Caso
Vistos Gold. Macedo, os chineses, Angola, o homem das luvas e o primo
deste
28 Novembro 2015
Luis Rosa /
OBSERVADOR
O
processo Vistos Gold não tem só a ver com Miguel Macedo. Aqui fica
um Especial com um resumo dos principais pontos da acusação do
Ministério Público.
“Há uma rede que
utiliza o aparelho de Estado para concretizar atos ilícitos, muitos
na área da corrupção”. A frase é de Joana Marques Vidal,
procuradora-geral da República (PGR), foi proferida na primeira
entrevista após a detenção de José Sócrates na Operação
Marquês e de três altos dirigentes da administração pública na
Operação Labirinto e pode ser um bom resumo da acusação do
Ministério Público (MP) neste último caso – também conhecido
por Vistos Gold.
Nenhum processo pode
ser comparado em termos de importância e de simbolismo ao caso
Sócrates (e até mesmo ao caso BES) mas o processo Vistos Gold vem
logo a seguir como um caso marcante deste primeiro mandato de Joana
Marques Vidal como PGR. Tem como protagonistas dois líderes de
organismos de Estado (António Figueiredo, então presidente do
Instituto de Registos e Notariado, e Manuel Palos, diretor do Serviço
de Estrangeiros e Fronteiras) e a principal funcionária do
Ministério da Justiça (a secretária-geral Maria Antónia Anes).
Mas, acima de tudo, foi este o caso responsável pela queda de um dos
ministros mais populares do governo PSD/CDS: Miguel Macedo, titular
da pasta da Administração Interna que se demitiu a 16 de novembro
de 2014 – três dias depois das detenções de Figueiredo, Palos e
Anes. Não fosse este processo, Macedo continuaria a ser uma das
figuras do PSD que os jornais costumavam apontar como possíveis
candidatos à sucessão de Pedro Passos Coelho. Caiu e dificilmente
se levantará.
O núcleo central da
acusação do Departamento Central de Investigação e Ação Penal
(DCIAP) prende-se com os negócios imobiliários que tinham como
objetivo a obtenção de receitas ilícitas em troca da emissão de
vistos gold, mas o processo é muito mais do que isso. Dos ilícitos
imputados aos arguidos terão resultado ganhos totais de cerca de 435
mil euros – valor que o DCIAP requer ao tribunal que vier a julgar
este caso que seja declarado perdido a favor do Estado. Como? Através
do chamado instrumento de perda clássica que consiste na condenação
de um pagamento de uma indemnização ao Estado no valor total ganho
ilicitamente.
Os arguidos António
Figueiredo, ex-presidente do Instituto dos Registos e Notariado
(IRN), e o casal de empresários Zhu Xhiadong e Zhu Baoe são os que
se arriscam a pagar uma indemnização maior: cerca de 100 mil euros
para Figueiredo e 268 mil euros para os gestores chineses.
O ex-líder do IRN e
a sua mulher serão ainda confrontados num eventual julgamento com um
pedido de perda ampliada por parte do MP. Neste caso, está em causa
a discrepância detetada pelos procuradores do DCIAP entre os
rendimentos anuais declarados em sede de IRS e os valores realmente
depositados nas contas bancárias do casal. Trata-se de uma diferença
na ordem dos 231 mil euros, segundo a acusação. Nesse sentido, o MP
requer ao tribunal que venha a julgar o caso que declare o arresto
desse montante depositado nas contas do casal Figueiredo e que o
mesmo seja declarado perdido a favor do Estado.
O mesmo verifica-se
com o casal Xhiadong/Baoe, sendo que neste caso está em causa um
montante superior: cerca de 512 mil euros. No total, o Estado
arrisca-se a ganhar uma receita extraordinária de cerca de 1,1
milhões de euros, caso todos os pedidos do DCIAP sejam satisfeitos.
Vistos-Gold-politico
Miguel Macedo foi
acusado de quatro crimes mas apenas uma dessas situações está
relacionada com os vistos gold propriamente ditos. Em todas situações
ilícitas que lhe são imputadas está presente o seu amigo Jaime
Gomes e as parcerias de negócio lideradas por este empresário – o
MP diz mesmo que se conhecem desde os tempos da adolescência e
tratam-se por “irmãos”.
Uma parceria antiga
Para os quatro
procuradores do DCIAP que subscrevem a acusação, existem negócios
antigos entre Miguel Macedo e Jaime Gomes que sustentam a sua
proximidade pessoal e empresarial – negócios esses que derivam de
participações que, segundo o MP, não terão sido declaradas por
Macedo ao Tribunal Constitucional como estava obrigado enquanto
deputado da X e XI Legislatura e ministro do governo PSD/CDS
(2011/2015).
Em 2008, era Macedo
deputado, os dois amigos terão tido uma parceria com o grupo Often
(especialista em mobiliário urbano e de escritório), na qual teriam
como missão “facilitar contactos com entidades públicas e
privadas a fim de «blindar/fechar negócio», fazer a aproximação
a quem de direito e indicado por vós, disponibilizar informação a
fim de estabelecer contacto imediato sempre que saiam novos
concursos, junto das entidades contratantes, nomeadamente públicas”,
lê-se no despacho de acusação que cita o contrato assinados entre
as partes.
A Often terá
conseguido contratos com diversas entidades públicas: Ministério da
Administração Interna (concurso para instala, Galp, Tabaqueira,
Biblioteca Nacional, EDP, APL – Sines; IRN (Lojas do Cidadão),
Câmara Sintra, AMA – Agência para a Modernização Administrativa
mas o MP apenas refere um contrato como tendo intervenção da dupla
Macedo/Gomes: o da Ilhas Valor, empresa pública dos Açores, pelo
qual a mulher de Jaime Gomes, alegada testa de ferro, terá recebido
16 mil euros do grupo Often.
Outras parcerias
estarão relacionadas com a empresa JMF – Projects & Business –
sociedade da qual foram sócios Miguel Macedo, Jaime Gomes, Luís
Marques Mendes e Ana Luísa Figueiredo (filha de António Figueiredo,
o principal arguido do caso Vistos Gold) e que teve como única
atividade comercial um contrato de dezembro de 2009 com a empresa
espanhola Fitonovo para a “facilitação de negócios e contactos
privilegiados no âmbito da contratação pública” a troco de uma
comissão de 2%. Desse contrato, terão resultado pagamentos de 31
mil euros à JMF que foram distribuídos em partes iguais pelos
sócios em dezembro de 2011. De acordo com as contas do MP, esta
comissão paga à JMF terá subjacente um valor global de 1,5 milhões
de euros contratos feitos com o Estado.
A posição
contratual da JMF com o grupo Fitonovo foi transmitida à empresa JAG
– Consultoria e Gestão – empresa de Jaime Gomes que foi acusada
no âmbito do processo Visto Gold. No âmbito de um contrato
igualmente de facilitação de negócios com o Estado, a JAG terá
recebido cerca de 172 mil euros entre 2011 e 2013.
Também terão
existido contactos entre Jaime Gomes/Miguel Macedo com José Santa
Clara Gomes do grupo Bragaparques a propósito de Parcerias
Público-Privadas no Brasil na área da exploração de parques de
estacionamentos adjudicados pela Codeplan – Companhia de
Planejamento do Distrito Federal de Brasília. Esses contactos,
contudo, não terão tido efeitos práticos. O mesmo já não se pode
sobre a Tecnobras – uma empresa brasileira de serviços de
informática. Terá sido mesmo constituída em julho de 2011, já
depois de Macedo ter tomado posse como ministro da Administração
Interna do Governo de Passos Coelho, tendo como sócios, segundo o
MP, António Figueiredo, Jaime Gomes, Miguel Macedo e o
luso-brasileiro Paulo Elísio de Souza, presidente da Câmara do
Comércio e Indústria do Rio de Janeiro.
Os alegados quatro
crimes
São estes
antecedentes de relações comerciais que levaram o MP a reforçar a
sua convicção de que existia uma especial relação entre Miguel
Macedo, Jaime Gomes e António Figueiredo (que tinha chegado a líder
do Instituto dos Registos e Notariado por indicação do secretário
de Estado da Justiça, Miguel Macedo), com Manuel Palos pelo meio. As
quatro situações que deram origem à acusação contra Miguel
Macedo são as seguintes, como o Observador já noticiou:
Jaime Gomes, António
Figueiredo e o empresário chinês Zhu Xhiadong terão acordado a
criação de uma sociedade comercial na China para angariar
candidatos aos vistos gold, propondo-lhes os respetivos investimentos
imobiliários. Nesse sentido, necessitavam de um oficial de ligação
para a imigração na embaixada portuguesa em Pequim que pudesse
apressar a emissão de vistos. A pedido de Jaime Gomes, Miguel
Macedo, o ministro que tutelava do Serviço de Estrangeiros e
Fronteiras (SEF), terá ordenado ao diretor nacional Manuel Palos que
lhe propusesse a criação de tal posto na embaixada portuguesa. O
que veio a acontecer mas sem efeitos práticos devio, segundo o MP, a
uma fuga de informação sobre a existência desta investigação.
Crime imputado: prevaricação de titular de cargo político em
regime de co-autoria com António Figueiredo, Manuel Palos e Jaime
Gomes
No contexto em que
Jaime Gomes aparecia como consultor da Intelligent Life Solution
(ILS), empresa de Paulo Lalanda Castro, Macedo terá voltado a
ordenar a Manuel Palos que emitisse vistos de estada temporária para
cidadãos líbios que vinham a Portugal receber tratamento médico no
âmbito de contrato entre a ILS e a Líbia. Crime imputado:
prevaricação de titular de cargo político em regime de co-autoria
com Manuel Palos
No âmbito da
ligação comercial à ILS, Gomes solicitou uma segunda intervenção
de Miguel Macedo num conflito fiscal entre a empresa de Lalanda
Castro e as Finanças. Estava em causa o pagamento de IVA sobre as
faturas emitidas pelos serviços prestados às autoridades líbias,
no valor de um milhão de euros, reclamado pelo Fisco. Devido à
intervenção de Macedo, que ligou ao secretário de Estado dos
Assuntos Fiscais, Paulo Núncio, para estar atento ao caso, não só
as Finanças deram o dito por não dito (não cobrando o valor), como
a ILS acabou por receber um reembolso de mais de 43 mil euros. Crime
imputado: tráfico de influência em regime de co-autoria com Jaime
Gomes
Jaime Gomes terá
igualmente recebido de Miguel Macedo, através do email oficial que
este usava enquanto ministro da Administração Interna, o caderno de
encargos relativo ao concurso internacional de manutenção dos
helicópteros do Estado. Tal documentação acabou nas mãos da
empresa Easy Jet, adquirida pouco antes pelo grupo Bragaparques, que
viria a ganhar o concurso. Crime imputado: prevaricação de titular
de cargo político
Vistos-Gold-2empresarios
Figueiredo, o
arguido com acusação mais pesada
Se Macedo é a cara
mediática, António Figueiredo é o principal arguido do processo.
Pelo menos, a julgar pela pesada acusação que incide sobre si –
de longe, a mais pesada de todos os arguidos. São 13 crimes, dos
quais saltam à vista os quatro crimes de corrupção passiva para
ato ilícito.
O primeiro desses
alegados crimes de corrupção passiva está relacionado com os
negócios imobiliários relacionados com os vistos gold. De acordo
com a acusação do DCIAP, António Figueiredo terá feito o seguinte
acordo com o empresário chinês Zhu Xhiadong:
participar
ativamente na angariações de imóveis;
agilizar os
procedimentos burocráticos relacionados com os vistos gold desejados
pelos compradores desses imóveis, com autorizações de residência
simples e até vistos simples de entrada de cidadãos chineses em
Portugal. Como? Exercendo alegada influência junto de Manuel Palos,
que terá aceite os pedidos de António Figueiredo para favorecer 33
cidadãos chineses nos respetivos processos administrativos;
colocar à
disposição dos interesses de Zhu Xhiadong meios e funcionários do
IRN para promover a realização célere das respetivas escrituras de
compra e venda
Em troca, o
ex-presidente do IRN terá recebido, segundo a acusação, uma
comissão por cada negócio pelos serviços prestados.
Deixando de lado os
alegados favorecimentos na agilização e facilitação de escrituras
públicas ou de obtenção de vistos gold, mesmo uma atividade lícita
como a angariação de imóveis estava vedada a António Figueiredo,
pois o então líder do IRN estaria impedido legalmente de ter outra
atividade por ser um dirigente da administração pública em
exclusividade de funções.
Vistos-Gold-3dirigentes
(1)
De acordo com a
acusação, António Figueiredo terá depositado um total de cerca de
89 mil euros em numerário entre 2011 e 2014 em contas bancárias por
si tituladas em conjunto com a sua mulher mas também da sua filha e
do seu primo direito Fernando Pereira. Esse valor terá resultado,
segundo o DCIAP, no pagamento de comissões dos Vistos Gold e de
outras situações que veremos à frente. Daí a acusação de
alegada corrupção passiva para ato ilícito em regime de co-autoria
com Manuel Palos.
O ex-diretor
nacional do SEF, com a ajuda deu na agilização dos processos
burocráticos, terá permitido aos empresários chineses poupar entre
os dois mil e os seis mil euros por cada caso. Segundo o DCIAP, eram
esses os valores que os escritórios de advogados praticavam no
acompanhamento de cada processo administrativo de visto gold.
Os negócios
imobiliários que estiveram subjacentes a essas comissões, contudo,
foram substancialmente mais elevados. Entre Lisboa e Cascais, os
empresários Zhu Xhiadong, Zhu Baoe (mulher de Xhiadong) e Xia
Baoling terão participado em negócios imobiliários que
movimentaram cerca de 3,8 milhões de euros e geraram mais-valias de
cerca de 900 mil euros entre 2013 e 2014.
Os empresários
chineses foram acusados dos mesmos crimes (corrupção activa para
acto ilícito e tráfico de influências) por alegadamente terem
prometido contrapartidas a António Figueiredo em troca dos seus
serviços e terem sido alegados cúmplices na influência que o
presidente do IRN exerceu sobre Manuel Palos.
Vistos-Gold-3chineses
O concurso de
António Figueiredo para presidente do IRN
Maria Antónia Anes,
secretária-geral do Ministério da Justiça, foi encarregue pela
ministra Paula Teixeira da Cruz de elaborar um conjunto de
documentação essencial para a abertura do concurso na Comissão de
Recrutamento e Seleção para a Administração Pública (CReSAP)
para o cargo de presidente do IRN. Na teoria, António Figueiredo
deveria ter tido concorrência de outros dirigentes da administração
pública ou de privados interessados em concorrer aquele lugar. Na
prática, e de acordo com a acusação do DCIAP, Maria Antónia Anes
tudo terá feito, em alegado conluio com Figueiredo, para que este
fosse beneficiado face aos dois candidatos que se apresentaram.
Anes terá permitido
que os requisitos para o cargo (definidos pelo Ministério da Justiça
e enviados por Anes para a CReSAP como documento preparatório da
abertura do concurso) tenham sido elaborados pelo próprio António
Figueiredo para se encaixarem no seu perfil profissional. Após a
abertura do concurso, e já como membro do júri do mesmo, Maria
Antónia Anes esteve em comunicação permanente com Figueiredo,
enviando-lhe previamente documentação confidencial que só deveria
conhecida ao mesmo tempo que os restantes concorrentes,
corrigindo-lhe textos que o próprio já tinha submetido,
informando-o sobre a identidade e documentos enviados pelos restantes
concorrentes e dando-lhe informações reservadas sobre a avaliação
das suas provas escritas de forma a que pudesse corrigir as mesmas
durante a fase da entrevista pessoal. Tudo, segundo o MP, em violação
dos seus “deveres de isenção, sigilo e objectividade”.
A CReSAP decidiu não
escolher António Figueiredo nem os restantes dois candidatos.
Ficando a decisão nas mãos da ministra da Justiça que, com a
ausência de alternativas, decidiu reconduzir Figueiredo. Este
concurso da CReSAP não foi a única seleção de dirigentes da
Administração Pública que a dupla Anes/Figueiredo terá tentado
influenciar. Segundo o DCIAP, verificaram-se mais três situações
relacionadas com os seguintes cargos:
Chefe de Divisão de
Recursos Humanos do IRN – António Figueiredo terá tentado
influenciar o presidente do concurso para ser escolhida a candidata
preferida de Anes. Sem sucesso;
Vogal do Conselho
Diretivo do IRN – Figueiredo desejava a nomeação de Luís Goes
Pinheiro e Anes terá repetido a mesma estratégia que já tinha
seguido com Figueiredo no concurso para presidente do IRN. Também
não teve sucesso porque, apesar da CReSAP ter indicado Pinheiro com
um dos três melhores candidatos, a ministra Paula Teixeira da Cruz
escolheu João Rodrigues;
Secretário-Geral do
Ministério da Administração Interna – Mais uma vez, Figueiredo e
Anes tinham um candidato favorito que queriam ver indicado pela
CReSAP: Humberto Meirinhos. Apesar das diligências feitas, e que
chegaram a envolver uma conversa entre Figueiredo e Miguel Macedo,
Meirinhos acabou por desistir do concurso.
Neste ultimo caso, o
DCIAP deu particular atenção à motivação de Maria Antónia Antes
para tentar favorecer Humberto Meirinhos. Este foi presidente dos
Serviços Sociais da Administração Pública, onde conheceu Anes,
tendo adjudicado três obras no valor de 56 mil euros a uma empresa
designada Easyconcept. Segundo o DCIAP, os donos desta última
sociedade eram vizinhos e amigos de Maria Antónia Anes, tendo
decidido subcontratar uma segunda sociedade (a Flowmotion Flower
Design) para prestar serviços naquela empreitada. Não viria mal ao
mundo para o DCIAP, não fosse a Flowmotion uma empresa
recém-constituída propriedade do filho e da nora de Anes. O MP diz
que esta foi a motivação para a então secretária-geral do
Ministério da Justiça ter tentado influenciar o concurso do MAI em
benefício de Humberto Meirinhos.
A Flowmotion teve
também uma avença mensal de 1.600 euros com o IRN – situação
que foi alvo de investigação mas arquivada por o ajuste direto ter
sido legal.
Angola e a “avidez
do dinheiro” de Figueiredo
Angola ocupa uma
parte importante da acusação e está na origem do crime de
corrupção passiva para ato ilícito que é imputado a António
Figueiredo, alegadamente corrompido, segundo o DCIAP, por um
empresário angolano chamado Eliseu Bumba – a quem é imputado a
alegada prática do crime de corrupção ativa para ato ilícito.
Segundo a acusação
do DCIAP, o então presidente do IRN terá tentado lucrar
ilicitamente com a subversão do protocolo de cooperação entre
Portugal e Angola na área da Justiça, usando meios e funcionários
do IRN como se fossem privados e acordando com o empresário angolano
Eliseu Bumba um valor por essa alegada prestação de serviços que
deveriam ser gratuitos. As palavras dos quatro procuradores do DCIAP
que subscrevem a acusação são claras:
António
Figueiredo, através destes esquemas, mostrava uma avidez por
dinheiro e propunha-se fazer todos os negócios possíveis em Angola,
na perspetiva de que era uma mina e que tinha que arrebanhar por todo
o lado e armazenar o tempo todo, mercadejando a violação dos
deveres inerentes às funções públicas que exercia como primeiro
dirigente do IRN”, lê-se no despacho de acusação.
Para percebermos
melhor o interesse de António Figueiredo em Angola temos de recuar
até 2006, altura em que conheceu Eliseu Bumba, então secretário do
Consulado-Geral de Angola em Lisboa. Apercebendo-se, segundo o DCIAP,
das boas relações que Bumba tinha no Ministério da Justiça (MJ)
daquele país africano, Figueiredo mostrou-se interessado em
participar nos projetos de modernização do setor em Angola,
nomeadamente em termos informáticos. Tudo com o objetivo, segundo a
acusação, de vir a trabalhar mais tarde em Luanda para uma
sociedade angolana ou até mesmo para o MJ de Angola com um ordenado
mensal superior a 10 mil euros.
O plano de
Figueiredo e de Bumba teve, segundo o DCIAP, duas fases distintas:
A criação de uma
empresa informática chamada Step-Ahead Angola, em que Bumba teria
75% do capital social e Paulo Guerra, dono da Step-Ahead Portugal, o
remanescente. Esta empresa, contudo, seria mais tarde transformada em
Merap Consulting em fevereiro de 2012 devido a desentendimentos
ocorridos entre Bumba e Guerra.
E a criação de
três sociedades que tinham funcionários do IRN como sócios: Elisa
Alves, José Manuel Gonçalves e Paulo Eliseu. Mais tarde, juntou-se
a este grupo o colega Paulo Vieira. Gonçalves, Eliseu e Veiria eram
técnicos informáticos, enquanto que Elisa trabalhava nos serviços
centrais do IRN e era a pessoa de confiança de Figueiredo. Foram
assim criadas as sociedades por quotas Globalregis, a Simpliregis e a
Formallize para operarem em Angola e das quais, diz o DCIAP, António
Figueiredo era sócio oculto.
Vistos-Gold-5funcionarios
(2)
As primeiras
oportunidades de negócio terão sido aplicadas através da empresa
Simpliregis e visavam o seguinte:
Elaboração de um
Plano Estratégico de Intervenção na Modernização dos Registos e
do Notariado de Angola;
Ações de formação
em Angola;
Revisão dos Códigos
de Registo Civil, Predial, Comercial, Automóvel e Notariado;
Desenvolvimento de
aplicações informáticas para o MJ de Angola.
Figueiredo e Bumba
pretendiam cobrar 350 mil dólares americanos em 2012 ao MJ de Angola
pelo primeiro desses objetivos. Assim, a Simpliregis terá emitido
faturas nos primeiros nove dias de Janeiro de 2012 no valor total de
cerca de um milhão de euros (cerca de 586 mil euros). Contudo o
DCIAP só conseguiu localizar uma pequena parte destes valores
contratualizados:
50 mil dólares (47
mil euros a câmbio de hoje) que alegadamente terão sido entregues
em numerário a Elisa Alves por Eliseu Bumba
60 mil dólares
(56,5 mil euros) que terão sido depositados numa conta angolana de
uma irmã de Elisa Alves.
100 mil dólares
(cerca de 90 mil euros) transferidos pela Step-Ahead para uma conta
da Simpliregis na Caixa Geral de Depósitos.
A Simpliregis e os
seus sócios foram investigados pelo DCIAP pelo crime de corrupção
mas os autos acabaram por ser arquivados devido à dissolução da
sociedade – ocorrida por desentendimentos entre António Figueiredo
e Elisa Alves. Para os procuradores, contudo, não restam dúvidas de
que os pagamentos à Simpliregis ocorreram “em grande parte em
Angola, e em numerário”, sendo que tudo não passou de um alegado
“estratagema encontrado por aqueles arguidos para retirar dinheiro
de Angola e o distribuir depois entre todos”. Os arguidos em
questão, segundo o DCIAP, são Elisa Alves, José Manuel Gonçalves,
Paulo Eliseu e António Figueiredo.
Já em 2013 e 2014,
e no âmbito do Protocolo de Cooperação assinado entre Portugal e
Angola pelos ministros da Justiça dos dois países (Paula Teixeira
da Cruz e Rui Mangueira), verificaram-se novos avanços por parte
Eliseu Bumba e António Figueiredo no desenvolvimento dos seus
negócios em Angola:
Ações de formação
a funcionários do MJ de Angola em que os funcionários do IRN
receberam 2.500 a 5.000 dólares em dinheiro vivo entregue por
funcionários da empresa de Eliseu Bumba – “montantes muito
superiores aos que lhe eram devidos” com as ajudas de custos
normais, segundo o DCIAP
E, mais importante,
a recuperação da proposta de revisão dos Códigos de Registo
Civil, Predial, Comercial, Automóvel e Notariado.
Neste último ponto,
as intenções de Figueiredo e Bumba foram tendo evolução com o
desenrolar do processo – sendo que o papel de coordenador que
pertencia a Elisa Alves foi assumido por Abílio Silva. Em 2009, e
através da Step-Ahead Angola, foi feita uma proposta financeira ao
MJ angolano no valor de 3,1 milhões de euros. Esse valor subiu
quando foi necessário fazer uma nova proposta através da
Globalregis (entretanto, Paulo Guerra e Eliseu Bumba tinham cortado a
parceria na Step-Ahead) no valor de 3,2 milhões de euros e que foi
apresentada à então ministra da Justiça angolana, Guilhermina
Prata. O valor voltou a subir para 3,4 milhões de euros antes do
final de 2012, tendo descido quando o “ministro da Justiça de
Angola [Rui Mangueira] acordou com Eliseu Bumba a realização da
reforma legislativa, através da equipa de António Figueiredo”,
lê-se no despacho, acrescentando os quatro procuradores o seguinte:
Acordaram,
ainda, o ministro da Justiça de Angola e Eliseu Bumba que António
Figueiredo e a sua equipa apresentariam, urgentemente, uma proposta
com um orçamento inferior ao orçamento de 2 milhões [de euros]”
que o presidente do IRN “tinha apresentado anteriormente para
revisão dos códigos de Cabo Verde”, lê-se
no despacho de acusação.
Assim, o valor final
pelos serviços de António Figueiredo e da sua equipa do IRN ficou
em 1,2 milhões de euros.
Segundo o DCIAP, o
ministro Rui Mangueira ponderou falar com Paula Teixeira da Cruz
sobre este acordo com Figueiredo mas decidiu não fazê-lo. Se o
tivesse feito, a então ministra da Justiça teria descoberto as
atividades privadas do presidente do IRN. Ao longo do despacho de
acusação, os quatro procuradores asseguram por diversas vezes que
Paula Teixeira da Cruz desconhecia em absoluto os atos de Figueiredo
e de Maria Antónia Anes – pessoa que a ministra julgava ser de
confiança.
O
negócio, contudo conheceu um grande precalço. O Ministério da
Justiça de Angola decidiu em 2014 contratar o escritório ACPC -
Advogados e Associados por um valor que se situa entre os "300
milhões e os 400 milhões de euros", segundo o DCIAP, para
operacionalizar todo o processo de modernização da Justiça.
O negócio, contudo
conheceu um grande percalço. O Ministério da Justiça de Angola
decidiu em 2014 contratar o escritório ACPC – Advogados e
Associados por um valor que se situa entre os “300 milhões e os
400 milhões de euros”, segundo o DCIAP, para operacionalizar todo
o processo de modernização da Justiça.
De acordo com a
acusação, o acordo anterior entre António Figueiredo e Eliseu
Zumba manteve-se em vigor e a Merap Consulting assinou um contrato de
prestações de serviço com o ACPC para assegurar o “controlo da
execução do plano [de revisão dos códigos], atuando o ACPC em
representação do Ministério da Justiça angolano em todo o
processo”. Em troca, a Merap receberia cerca de um milhão de
euros.
Quem
são os sócios do ACPC - Advogados Associados?
Este
escritório foi fundado por Carlos Feijó (ex-ministro de Estado e
Chefe da Casa Civil do presidente José Eduardo dos Santos), Raul
Araújo (atual juiz do Tribunal Constitucional de Angola, coordenador
da Comissão de Reforma da Justiça e do Direito e ex-bastonário da
Ordem dos Advogados entre 2002 e 2004) e Edeltrudes Costa (atual
ministro de Estado e Chefe da Casa Civil do Presidente da República).
Feijó já saiu da sociedade que chegou a ter o seu nome, enquanto
que Araújo e Costa têm a ligação à ACPC suspensa em virtude dos
cargos públicos que exercem.
O DCIAP, contudo,
não conseguiu detetar a totalidade dos circuitos financeiros por
onde passaram estes valores contratualizados, tendo apenas localizado
a alegada entrega de 30 mil euros em numerário a António
Figueiredo.
Aproveitamento dos
serviços informáticos do IRN
Outra situação
relacionada com negócios com Angola diz respeito à comercialização
de aplicações informáticas do IRN com Angola. Mais uma vez,
estamos perante uma operação abrangida pela cooperação entre
Portugal e Angola e que foi alvo de negócios privados.
A primeira aplicação
a ser ‘vendida’ foi o Sirauto -Espaço Registo [Automóvel],
tendo alegadamente os técnicos informáticos José Manuel Gonçalves,
Paulo Eliseu e Paulo Vieira participado na adaptação do sistema à
administração pública angolana através de uma prestação de
serviços prestada à Lusomerap, filial portuguesa da Merap
Consulting. Tudo terá sido feito dentro do horário de serviço no
IRN, com o conhecimento e autorização de António Figueiredo.
Por este serviço, a
Lusomerap faturou à Merap Consulting, a sua casa-mãe, cerca de 600
mil euros em Março de 2014. Mais tarde, em fevereiro de 2014, a
Merap terá pago cerca de 84 mil euros à Formallize por uma
aplicação informática de contabilidade.
Os arguidos
acidentais
Há dois arguidos
acidentais no processo dos Vistos Gold. Um chama-se Fernando Pereira,
é bancário na Caixa Agrícola Mútuo de Tábua (distrito de
Coimbra), primo de António Figueiredo, e foi acusado do crime de
branqueamento de capitais por alegadamente ter ajudado o
ex-presidente do IRN a ocultar a origem do dinheiro proveniente das
atividades alegadamente ilícitas. Além de ter disponibilizado uma
conta sua para Figueiredo depositar dinheiro, Pereira terá ainda
recebido dinheiro vivo do seu primo para depositar na conta que
aquele e a sua mulher tinham aberto na sua agência bancária.
Vistos-Gold-salgado_e_pereira
(1)
Já João Salgado,
administrador da Coimbra Editoral, também aparece envolvido neste
caso por intermédio de António Figueiredo. Responsável pela
composição gráfica e edição do livro “Código de Registo Civil
Anotado e Legislação Complementar”, em que um dos autores é
Eliseu Bumba, Salgado cobrou cerca de 10 mil euros à Lusomerap pelo
trabalho. Contudo, terá combinado previamente pagar uma comissão do
serviço a António Figueiredo (que lhe tinha proporcionado o
contrato) e ao seu braço direito Abílio Silva.
O caricato, segundo
a descrição feita pelos procuradores do DCIAP no despacho de
acusação, é que João Salgado terá pedido ajuda a António
Figueiredo sobre a forma como deveria entre o dinheiro da comissão.
O ex-presidente do IRN disponibilizou-se prontamente a dar-lhe dicas,
tendo Salgado, de acordo com o DCIAP, entregue no final de 2013 um
envelope com 1.000 euros em dinheiro dentro de um livro. António
Figueiredo e Abílio Silva, contudo, não terão ficado satisfeitos
com o valor.
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