A
Presidência de Cavaco está prestes a acabar
Foi
a proverbial arrogância de Cavaco que o arrastou para o pântano
onde se encontra
Manuel
Carvalho / 22-11-2015 / PÚBLICO
Se a vida política
em Portugal fosse uma coisa normal, ninguém estranharia que o
Presidente da República demorasse duas semanas a ponderar a
indigitação de um primeiro-ministro que não liderou o partido ou
coligação vencedora das eleições e que se oferece para o cargo
após ter apresentado ao Parlamento uma moção de rejeição que
derrubou a solução escolhida por Cavaco Silva. Mas como nada é
normal neste país depois do dia 4 de Outubro, a demora do Presidente
deixou de ser vista como um simples acto de prudência, de ponderação
ou de cuidado, para ser encarada como uma manifestação odiosa de
mau perder. Porque depois de tudo ter sido dito e discutido, o
Presidente que garantiu ao país ter uma resposta para qualquer
desfecho das eleições deveria ter sido rápido a perceber que tinha
de assumir a inviabilidade dos seus desejos e nomear depressa António
Costa. Ao deixar-se enredar em visitas à Madeira, em discursos
dúbios sobre a normalidade de governos de gestão e ao deixar o país
arrastar-se na decisão durante uns penosos 50 dias, o Presidente
delapidou ainda mais o parco capital de imagem que lhe sobra.
ENRIC VIVES-RUBIO
Cavaco Silva ficará
para a posteridade como um caso de estudo dos limites do culto da
personalidade no sistema político. O homem que se anunciou como
providencial para desatar todos os nós da fragmentação dos
partidos e da crispação alimentada por quatro anos de uma
governação difícil transfigurou-se num gigante com pés de barro.
Tudo lhe saiu ao contrário. A segurança que tentou criar sobre os
estilhaços das eleições desfez-se com a recusa de António Costa
em restaurar qualquer cenário de bloco central; as exigências que
fez ao futuro Governo são hoje literatura romanceada de um desejo
impossível; as declarações de vontade que foi deixando em favor de
uma possibilidade de Governo de gestão ou de iniciativa presidencial
esfumaramse perante a evidência de um Parlamento voltado para outras
escolhas.
O Presidente
prepara-se assim para viver os seus últimos meses de mandato
embrulhado no signo da impotência e da derrota pessoal. O que
vitimou a sua imagem e o seu legado para o futuro não foi, no
entanto, a ausência de razão ou de racionalidade na sua posição;
foi principalmente a forma emocional, individualista e intransigente
como conduziu o processo político. Cavaco Silva, bem se sabe, é o
homem que nunca tem dúvidas e raramente se engana e foi essa
proverbial arrogância que o arrastou para o pântano onde se
encontra. Ninguém o censuraria por tentar promover uma aproximação
do PS à coligação, porque seria aí que, em teoria, haveria uma
maior margem de manobra para consensos estratégicos para o futuro do
país. Ninguém o questionaria por pretender afastar da esfera do
poder partidos que, pela sua natureza e história, introduziriam na
governação doses de experimentalismo pouco recomendáveis para um
país que continua em convalescença após quatro anos de terapia de
choque imposta pela troika e diligentemente aplicada pelo Governo. O
problema de Cavaco foi não perceber que, na situação actual, os
limites ao seu poder não recomendavam a intransigência, antes a
sedução e a pedagogia. E o respeito pela diferença de opiniões,
desde que constitucionalmente consagradas. Atributos que
reconhecidamente lhe faltam.
A decisão de ouvir
mais uma vez 24 organismos da vida pública e os sete partidos
representados na Assembleia tornou-se assim um expediente patético
para o Presidente iludir as suas derradeiras fragilidades antes de
cair no buraco que ele próprio cavou. Quer queira, quer não queira,
a solução de Governo apresentada por António Costa é legítima e,
pelo menos em tese, tem o suporte que determina em Portugal quem pode
governar: o da Assembleia da República. Cavaco sabe-o, mas, como tem
dificuldade em encarar essa realidade, preferiu tergiversar
multiplicando encontros com personalidades que toda a gente sabe o
que tinham para lhe dizer. Foi como que uma espécie de último gesto
de um homem vencido antes de deitar a toalha ao chão. Agora, já não
há margem para qualquer nova exigência, para qualquer novo
compromisso. A solução política que tinha na mente para o país
podia ser óptima, mas não passava de uma quimera destruída pela
obstinação de António Costa e pela convergência táctica do Bloco
e do PCP. Se é o Parlamento quem manda, Cavaco nunca se deveria ter
envolvido numa guerra que estava condenado a perder.
Depois de estourar o
seu capital político, Cavaco Silva fica agora reduzido à condição
de figura decorativa, numa altura em que, dada a fragilidade da
solução de Governo do PS, a função moderadora do Presidente
poderia revelar uma particular utilidade. Os embates entre o PS e o
Bloco e, principalmente, entre o PS e o PCP já começaram e vai ser
necessária muita ponderação para manter um mínimo de estabilidade
na relação entre as forças que se dizem dispostas a viabilizar o
Governo. Num quadro normal, o Presidente poderia ser um árbitro,
suprimindo disputas e aproximando posições — porque o que, de
facto, o país precisa é estabilidade e consensos mínimos. Cavaco
Silva deixou de poder ter qualquer hipótese de representar esse
papel. Para os partidos da esquerda (e para os cidadãos de Direita
que se disponham a analisar a presente situação com um mínimo de
distanciamento), Cavaco é o representante de uma facção, um
paladino da direita, um intruso que transformou a Presidência numa
trincheira do PSD e do CDS.
É difícil não
encontrar uma vaga dimensão shakespeariana de injustiça neste
estertor da sua carreira política. Cavaco foi dez anos
primeiro-ministro num dos melhores períodos para se viver em
Portugal em muitas décadas ou séculos; Cavaco foi duas vezes
reeleito como Presidente e teve em muitos momentos dos seus mandatos
lucidez para fazer avisos pertinentes ou para denunciar a “má
moeda” que se instalava na máquina do Estado. A visão de Cavaco
para o país, uma democracia liberal, firmada e comprometida com a
União Europeia, com regras do mercado abertas mas temperadas por
mecanismos de redistribuição de matriz social-democrata, é a que a
maioria dos portugueses seguramente partilha. O seu problema maior,
porém, sempre foi o seu radicalismo e a sua incapacidade para
conceber um país com ideias diferentes das suas. Foi, afinal, a sua
intolerância. Numa crise política como a actual, com a fractura
esquerda/direita exposta, a sua personalidade estava condenada a agir
como um elefante numa loja de porcelana. Foi isso que aconteceu, com
as consequências que se conhecem. Quando der posse a Antonio Costa
(ninguém imagina outro cenário), Cavaco estará a assinar o seu
óbito político.
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