“Tive
de andar à bofetada para não haver disparos”: o dia em que
Portugal esteve à beira de uma guerra civil
25.11.2015 /
EXPRESSO
Ficou para a
história como o dia que pôs termo a um dos períodos mais agitados
do país - e que podia ter resultado num confronto que iria dividir
Portugal ao meio. A 25 de Novembro de 1975, uma tentativa de golpe
militar, nunca admitida pela esquerda radical, é frustrada pelos
militares moderados das Forças Armadas. Quarenta anos depois, o
Expresso falou com dois militares que estiveram de cada um dos lados
da barricada e foi recuperar memórias do dia que deu como encerrada
a revolução e abriu finalmente as portas à democracia
JOÃO SANTOS DUARTE
Texto
JOÃO ROBERTO
Grafismo
EXPRESSO
Não estava a dormir
há muito tempo quando a mulher o acordou. O telefone tinha tocado
inesperadamente a meio da madrugada e do outro lado da linha surge
uma voz familiar. Aquilo que há meses temiam que pudesse vir a
acontecer estaria agora em curso, disse a voz. O tenente-coronel
pousou o telefone no descanso. Vestiu o camuflado, mas desta vez
juntou à tradicional pistola duas granadas de mão ofensivas que há
semanas guardava num saco de bagagem. Conta à mulher o que se passa
e em seguida vai dar um beijo ao filho pequeno que estava na cama,
sem o acordar.
Não era a primeira
vez que saía de casa de forma inesperada, e durante aquele verão
tinha mesmo saído várias vezes sem saber se regressaria, como
contaria muitos anos mais tarde numa entrevista ao Expresso. A mesma
onde dizia que, caso naquele dia 25 de Novembro tivesse saído
perdedor, poderia ter sido preso, ou mesmo aniquilado. Mas aquele não
tinha sido um verão qualquer. Passaria à história como o “Verão
Quente de 1975”.
TUDO VIRIA A
ACONTECER
Para se perceber
como se chegou ao telefonema que acordou Ramalho Eanes naquela
madrugada é preciso recuar alguns meses no tempo e fazer uma breve
contextualização histórica. Ainda não tinha passado um ano desde
que a revolução de 25 de Abril derrubara a ditadura do “Estado
Novo”. Portugal vivia um dos períodos de maior agitação política
e social de que há memória. A 11 de Março, um acontecimento
acenderá o rastilho do que virão a ser meses em brasa. Dois aviões
e dez helicópteros com paraquedistas vindos da base de Tancos atacam
o Regimento de Artilharia de Lisboa, RALIS. Tratava-se de uma
tentativa de golpe que tinha à cabeça António de Spínola, general
que meses antes tinha abandonado a Presidência da República por não
controlar os acontecimentos políticos e agora conspirava contra o
Movimento das Forças Armadas, em conjunto com militares que ainda
lhe permaneciam fiéis. O golpe acaba por sair frustrado e Spínola
obrigado a fugir, primeiro para Espanha e depois para o Brasil. Mas o
acontecimento seria o momento fundador do que se viria a denominar
Processo Revolucionário em Curso (PREC).
Ataques à bomba
contra sedes de partidos políticos, greves, manifestações,
barricadas e cortes de estradas, ocupações de casas e terras, tudo
viria a acontecer nos meses que se seguiriam. As várias posições e
correntes em confronto poderiam resumir-se, de uma forma geral, no
embate entre dois modelos de regime e conceções de sociedade muito
distintos: um tido como mais moderado, defensor da implementação de
uma democracia representativa, e outro ligado a uma esquerda radical,
defensora da instauração de um regime socialista inspirado nos
modelos da Europa de Leste.
As primeiras
eleições livres e universais em Portugal vêm representar um revês
para a ala mais radical. Realizadas precisamente um ano depois da
revolução, em Abril de 75, com o objetivo de elegerem os deputados
à Assembleia Constituinte, levam à vitória dos partidos mais
moderados. PS e PSD (à altura PPD) conseguem mais de dois terços
dos deputados. Mas o jogo de forças não decorre apenas na arena
política, desenrola-se simultaneamente no seio das próprias Forças
Armadas. E, nos meses seguintes, os dois lados procuram ganhar peso
no xadrez militar.
Ramalho Eanes faz
parte de um grupo encarregado de preparar um plano que contrarie o
avanço quer da “esquerda militar”, formada em torno do
primeiro-ministro Vasco Gonçalves, quer dos “militares
revolucionários” que apoiam o comandante do COPCON, Otelo Saraiva
de Carvalho. O objetivo passa por reduzir progressivamente a
influência dessas duas correntes. Em agosto, um grupo de oficiais
encabeçado por Melo Antunes, um dos ideólogos da revolução de
Abril, assina o “Documento dos 9”, onde se pede uma clarificação
da situação política, com vista ao estabelecimento de um caminho
que conduza a uma democracia representativa.
As semanas que se
seguem são de vitórias para os “moderados”. No início de
setembro, Vasco Gonçalves, próximo do PCP, é substituído no cargo
de primeiro-ministro do governo provisório por Pinheiro de Azevedo.
O Conselho da Revolução é remodelado a favor do “Grupo dos
Nove”. O passo seguinte passa por mexer no influente comando da
Região Militar de Lisboa, que está nas mãos de um homem que
alcançou notoriedade como o principal estratego do golpe de 25 de
Abril de 1974, líder de uma corrente militar onde iam desembocar
várias tendências políticas de extrema-esquerda: Otelo Saraiva de
Carvalho.
Otelo Saraiva de
Carvalho, comandante do COPCON em 1975
A 20 de novembro é
proposta a substituição de Otelo, comandante do poderoso COPCON
(Comando Operacional do Continente), pelo tenente-coronel Vasco
Lourenço. Apesar de várias resistências, a medida acaba por
consumar-se dias depois, já na madrugada de 25. Seria a gota de água
para a esquerda mais radical. Durante meses tinham corrido rumores de
golpes iminentes de parte a parte. Os jornais anunciavam em primeira
página ações que seriam lançadas no dia seguinte, e que nunca
chegariam a concretizar-se. Até que se chega a 25 de Novembro. E
vários telefones começam a tocar de madrugada.
A REVOLTA DOS
PARAQUEDISTAS
“Eram cerca das 6h
quando o meu telefone de casa tocou”, recorda hoje, em declarações
ao Expresso, o general Loureiro dos Santos, na altura
tenente-coronel. Do outro lado estava o homem que mandava no
Regimento dos Comandos da Amadora, o major Jaime Neves. “Os
paraquedistas ocuparam as bases aéreas”, disse-lhe. A “ala
moderada” via nos acontecimentos o início de um golpe militar da
esquerda radical.
Há muito que o
descontentamento crescia entre os paraquedistas. Dias antes, o chefe
do Estado-Maior da Força Aérea, general Morais e Silva, extinguira
a Base Escola de Tancos e passado mais de 1200 “paras” à
licença. Além das Bases Aéreas de Monte Real, do Montijo e da OTA
(esta última já da parte da tarde do dia 25), um grupo de 65 homens
ocupa em Lisboa o importante comando aéreo, situado em Monsanto.
Pinho Freire, que comanda a unidade, é detido.
A resposta a um
eventual golpe da esquerda radical é posta em marcha. Loureiro dos
Santos e Ramalho Eanes faziam parte de um grupo de oficiais que há
vários meses preparavam um plano de ação, caso esse cenário se
viesse a colocar. O primeiro dirige-se de imediato para Belém, o
segundo passa ainda pelo Estado-Maior General das Forças Armadas, no
Restelo, antes de rumar à Presidência. São 09h quando o Presidente
da República, general Costa Gomes, começa uma reunião de
emergência com o Conselho de Revolução e o cenário é analisado.
Além do controlo das Bases e do Comando Aéreo, as tropas do RALIS
tinham também ocupado posições nos acessos à autoestrada do
Norte, no aeroporto da Portela e no DGMG (Depósito Geral de Material
de Guerra), em Beirolas. A resposta iria passar pela Amadora, onde se
situa o Regimento de Comandos.
Pela hora do almoço,
o Estado-Maior General das Forças Armadas emite finalmente uma nota
em que dá conta dos acontecimentos, e avisa os sublevados que usará
a força, caso seja necessário. Mas só depois das três da tarde o
presidente Costa Gomes dá finalmente luz verde à ofensiva. O posto
de comando é instalado então na Amadora, liderado pelo
tenente-coronel Ramalho Eanes. Loureiro dos Santos permanece em
Belém. “De acordo com o plano, eu faria de elo de ligação entre
os dois lados. Receberia as informações vindas do comando
operacional, e depois transmitia as indicações do presidente”,
recorda ao Expresso. É decretado o estado de sítio parcial na
região de Lisboa, algo que nem acontecera do golpe dos capitães de
25 de Abril de 1974.
Caso as chamadas
forças “moderadas” perdessem o controlo de Lisboa, o plano de
recurso passava por retirar para o norte, dividindo o país a meio. E
o certo é que, ainda que durante apenas algum tempo a 25 de
Novembro, acabou por ser a televisão a fazer essa divisão.
“ESTAVA AFLITO,
NÃO SABIA O QUE HAVIA DE DIZER NA TELEVISÃO”
As forças chegaram
bem cedo aos estúdios da RTP, no Lumiar. Tão cedo que, à mesma
hora, estavam ainda a tocar os tais telefones em casa dos vários
militares a avisar das ações dos paraquedistas. Ao comando dos
homens que se dirigiram para a televisão pública estava o capitão
Manuel Duran Clemente, segundo-comandante da EPAM, Escola Prática de
Administração Militar, que tinha a missão de garantir a segurança
da RTP em caso de agitação ou sublevação no país. E, ainda que
involuntariamente, garante agora o próprio, o seu rosto acabaria por
ficar na memória coletiva como uma das caras que marcou aquele dia
25 de Novembro.
A par da ocupação
dos estúdios, trabalhadores da “Eduardo Jorge” bloquearam a
vizinha Alameda das Linhas de Torres com autocarros da empresa. Como
parte da guarnição de segurança, Duran Clemente tinha colocado na
Avenida, no topo dos prédios, soldados munidos de bazucas. O agora
coronel na reforma recorda que, a dada altura, um oficial dos
comandos, afeto ao lado dos “moderados”, veio ali pedir-lhe
explicações sobre a ocupação. A resposta surgiu em forma de
advertência: “O melhor é não se aproximarem daqui com as vossas
chaimites (carros de combate)”.
Horas depois, com a
guarnição de segurança ainda a controlar os estúdios, Duran
Clemente decide dar tempo de antena na televisão aos representantes
dos paraquedistas, para que possam explicar o que se está a passar.
Interrompe a emissão da “Telescola” e entra ele próprio em casa
dos portugueses. Mas não de todos. Enquanto a sul do emissor da
Lousã os espectadores viam e escutavam nas suas casas as palavras do
militar, a norte a RTP Porto transmitia um filme com Danny Kaye, um
famoso cómico norte-americano, "O Homem do Diner's Club".
Do outro lado da barricada, a prioridade é agora deitar abaixo a
emissão de Lisboa, custe o que custar. Não conseguindo entrar nos
estúdios do Lumiar, uma força é enviada para o emissor de
Monsanto, liderada pelo Major José Coutinho.
Por esta altura,
Duran Clemente vai falando aos espectadores enquanto espera pela
delegação dos paraquedistas. Em Monsanto, sob pressão de militares
que estavam do lado dos “moderados”, o operador recusa-se
inicialmente a comutar o sinal para a RTP Porto, e só aceita depois
de lhe ser diretamente apontada uma metralhadora G3 à barriga. Um
outro operador consegue ainda ligar para os estúdios do Lumiar, a
avisar para o corte iminente da emissão. Alguém faz sinais a Duran
Clemente, que não percebe o que se está a passar. “Até pensei
que fosse algo que estivesse a arder no estúdio.” E, no segundo
seguinte, a emissão passou para os estúdios do Porto.
“Confesso que
estava aflito, sem saber o que haveria de dizer”, confidencia Duran
Clemente, ao Expresso. “Então se isto tivesse sido um golpe
preparado, eu não teria coisas escritas? Mas a verdade é que eu não
tinha nada para dizer! Pensei: olha, vou dizer aqui qualquer coisa
para ganhar tempo...”
“TIVE DE ANDAR À
BOFETADA PARA QUE NÃO HOUVESSE DISPAROS”
O primeiro a cair
foi o comando aéreo de Monsanto. A missão é confiada a Jaime
Neves, que lidera os Comandos. Da Amadora partem cerca de 200 homens
e 16 chaimites. À chegada acabam por não encontrar resistência, os
ocupantes rendem-se de forma pacífica. Menos tranquila foi a
operação lançada no regimento da Polícia Militar, na Ajuda, já
na manhã do dia seguinte. Uma troca de tiros acaba por fazer três
mortos: dois do lado dos comandos, e um aspirante da Polícia
Militar.
Ainda assim, a ação
de Jaime Neves em refrear os ânimos pode ter evitado um banho de
sangue. “Ele era um grande comandante. Só um grande comandante
consegue estar debaixo de fogo e impedir os seus homens de atirar”
, afirma Loureiro dos Santos.
O comando da Polícia
Militar acaba detido. No RALIS, em Sacavém, a situação permanece
tensa, com centenas de populares concentrados à porta das
instalações. Mas a balança começa a pender, em definitivo, para o
lado dos que se dizem “moderados”. Contam ainda com um apoio de
peso: uma coluna de blindados da Escola Prática de Cavalaria sai de
Santarém, liderada pelo capitão Salgueiro Maia, e fica estacionada
no Depósito Geral de Material de Guerra, perto do RALIS. O Regimento
acaba também por ceder. Em menos de 48 horas, a sublevação dos
paraquedistas é controlada.
QUEM ESTEVE POR TRÁS
DOS ACONTECIMENTOS?
Quarenta anos
depois, há ainda muitas dúvidas e interrogações sobre o que
efetivamente se passou a 25 de Novembro de 1975, e sobre quem foi
responsável pelos acontecimentos. A fação “moderada” dos
militares não tem dúvidas em afirmar que houve uma tentativa de
golpe militar por parte da esquerda mais radical. Quem estava do
outro lado nega.
Loureiro dos Santos,
que passou as horas mais críticas do 25 de Novembro em Belém,
atribui grande parte da responsabilidade na resolução pacífica da
situação ao presidente Costa Gomes. “Ele foi exímio no diálogo,
era uma pessoa muito inteligente. Falava connosco em termos
militares, ao mesmo tempo que falava com as forças políticas e
outros atores importantes para o tabuleiro do jogo. O gabinete dele
tinha três portas: uma dava para nós, que eramos o elo de ligação
com o comando operacional no terreno; a outra, a da frente, dava para
uma divisão onde recebia os partidos políticos; e a terceira dava
para o seu Estado-Maior. Costa Gomes foi fundamental para evitar o
risco de uma guerra civil no país.”
Duran Clemente
garante que não houve golpe de esquerda. “Teimam em dizer que era
um golpe de esquerda. Mas quem é que era o chefe do golpe de
esquerda? Que plano é que havia? Nenhum!” Para o agora coronel na
reforma, os paraquedistas agiram com fins de contestação militar e
não com um objetivo político.
Quarenta anos
depois, Duran Clemente lamenta ainda ter sido ingénuo, por ter
aberto a antena da RTP aos paraquedistas. “Se soubesse o que sei
hoje, não teria caído nisso. Foi feito com a intenção de
esclarecer os portugueses, mas acabou por passar a ideia de que
fazíamos parte de um golpe.” E afasta também o dedo do Partido
Comunista nos acontecimentos. “O PCP teve uma reunião do Comité
Central em Agosto em que Álvaro Cunhal deixou claro que não havia
lugar para golpes...”
De resto, o Partido
Comunista acabaria por não sair demasiado beliscado de todo o
episódio. Contrariando as expectativas de alguns sectores de
direita, logo no dia 26 Melo Antunes, o mentor do “Documento dos
9”, declara perante as câmaras da RTP que “a participação do
PCP na construção do socialismo é indispensável”. Era um aviso
claro que o PCP não seria ilegalizado.
Entre os perdedores
acabou por estar Otelo Saraiva de Carvalho, embora nunca se tenha
provado a sua responsabilidade no movimento dos paraquedistas. Na
noite de 24 para 25 foi dormir para casa. No dia 25 ainda comandou o
COPCON. Mas a 27 acaba destituído do cargo.
Já Ramalho Eanes é
nomeado nos dias seguintes chefe de Estado-Maior do Exército e acaba
por vir a ter uma carreira politica fulgurante. Sete meses depois dos
acontecimentos é candidato à presidência da República e ganha
logo à primeira volta com 61,5% dos votos.
O 25 de Novembro de
1975 marca o fim do Processo Revolucionário em Curso, que deixa para
as páginas da história alguns dos meses mais conturbados da vida do
país. Ainda assim, para muitos, como Duran Clemente, evitaram-se
situações ainda mais graves. “Durante 48 anos uma garrafa esteve
fechada com gás. Tirou-se-lhe a tampa. O que é que queriam? Muito
pacíficos fomos nós durante o PREC...”
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