domingo, 8 de novembro de 2015

Uma crise portuguesa, num outro Novembro / PÚBLICO


Uma crise portuguesa, num outro Novembro
DIRECÇÃO EDITORIAL 08/11/2015 - PÚBLICO

Do poder central ao poder local, os políticos agitam-se. Com a política, mas também com delírios e veneno.

Faz hoje exactamente quarenta anos, a televisão portuguesa (na altura só havia a RTP) exibiu um dos mais citados e fogosos debates políticos da nossa história: o frente-a-frente de Mário Soares e Álvaro Cunhal. Dizia o primeiro: “O PC deu provas durante estes meses de que quer transformar este país numa ditadura.” Respondia o segundo: “Olhe que não! olhe que não!” Contra-atacava o primeiro: “O senhor teima em querer governar com uma minoria…” Contrapunha o segundo: “O que eu teimo é em querer fazer uma revolução com revolucionários, em querer fazer democracia com democratas, em querer fazer socialismo com socialistas.” De novo o primeiro: “Eu estou de acordo em que os comunistas tenham a possibilidade de fazer a sua propaganda. Agora, também que o CDS e o PPD façam (…).” Esclarecimento do segundo: “Ninguém prescinde do PPD no país, queremos é excluí-lo do Governo.” Soares, por fim: “Não é o sr. doutor que é o juiz disso (…) É o Povo português. Até sucede que o povo português preferiu o PPD ao seu partido… em grande maioria. Votaram mais do dobro.” Cunhal: “A aliança dos comunistas portugueses (…) é com os comunistas e com as forças de esquerda contra a reacção fascista, contra as forças de direita.” O debate, segundo o livro Os Dias Loucos do PREC (de Adelino Gomes e José Pedro Castanheira, livro de onde foram tirados estes excertos), durou quatro horas, entre as 22h e as 2h da manhã.

O que se seguiu já faz parte da história. O poder tremia sob o peso da pressão das ruas até que, a 25 de Novembro, um golpe militar pôs a casa “em ordem”. Mário Soares foi primeiro-ministro e presidente da República, Cunhal liderou o PCP enquanto teve forças (morreu em 2005). Na essência, porém, muito do que se discutiu naquela altura volta a ecoar agora: a dicotomia esquerda-direita, as políticas de alianças, as alianças “naturais” e as outras, o peso do voto, a contabilidade das clientelas e também da rua, hoje mais quieta. Mas tudo se recria hoje em novos cenários, mais polidos, não os da rua mas os dos gabinetes, com contabilidades ínvias, promessas pouco seguras, ideias moldáveis às conveniências do momento, delírios e algum veneno. Em 1975 havia o fantasma de uma invasão externa, a miragem de navios da NATO na barra do Tejo, em 2015 há a União Europeia, as agências de rating, os mercados e o fantasma de uma nova troika.


Aquilo a que por aí se chama “crispação” (palavra que em 1975 nem era usada, até porque se lhe sobrepunha muitas vezes a violência directa, da esquerda e da direita) parece estar a replicar-se também nalguns redutos do poder local, como damos conta nesta edição. Mas é ao Parlamento (a tal casa da democracia que sobreviveu, até agora, a tudo isto) que cabe a última palavra, antes que, no estertor de “soluções” inviáveis, esta seja devolvida ao povo português. Até lá, talvez valha a pena meditar nos contornos desta outra crise, num Novembro já distante daquele em que Portugal esteve à beira da guerra civil (cenário hoje longínquo) mas acabou por sobreviver a esse pesadelo.

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