OPINIÃO
O
jogo perigoso da Turquia e os riscos para a NATO
JOSÉ PEDRO TEIXEIRA
FERNANDES 27/11/2015 - PÚBLICO
As
potências europeias, sozinhas, são largamente incapazes em termos
político-militares. Impõe-se não deixar arrastar a NATO para as
ambições neo-otomanas de Erdogan, que nada têm de defensivo.
1. A guerra na Síria
está a tornar-se num terreno extremamente perigoso. Há múltiplos
confrontos em simultâneo a intensificarem-se. O do governo de Bashar
Al-Assad contra os seus inúmeros opositores armados. O dos curdos
contra o Daesh (Estado Islâmico). O do Islão sunita contra o Islão
xiita. As fracturas étnico-religiosas internas da Síria são
instrumentalizadas por poderes externos. O Irão, o Hezbollah e a
Rússia apoiam Assad e os alauítas — o grupo minoritário próximo
do Islão xiita que mais suporta o regime de Assad. A Turquia, a
Arábia Saudita, o Qatar e outros Estados do golfo, empenharam-se em
derrubar Assad, através dos inúmeros grupos sunitas. Até agora têm
contado com um apoio político e militar (limitado) dos EUA.
Alimentam a rebelião armada contra Assad. Nesta luta fratricida
parece valer tudo, incluindo a benevolência (mal) disfarçada, da
Turquia e da Arábia Saudita, para com grupos como o Daesh e a Frente
Al-Nusra, próxima da Al-Qaeda. A estratégia é que estes grupos
islamistas-jihadistas façam uma guerra por procuração, executando
o trabalho sujo no terreno, especialmente contra Assad e os curdos.
Mas há o risco de uma confrontação maior. Potências herdeiras de
grandes impérios do passado — e que se vêm, a si próprias,
novamente em ascensão —, chocam hoje frontalmente na Síria: a
Rússia e a Turquia. O problema é que a NATO e a Europa poderão ser
arrastadas para esse conflito, não só pelas ambições czaristas da
Rússia de Putin, como pelas ambições neo-otomanas da Turquia de
Erdogan.
2. O incidente na
fronteira da Turquia com a Síria mostra os riscos. O abate do avião
russo Su-24M, pela força aérea turca, é um passo numa escalada de
confrontação. Foi a primeira destruição de um avião da Rússia,
por um membro da NATO, desde os longínquos anos 1950. Mas isso eram
os primórdios da Guerra-Fria. As versões sobre a entrada do avião
russo no espaço aéreo da Turquia e os avisos que terão sido
feitos, são contraditórias. Independentemente da forma exacta como
ocorreu o incidente, a reacção turca parece excessiva. É conhecido
que a Rússia estava a fazer bombardeamentos na Síria, não a atacar
a Turquia. A Turquia sabia isso. Coincidência, ou não, o timing não
podia ser melhor para por em causa uma embrionária grande coligação
anti-Daesh (Estado Islâmico). François Hollande, que a tenta
implementar depois do 13/N — e nessa altura se encontrava nos EUA
para convencer Obama a integra-la junto com a Rússia —, viu os
seus esforços destruídos à nascença. A Turquia tem a sua própria
agenda na guerra da Síria. Nada tem a ver com democracia pluralista
e direitos humanos, aliás, cada vez mais em causa, na própria
Turquia governada pelo AKP de Erdogan. Nada tem também a ver com o
interesse da União Europeia, que é de pacificar o mais rapidamente
possível a região, até por causa do fluxo de refugiados. Vê a
ex-província otomana como um território natural da sua influência.
Provavelmente, ambiciona que a futura Síria seja uma espécie de
protectorado seu. A entrada da Rússia na guerra frustrou largamente
as expectativas turcas. Não por acaso, o incidente ocorreu na
fronteira da Síria com a província turca do Hatay. O território
foi anexado pela Turquia em 1938, quando a Síria estava sob o
mandato francês da Sociedade das Nações. A anexação nunca foi
reconhecida pela Síria independente desde 1945. Sempre foi um ponto
de atrito entre os dois Estados. No cálculo de Erdogan para derrubar
Assad está ter um governo sírio que aceite de iure a actual
fronteira.
3. A Turquia sempre
procurou no Ocidente — no passado na Grã-Bretanha, hoje nos EUA —,
um contrapeso para a sua rivalidade com a Rússia dos czares/União
Soviética/Federação Russa. É isso que explica a ambição de
entrar na NATO, concretizada em 1952. Na altura, a União Soviética
de Estaline ambicionava os territórios cedidos ao Império
Otomano/Turquia, no leste da Anatólia, pelo Tratado de
Brest-Litovsk, em 1917. Esse foi o Tratado que permitiu a saída
antecipada da Rússia da I Guerra Mundial, mas com substanciais
perdas de território e população. Foi o preço que os
revolucionários bolcheviques tiveram de pagar para consolidarem a
revolução. A história e a política internacional estão cheias de
cinismo e ironias. A Rússia revolucionária de 1917, mais tarde
transformada em União Soviética, foi um decisivo aliado da nascente
República Turquia. O contexto era o da guerra contra a Grécia e as
potências aliadas da I Guerra Mundial, após a derrota do Império
Otomano. O fornecimento de material militar e reabastecimento pela
fronteira leste, vindo da Rússia bolchevique, foi decisivo para o
movimento nacionalista de Mustafa Kemal Atatürk. Sem esse apoio
provavelmente teria sido derrotado militarmente. A situação
modificou-se no pós II Guerra Mundial, como a emergência de uma
poderosa União Soviética. A Turquia de Inönü procurou a NATO.
Receava a vontade de Estaline reverter o Tratado de Brest-Litovsk e a
pressão soviética sobre os estreitos que ligam o Mar Negro ao
Mediterrâneo. Os EUA, viram uma oportunidade para consolidar a sua
política de containment (contenção) da União Soviética, no
Mediterrâneo oriental e Médio Oriente, cercando-a no seu flanco
Sul.
4. A Guerra-Fria
acabou a partir nos anos1989-1991, com o fim do muro de Berlim e a
dissolução da União Soviética. O Pacto de Varsóvia — a aliança
político-militar liderada pela ex-União Soviética —, foi
dissolvido. Quanto à NATO, manteve-se e procurou adaptar-se aos
novos tempos. Alargou até substancialmente o seu de número membros.
Incorporou novas missões fora de área e de manutenção de paz.
Aspecto importante, o Tratado de Washington, de 1949, estabeleceu uma
garantia de assistência militar mútua. Essa garantia fundamental,
prevista no artigo 5º, mantém-se em vigor: “As Partes concordam
em que um ataque armado contra uma ou várias delas na Europa ou na
América do Norte será considerado um ataque a todas, e,
consequentemente, concordam em que, se um tal ataque armado se
verificar, cada uma, no exercício do direito de legítima defesa,
individual ou colectiva, reconhecido pelo artigo 51° da Carta dias
Nações Unidas.” O mesmo artigo acrescenta ainda que a NATO
“prestará assistência à Parte ou Partes assim atacadas,
praticando sem demora […] a acção que considerar necessária,
inclusive o emprego da força armada, para restaurar e garantir a
segurança na região do Atlântico Norte”. Quer dizer, prevê-se,
assim, uma resposta militar aliada a um ataque externo contra
qualquer dos membros, no perímetro de segurança da área do
Atlântico Norte ou seja, contra o território de qualquer um dos
membros, na Europa, América do Norte ou Turquia.
5. A Turquia de hoje
é muito diferente do Estado que nos anos 1950 integrou a NATO.
Afasta-se, cada vez mais, da política externa prudente de Atatürk e
Inönü. Está em processo de reislamização e não de
secularização. Erdogan vê-se como herdeiro dos sultões otomanos,
após o parêntesis da secular República da Turquia de Atatürk. O
fim da União Soviética, os Estados independentes turcófonos —
Azerbaijão, Turquemenistão, Uzebequistão, Cazaquistão e
Quirguistão —, a implosão da Jugoslávia e os muçulmanos dos
Balcãs (Bósnia, Albânia, Kosovo, etc.) são vistos como
oportunidades de expansão da sua influência. Está em competição
directa com Putin, o qual se vê como herdeiro da Rússia dos czares,
após o parêntesis histórico da União Soviética criada por
Lenine. A anexação da Crimeia, a guerra no leste da Ucrânia, são
sinais dessa ambição russa. O confronto reassume formas familiares
à luz da história europeia dos séculos XVIII e XIX. A Rússia em
expansão via no sudeste europeu uma área de influência natural. O
Império Otomano também, até porque se tinha instalado em partes
significativas desses territórios desde finais do século XIV. Nesse
jogo político-estratégico-militar, os otomanos procuravam o
resguardo da potência global da época (a Grã-Bretanha), para
contrariar a influência russa. Agora, a Turquia procura o resguardo
dos EUA e da NATO. Mas há uma diferença fundamental. No século
XIX, o Império Otomano estava em retrocesso. Era o “homem doente
da Europa” — a expressão é do czar russo Nicolau I — e as
potências europeias eram potências mundiais. A realidade hoje é
substancialmente diferente. A Turquia tem o segundo exército da
NATO, equipado com moderno e sofisticado equipamento dos EUA. As
potências europeias, sozinhas, são largamente incapazes em termos
político-militares. Impõe-se não deixar arrastar a NATO para as
ambições neo-otomanas de Erdogan, que nada têm de defensivo.
Investigador
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