
eficazmente, o Bloco se entretêm a moldar. Já percebemos pelos
problemas da negociação com o PCP que António Costa estabeleceu um
limiar mínimo para as cedências que o devem fazer repetir um milhão
de vezes a Jerónimo de Sousa a velha máxima do ex-ministro Vítor
Gaspar: “Não há dinheiro. Qual destas três palavras não
percebeu?”. Mas ao querer vender o robalo da esquerda para arrasar
o negócio da dourada da direita, António Costa deitou ao caixote do
lixo o programa de Mário Centeno e transformou-se num coleccionador
de recusas de um passado em vez de aparecer como um porta-voz de
asserções para o futuro. Para um aspirante a primeiro-ministro, é
muito pouco.
O PS de António
Costa vai liderar um governo de copy-paste. Sempre que aparecer um
texto novo para ler e interpretar, seja o agravamento da conjuntura
económica ou um estouro imprevisto em assuntos como o do Novo Banco,
o PS estará condenado a reiterar a sua condição de vassalo aos
seus fugazes aliados — isto partindo do princípio que o PCP lhe
concede alguma suserania. Se é verdade que António Costa parece
estar a conseguir vergar a sua esquerda na questão essencial (a
disciplina orçamental indispensável para preservar os acordos
europeus), em tudo o resto parece um saco de boxe. Tem de aguentar
muita pancada. O governo que em tese vai liderar é um pano remendado
que se romperá ao primeiro esticão.
Claro que nesta
transformação da política num leilão onde vale tudo para chegar
ao poder, o PCP e o Bloco se vão empenhar nas proclamações
tonitruantes do costume para elogiar as conquistas dos trabalhadores
e do povo em geral. Nenhuma destas forças vai dizer que, afinal, há
um limiar de austeridade intransponível, que há compromissos que
não se quebram, que há dívidas que não se renegoceiam, que há
salários baixos não porque em Portugal haja uma classe de
capitalistas opressora, mas porque a produtividade da economia é
deplorável. Entre a ilusão e a realidade, o peso de uma vitória
sobre a direita poderá ser capaz de diluir as pressões e o
descontentamento durante uns tempos. Tarde ou cedo, porém, a
esquerda à esquerda do PS vai equacionar se a sua entrada na feira
das ilusões para disputar o poder foi um bom negócio.
Com o peso de uma
memória de décadas, o PCP já o está a fazer. Todas as suas
indecisões, cautelas e atrasos são o sinal dos perigos que a
exposição aos compromissos com a governação coloca. Quem não
gostaria de assistir à discussão sobre o acordo no Comité Central?
Que dirá a velha guarda sobre o respeito do tecto do défice nos 3%?
Para o Bloco, tudo é mais simples. Entre o que defende e o que se
dispõe a aprovar há um oceano de diferenças, mas Catarina Martins
(que se confirma como uma das mais geniais personalidades políticas
das últimas gerações) foi capaz de as aplacar com oportunidade e
inteligência. Ainda assim, também o Bloco é incapaz de se poupar à
mácula de trocar princípios por influência e poder. De todos, será
o partido mais protegido. Mas, como todos, será um dia convocado a
prestar contas por este espectáculo no qual todos ficaremos a
perceber que no final do leilão o que sobressaiu não foi a
política: foi a inconsistência da classe que a protagoniza.
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