Hollande
foi ovacionado pelo Congresso, mas a frente unida pós-atentados já
não existe
RITA SIZA (em Paris)
16/11/2015 - PÚBLICO
Presidente
anunciou um reforço das medidas securitárias, pediu uma revisão
constitucional e o alargamento do estado de emergência e proclamou
que "a França está em guerra". Os seus inimigos políticos
já passaram ao ataque.
Um manto de
silêncio, denso e tocante, caiu sobre Paris ao meio dia em ponto, e
prolongou-se por muito mais do que o minuto oficialmente decretado
para homenagear as vítimas dos atentados terroristas de 13 e
Novembro na cidade, e a República Francesa. Mas os franceses sabem
que, no que diz respeito aos decibéis, o requiem colectivo desta
segunda-feira, foi o famigerado momento de calma antes da tempestade:
a gritaria não vai tardar.
O Presidente da
República, François Hollande, falou emocionadamente, aos
parlamentares reunidos em Congresso, em Versalhes, e a toda a França.
“Somos um povo forte, bravo, corajoso, que não se resigna e que se
levanta de cada vez que um dos seus filhos cai por terra. A República
Francesa já superou muitas provações”, declarou — no fim do
seu longo discurso, de quase uma hora, o chefe de Estado foi
ovacionado em pé pelos legisladores, que começaram a cantar a
Marselhesa.
“A França está
em guerra”, afirmou o Presidente. “Mas o terrorismo não
destruirá a República, será a República a destruir o terrorismo”,
afirmou Hollande, que prometeu “responder com determinação fria”
e “investir toda a força necessária, de acordo com os nossos
valores”, para assegurar a protecção e segurança da população
e para derrotar os inimigos do país.
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A França também
está de luto, porque uma organização odiosa fez mira contra “todos
os que amam a vida, a cultura, o desporto e a festa, Todos sem
distinção de origem, de cor, de cultura, de religião.” Só que
“os bárbaros não vão, jamais, impedir-nos de viver como
decidimos viver - plenamente”, garantiu o Presidente, rejeitando a
ideia de um “confronto de civilizações” ou de qualquer
tentativa de deposição de regimes estrangeiros. “É verdade que
buscamos uma solução política para a crise da Síria, mas na Síria
o nosso inimigo é o Estado Islâmico”, insistiu.
O Daash, na
designação árabe adoptada pelos franceses, é um “sistema
terrorista” que martiriza os habitantes dos territórios que
controla - e que por isso a Europa deve “acolher com dignidade, se
tiverem direito ao asilo”. Na emoção do momento, não podemos
esquecer que “foram franceses que mataram outros franceses”,
prosseguiu Hollande, a custo. “Temos, no nosso solo, indivíduos
que da delinquência passam à radicalização e depois à
criminalidade terrorista”.
Mas “a democracia
tem a capacidade de reagir”, sublinhou. O Presidente anunciou uma
revisão legislativa, para a “consolidação” das medidas
previstas pelo decreto de 3 de Abril de 1955 que regula o estado de
emergência nacional e a “adaptação do seu conteúdo à evolução
das tecnologias e das ameaças”, e deu o prazo de uma semana para a
sua votação. Se for aprovada, permitirá ao Governo prolongar o
estado excepcional de urgência por mais três meses.
Sarkozy contra
revisão constitucional
Porém, o Presidente
entende que é preciso “ir mais além”, e “fazer evoluir a
Constituição para que o Estado de direito possa responder ao regime
terrorista de guerra”, defendeu. Por isso, o chefe de Estado pediu
ao primeiro-ministro, Manuel Valls, para “preparar” o mais
rapidamente possível um projecto de reforma constitucional, uma vez
que os mecanismos vigentes no regime actual “já não são
apropriados”, constatou.
Hollande entende que
a aplicação do artigo 16, que define as condições para a
atribuição excepcional de plenos poderes ao Presidente, não é
razoável, e que a invocação do artigo 36, que prevê o estado de
sítio, não é ajustada para lidar com a ameaça terrorista. “Esta
é uma guerra de outro tipo, que nos exige um novo quadro
constitucional”, considerou, sustentando a necessidade de dotar a
Constituição das “ferramentas adequadas para tomar medidas
excepcionais por um período de tempo, sem recorrer ao estado de
urgência nem comprometer o exercício das liberdades civis”.
Minutos depois do
discurso, o ex-Presidente da República e actual líder do partido Os
Republicanos (a antiga UMP), François Sarkozy, veio quebrar a ilusão
da frente unida no Congresso e do consenso político das primeiras
horas após os ataques, atacando as propostas apresentadas por
Hollande em Versailles, e fazendo saber que a direita se vai opor às
mudanças na Constituição.
Não foi
propriamente uma nova postura. Sarkozy já tinha aberto uma primeira
brecha no domingo à noite, numa entrevista televisiva em que
defendeu a atribuição de uma pulseira electrónica para a detenção
domiciliária de todos os sujeitos registados pelos serviços de
segurança com uma “ficha S” — Hollande comprometeu-se apenas a
convocar o conselho de Estado para “avaliar” as propostas de
reforço do controlo das pessoas identificadas como radicalizadas
pelas autoridades.
A unanimidade já
estava a estalar, lentamente, com palavras e gestos subtis, artigos
de opinião e editoriais nos jornais ou pequenas provocações em
antena nas rádios e televisões. E depois de Sarkozy ligar a sua
guitarra eléctrica num concerto acústico, apareceu a presidente da
Frente Nacional, Marine Le Pen, com um amplificador e colunas, a
fazer campanha eleitoral. A líder da extrema-direita francesa
registou com relativo agrado algumas “inflexões” no discurso de
François Hollande, por exemplo em termos do reforço do aparelho
securitário do Estado e da expulsão de estrangeiros que sejam
considerados uma ameaça à segurança nacional. Mas, da prestação
do Presidente perante o Congresso o que Le Pen reteve foram as
“enormes lacunas” das suas políticas, sobretudo no “combate
indispensável que é preciso travar contra o islamismo enquanto
ideologia”.
No entanto, se
alguma coisa é clara “nas ruas”, é que os parisienses ainda não
estão preparados para “politizar” os acontecimentos da noite de
sexta-feira, nos 10º e 11º bairros (arrondissements) da zona leste
da capital. Há quem entenda que é demasiado cedo para manobras
político-partidárias; há quem considere que é simplesmente errado
e há quem ache “de muito maus gosto” montar um palanque por cima
do asfalto onde correu o sangue de inocentes.
A experiência desta
segunda-feira de manhã, quando à chegada às escolas e aos locais
de trabalho, os parisienses foram encorajados a usar a palavra e
exprimir as suas emoções, prova que a maior parte das pessoas não
está interessada/preparada/disponível para discursos inflamados e
polémicas. A discussão acalorada que já germinou entre políticos
e comentadores ainda não extravasou para a rua (ou pelo menos, ainda
não há dela nenhum eco audível).
A incompreensão e
revolta que foram manifestas após o ataque ao jornal satírico
Charlie Hebdo, em Janeiro, inclusivamente contra a decisão de
cumprir um minuto de silêncio pelas vítimas, deram lugar, desta
feita, a uma vontade de seguir em frente, sem perder de vista o
essencial ou perder tempo com distracções. “Não quis fazer
nenhuma declaração, não tenho nada a dizer sobre estas pessoas”,
resumia um estudante à saída do liceu, explicando que para ele, o
mais importante era “prosseguir com a vida, normalmente”, mesmo
reconhecendo que muita coisa irá mudar nos próximos tempos. Mas,
repetia, “il fault y aller” - é preciso continuar.
A mesma ideia
(aliás, a mesma expressão) era partilhada por Daniel Clément, de
37 anos, um designer que vive e trabalha a três quarteirões do
Hotel de Ville, a câmara municipal de Paris, e que resolveu descer
até lá ao meio-dia para se sentir “em comunhão”: “Parecia-me
um pouco ridículo cumprir um minuto de silêncio sozinho em casa,
por isso decidi vir para cá, era o local mais simbólico mais perto.
Mexo um pouco as pernas, tomo um café, fumo um cigarro, e a vida
continua [il fault y aller]”, conta.
Toldada pelas nuvens
e uma brisa gelada, a praça junto ao Sena não era especialmente
convidativa, mas ainda assim uma centena de pessoas atravessou a rua
para se colocar em frente da grande fachada onde se lê
liberdade-igualdade-fraternidade. Nos passeios e na rua, o trânsito
parou; nas esplanadas de cafés e restaurantes, os clientes
puseram-se de pé. Todos os transportes colectivos da rede
parisiense, autocarros, metropolitano e comboio, avisaram na véspera
que interromperiam a circulação por um minuto ao meio-dia: depois
de 48 horas em que várias linhas estiveram condicionadas ou
suspensas, o sistema funcionou na mais completa normalidade (só a
estação de metro de Oberkampf ficou fechada, por decisão da
polícia).
Os milhares de
turistas que vaguearam perdidos por Paris no fim-de-semana já se
moviam com um novo propósito na segunda-feira: os museus e
monumentos que estiveram fechados reabriram às 13h, sob forte
vigilância. “Este deve ser o lugar mais seguro do mundo neste
momento”, comentava ao PÚBLICO o patriarca da família Tan, vinda
da Malásia, à porta do museu do Louvre. Os quatro turistas, Tan e
mulher, e duas irmãs, cumprem um périplo europeu, que depois de uma
feliz passagem por Lisboa, termina dentro de dois dias em Paris.
“Saímos de Portugal no domingo, sob fortes protestos da família
na Malásia, que queria que cancelássemos tudo e voltássemos para
casa. Mas sabíamos que isto ia estar assim”, diz Tan, apontando os
soldados vestidos de camuflado e os gendarmes de colete à prova de
bala, todos de metralhadora ao peito. “O lugar mais seguro do
mundo”, insiste.
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