Porque
está Costa tão nervoso? E há tanto ódio no PS?
José Manuel
Fernandes
18/11/2015, 16:04
OBSERVADOR
Ao
querer parlamentarizar ainda mais o regime e ao derivar para uma
linguagem radical, se não de ódio, o PS leva-nos de regresso à I
República. Um dia ainda confundimos António Costa com Afonso Costa.
As duas últimas
intervenções públicas de António Costa – uma entrevista na RTP
na segunda-feira e uma intervenção numa reunião de militantes em
Setúbal na terça-feira – revelam um líder inquieto e apressado.
Um homem tranquilo não sentiria necessidade de se lançar numa
campanha pública contra o Presidente da República: aguardaria, com
naturalidade, que este o chamasse a formar Governo. O líder político
que necessitou de 34 dias para costurar os mais desconchavados
“acordos” políticos de que há memória – e estou a ser
generoso ao utilizar a palavra “acordos”, mesmo que entre aspas
–, dá sinais de desconforto e começa a mostrar uma arrogância
ainda maior do que a habitual.
Devo dizer que
compreendo a razão do nervosismo de Costa. Cada dia que passa
torna-se mais claro que as coisas não estão a correr como imaginou,
cada hora que passa desafia a sua percepção de que é um homem
predestinado a quem todos devem render homenagem.
É evidente que o
primeiro grande problema de António Costa foi perder as eleições.
Porque foi mesmo isso que aconteceu a 5 de Outubro: Costa perdeu, e
por muito, as eleições. Ele começou por exigir ser líder do PS
para levar o partido à maioria absoluta – mas nem sequer uma
sondagem o chegou a colocar perto disso. A seguir pensou que era
impossível o PS não ganhar as eleições, pois nunca em Portugal um
Governo tivera de aplicar um programa tão duro como o do ajustamento
imposto pela bancarrota – mas a certa altura começou a perceber
que o PS podia ficar atrás da coligação. Agarrou-se então a uma
outra tábua de salvação: mesmo perdendo as eleições para a
coligação, podemos dizer que ganhámos se tivermos mais deputados
do que o PSD – mas também aí o cálculo lhe saiu furado. Sobrou
uma esperança: que a soma dos deputados do PS e do Bloco ficasse
acima dos da coligação. Até isso, até esse miserável prémio de
consolação, os portugueses lhe negaram nas urnas. Nessa altura
percebeu que lhe restava colocar-se nas mãos do PCP se não quisesse
ser corrido, naquela mesma hora, do Largo do Rato. Foi o que fez.
A forma como chegou
às três “declarações” a que chamou “acordos” foi
patética. Deixou que Catarina Martins reclamasse para si os louros
de tudo o que era mais popular, mas não se livrou do opróbrio de
manter o cinto bem apertado (haverá hipocrisia maior do que
referir-se ao “virar da página da austeridade” quando se vai dar
um aumento inferior a um euro por mês aos reformados com as pensões
mais baixas, sobretudo depois de a pensão mínima ter tido um
aumento 2,6 euros este ano?). Ao mesmo tempo, garantiu ao PCP os
mínimos para este não fazer cair um seu possível governo de
imediato (é indispensável ler o ensaio de Vítor Bento onde este
explica a lógica da forma de actuar dos comunistas). Por fim,
prestou-se ao ridículo de uma assinatura às escondidas de
documentos que nem asseguram nem estabilidade (nem sequer garantem a
aprovação do Orçamento de 2016!), nem o cumprimento dos
compromissos internacionais de Portugal (um tema totalmente omisso),
nem são coerentes.
Como se tudo isto
não fosse suficiente, o líder do PS predispôs-se a desfigurar o
seu próprio programa eleitoral, retirando-lhe toda a lógica
interna, tornando-o num pequeno Frankenstein que nem lhe permitiu
apresentar na última página quadros minimamente coerentes, apenas
uma charada que Mário Centeno admite ter resultado da “bimby” de
um dos seus colaboradores. Sendo que não se mostra lá o essencial:
as projecções para o crescimento económico, sem as quais tudo o
resto faz, ou não faz, sentido. O que também se compreende:
acrescentar esses números seria deixar o gato com o rabo de fora,
isto é, seria mostrar que as famosas “contas” com que António
Costa quis restaurar a credibilidade económica do “partido da
bancarrota” são pouco mais do que uma ficção cheia de boas
intenções mas muito pouca sustentação.
Tudo isto seria mais
do que suficiente para que Costa, se fosse uma pessoa modesta e sem
necessidade de salvar a própria pele, tratasse de, com alguma
humildade, garantir que iria tentar fazer o melhor que estivesse ao
seu alcance para que a geringonça que montou não se desconjuntasse
ao mínimo solavanco, pedindo assim ao Presidente a sua nomeação.
Pediria uma oportunidade, não exigiria uma rendição.
Mas não, não foi
isso que fez e está a fazer – porque é da sua natureza e porque
cada dia que passa acrescenta mais um elemento para percebermos a
fragilidade do seu castelo de cartas. Ainda os novos deputados não
se acomodaram aos seus gabinetes, e já foi entregue pela
extrema-esquerda uma montanha de projectos de lei que parecem não
ter outro objectivo que não o de por à prova a solidez da
“aliança”. Primeiro foram iniciativas sobre o feriado do
Carnaval, a TAP, a Refer, a CP Carga e os transgénicos, agora é a
fidelização nos contratos de telemóvel. Está ainda mais há vista
o evidente: a “solução estável e consistente” que António
Costa tem sempre na ponta da língua estará sempre submetida à
chantagem, ou aos humores, da extrema-esquerda, em especial de um PCP
que, cumpridos os seus objectivos mínimos – preservar o poder da
CGTP –, deixará de ter qualquer motivo para se manter a bordo.
Isto sobretudo se, como vai acontecer, as miraculosas contas de
Centeno esbarrarem na realidade e numa ausência de crescimento
económico que, na Europa, se está a tornar endémica, como ainda
agora se explicava no Wall Street Journal.
Se tudo isto não
fosse suficiente, aquilo que mais perturba António Costa (e o leva a
fazer coro com Jerónimo de Sousa e Catarina Martins no seu tom
sempre radical) é que o seu futuro próximo não está
verdadeiramente nas suas mãos. Está nas mãos do Presidente.
Na verdade, ao
contrário do que se quer fazer crer, a nossa Constituição não é
parlamentarista, é semi-presidencialista. Por isso é que elegemos o
Presidente da República por voto directo de todos os cidadãos, e
não num colégio eleitoral. Por isso também é que é este que
nomeia o primeiro-ministro, não a Assembleia da República. O artigo
187º da Constituição diz apenas que “O Primeiro-Ministro é
nomeado pelo Presidente da República, ouvidos os partidos
representados na Assembleia da República e tendo em conta os
resultados eleitorais”. Não diz que o Presidente tem de seguir a
opinião dos partidos, ou da maioria dos partidos. Mas diz que tem de
“ter em conta os resultados eleitorais”, o que significa que tem
a possibilidade e o dever de os interpretar – e a sua interpretação
pode ser distinta daquela que permitiu a formação da coligação
negativa que teve como ponto único de verdadeiro acordo impedir que
a coligação que ganhou as eleições governasse. Isto é, pode
entender que a primeira leitura dos resultados não é que estes
foram “um voto para virar a página da austeridade”, pode antes
considerar, como considera, que foram um voto no sentido de manter
Portugal comprometido com a Europa e com as obrigações do Tratado
Constitucional.
Isto significa que o
Presidente da República tem o poder efectivo de nomear o
primeiro-ministro, não estando obrigado a aceitar qualquer coisa que
os partidos lhe levem como “solução de maioria” a Belém. Isso
mesmo já explicou, com cristalina clareza, o constitucionalista João
Pereira Coutinho. Cavaco Silva pode, por exemplo, colocar condições
a António Costa, nomeadamente a de ter acordos a sério, não apenas
um desconchavado arremedo de declarações conjuntas; pode exigir um
maior grau de comprometimento da extrema-esquerda, fazendo-a entrar
no governo ou colocando por escrito o seu compromisso com a aprovação
dos próximos Orçamentos, isto para já não falar de aceitarem por
escrito que, pelo menos durante a próxima legislatura, aceitam
respeitar o Tratado Orçamental. Na crise de 2013 Cavaco Silva disse
a Passos Coelho que não daria posse a um governo do PSD apoiado no
parlamento pelo PP – a coligação tinha de se traduzir não só na
existência de ministros do PP, como na presença do seu líder à
mesa do Conselho de Ministros. Porque há-de ser diferente agora?
A questão, para o
Presidente, não é apenas seguir ou não seguir o Parlamento, como
por aí se diz. A questão é saber se consegue ou não que os
partidos lhe apresentem uma solução com mais solidez, mesmo que à
esquerda, do que a actual pantomina. Isso atrasa o Orçamento de
2016? Por certo. Mas se em troca conseguir um compromisso que garanta
também a estabilidade em 2017, 2018 e 2019, o que ficamos a perder?
Afinal de contas, o seu papel não é o de um mero notário.
Eu diria por isso
que o dever do Presidente é obter do PS e da extrema-esquerda as
garantias que estas ainda não deram, como se tornou pateticamente
evidente no momento da tripla-assinatura às escondidas. Podem o PS e
a extrema-esquerda dá-las? É que se não as derem é absolutamente
legítimo considerar que a única coisa que as une é a tal
“coligação negativa” cuja missão – derrubar o governo PSD/PP
– até já foi alcançada.
Ora só pode ser o
facto de o Presidente ter este poder – um poder que limita e
equilibra o de Costa e o da sua conglomeração de ódios e
recalcamentos – que faz com que o líder do PS esteja tão nervoso
e impaciente. Ele sabe que não tem um acordo sério com a
extrema-esquerda, e também sabe que nada mais arrancará do PCP. Tem
por isso de tentar subverter a letra e o espírito da Constituição,
transferindo na prática da Presidência da República para o
Parlamento o poder efectivo de nomear o primeiro-ministro.
É também por isso
que não surpreende o ódio e o veneno que mesmo deputados
socialistas com responsabilidades já vertem para as redes sociais. O
PS, que se julgou eternamente dono da Presidência da República (“a
maioria do povo português é de esquerda”, sempre garantiu Mário
Soares), nunca suportou que Cavaco Silva aí tivesse chegado por duas
vezes. Agora que é aí que se encontra a derradeira barreira a uma
manobra que subverte todas as tradições do regime, o PS já não
consegue disfarçar não apenas a sua ansiedade, mas um discurso de
um radicalismo que já ultrapassou todos os limites (“gangster?”,
“múmia?”).
Os pais da nossa
Constituição não desenharam um regime puramente parlamentar porque
não queriam repetir os erros e a experiência da I República. Ao
pretender parlamentarizar ainda mais o regime, rompendo um dos seus
equilíbrios e um dos seus mecanismos de checks and balances, o PS
leva-nos de regresso precisamente a essa I República. Ao mesmo
tempo, ao ressuscitar um tipo de linguagem extremista, cheia de ódio
e recriminações, tal como ao adoptar uma política que começa por
escolher os inimigos a abater e por cavar trincheiras que o separem
dos outros partidos democráticos, o PS o que está a fazer é a
levar-nos também de regresso ao ambiente político da I República.
Um dia ainda vamos confundir António Costa com Afonso Costa.
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