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OPINIÃO
O ódio ao
presente
O professor
Miguel Castelo-Branco tem, no fundo, um problema com a própria democracia. Mas
é importante prestar atenção ao seu discurso, por mais desvairado que pareça.
Elísio Macamo
2 de Março de
2020, 7:00
O mais recente
episódio do programa “Prós e Contras” da RTP contou com a participação do
professor Miguel Castelo-Branco, por sinal, figura de proa do movimento “Nova
Portugalidade”. Muitos amigos torceram o nariz quando o viram no programa
devido ao que eles consideram ser uma postura racista. Não tenho a certeza se a
palavra racismo descreve a sua postura. Parece-me algo pior, mas ao mesmo tempo
incongruente. Segundo ele próprio escreve na sua página da internet, ele não é
racista, mas sim “xenófobo”. O problema desta “xenofobia”, contudo, é que ela
assenta na superioridade natural do que ele chama de “Portugalidade”, na
verdade, uma visão do mundo problemática que merece maior atenção do que tem
recebido. É incongruente porque ele parece considerar natural que culturas
“inferiores” se submetam à dominação de culturas “superiores”.
Interessei-me por
entender esta visão do mundo quando logo na sua primeira intervenção nesse
programa ele manifestou falta de interesse pelo que chamou de “superstição” do
progresso e disse, pelo contrário, acreditar apenas na tensão entre “abismo e
ascensão para outros níveis de consciência”. Há nesta revelação uma ode a uma
espécie de niilismo que se confirma nos seus vários escritos, sobretudo na
rubrica “Nova Ideia” do seu site. Trata-se dum niilismo de inspiração
Nietzscheana que repudia o progresso como afirmação dos mais fracos sobre os
mais fortes. Dito doutro modo, a ordem anterior marcada pela desigualdade e
pela prerrogativa dos mais fortes de oprimirem os mais fracos é a ordem natural
das coisas. Tudo aquilo que procura alterar esta ordem introduzindo uma moral
que rejeita a desigualdade e a opressão constitui manifestação da “mentalidade
de escravo” que Nietzsche acusou o Cristianismo de ter usado para corromper o
mundo.
A leitura dos
textos nesse site põe a descoberto uma visão do mundo com uma aversão doentia e
sistemática ao presente. Não é exactamente a exaltação do passado. É, antes
pelo contrário, o ódio ao futuro que se apresenta aos olhos do autor na forma
duma sociedade aberta que resulta do progresso humano. Daí, creio, a rejeição
do progresso como uma “superstição” e a exaltação do “abismo” ou da “ascensão
para outros níveis de consciência”. É uma rejeição da História. Os textos
exaltam a “Portugalidade” como uma maneira de estar que não resulta de nenhuma
engenharia social, mas sim da revelação do génio dum povo que se impôs ao resto
do mundo pelo seu vigor estético e virilidade. O professor Castelo Branco é
sincero quando diz que não é racista, pois no seu esquema filosófico a
categoria racial é apenas acidental. Conforme ele sugere, não é a cor da pele
que inscreve alguém na “Portugalidade”, mas sim a identificação com o seu valor
intrínseco e imutável assim como a hostilidade em relação a tudo quanto possa
diluir esse sentido de destino partilhado. Ele escreve vários textos em que
argumenta, por exemplo, contra a “Lusofonia” para dizer que nem mesmo falar
Português faz de alguém “português”. Cita exemplos de comunidades pelo mundo
fora que se identificam como “portuguesas” sem mesmo falarem a língua. Não é
que ele não goste de negros. Detesta os negros que não aceitam a sua condição
subalterna. Isso inclui também os brancos pobres.
Eu acho que é
importante prestar atenção a este discurso, por mais desvairado que pareça. Há
duas coisas importantes que ele faz com a sua definição de “Portugalidade”. A
primeira é que coloca a “heroicidade” que se manifestou por via das conquistas
imperiais e, portanto, da capacidade de Portugal de vergar outros povos à sua
vontade como o principal critério de definição dessa “Portugalidade”. Sendo
assim, pertence a esta cultura todo aquele que aceita como sendo natural a sua
estrutura social. Ou, dito de outro modo, há os fortes e há os fracos e a vida,
infelizmente, é assim. Não importa se alguém é negro ou não, o que importa é se
aceita a sua posição subalterna. Este critério aplica-se também aos portugueses
de pele clara que se encontram no fundo da estrutura social. Têm que aceitar a
sua posição subalterna. A aparência de monarquismo que o movimento tem assenta,
na verdade, neste ideal de sociedade, nomeadamente uma sociedade desigual por
força da ordem natural das coisas. A segunda coisa é que esta visão do mundo
define como seu inimigo todo aquele que não se conforma com esta ordem. Toda a
sociedade que resulta da engenharia social é uma sociedade frágil e votada ao
fracasso. A moral reside no heroísmo dum povo e, por isso, só merece existir
uma sociedade preparada para morrer em defesa de si própria – o tal “abismo”.
Há ecos do Nazismo, sobretudo aquela convicção profunda assente na ausência de
certeza sobre a existência do mundo e o refúgio na comunidade original pelo
bocadinho de certeza que ela confere. Por isso, mais “perigosa” do que os
negros, ciganos ou outros sujeitos racializados é a esquerda e, no passado, o
liberalismo (de Sá da Bandeira, mas também de António Enes muito mais tarde)
que, ao inventar as políticas públicas, introduziu um elemento que
desestabiliza a ordem natural das coisas. É por isso que o professor Castelo
Branco rejeita o “nacionalismo” – um espaço político dentro do qual direitos
definem a pertença – a favor do “patriotismo”, esta coisa vaga que só apreende
quem dela faz parte.
Admitir a
existência de minorias em Portugal – no programa ele mostrou relutância em
falar de “comunidades” – é diluir o sentido de patriotismo tão essencial à sua
segurança ontológica num mundo incerto. Por essa razão, o niilismo deste
movimento manifesta-se como ódio ao presente, pois o presente cria – e é criado
pelos – espaços que resultam de políticas públicas. Vários painelistas,
sobretudo a professora Cristina Roldão, insistiram muito sobre este assunto e
isto criou mais desconforto ao representante da Nova Portugalidade do que tudo
quanto se disse sobre o racismo em si. O que mais o incomoda é uma sociedade
moderna que se constitui politicamente. Está aqui, pelo menos para mim, a chave
para discutir com indivíduos desta laia, ou melhor, para conversar com
portugueses sensatos sobre o perigo que esta visão do mundo constitui. O
“racismo” é um efeito secundário do seu posicionamento. O essencial deste
posicionamento é o ódio ao presente e nesse ódio manifesta-se algo mais
importante ainda, nomeadamente uma aversão total à política.
O professor
Miguel Castelo-Branco tem, no fundo, um problema com a própria democracia. Ele
parece detestar a democracia entendida como regras de jogo para se lutar por uma
melhor condição humana, porque isso é sinal de fraqueza e de submissão à moral
dos fracos. Nesse sentido, ele não é apenas um problema para os “sujeitos
racializados”. É também um problema para todos os portugueses que acreditam na
democracia e, porque não, no progresso humano.
(este artigo é
uma versão modificada de um texto originalmente publicado no mural de Facebook
do autor)
Professor de
Sociologia e Estudos Africanos, Universidade de Basileia
OPINIÃO
O ódio à
racionalidade
É dura a tarefa
de dar voz à serenidade em tempos de histeria – pior, quando o delírio parece
aspirar à dignidade de ciência para, aproveitando o prestígio das instituições,
converter-se em narrativa única, dominadora e totalitária. Mas de modo algum
podemos render-lhes o campo.
Miguel
Castelo-Branco
9 de Março de
2020, 5:45
Foi com grande
surpresa que na edição de 2 de Março deste jornal fui confrontado com um texto
intitulado O ódio ao presente, da autoria do meu prezado conterrâneo professor
Elísio Macamo, reflexão motivada pela minha participação no “Prós &
Contras” do passado dia 24, assim como da leitura de textos avulsos por mim
assinados na página Facebook da Nova Portugalidade (NP), associação cívica e
cultural da qual sou colaborador.
Lamentando não
existir na nossa língua sentença equivalente daquela de Rivarol que até há anos
encimava o pórtico das faculdades de humanidades – “Ce qui n'est pas clair
n'est pas français” –, não posso deixar de lamentar no texto do professor
Macamo a negação da clareza, concisão, objetividade, coerência e coesão
requeridas por qualquer tentame ensaístico. Abstraindo expressões menos
cordatas, e até argumentos que visam paralisar o antagonista, categorizando-o
como inimigo da democracia e da espécie humana – para não referir o “ódio”,
suprema fórmula infantil como inquisitorial que autoriza dar morte cívica a um
homem, privá-lo de liberdade de expressão e criminalizar-lhe o pensamento –, o
texto do professor Macamo revela três gravíssimas falhas: Macamo parece não ter
seguido o debate; se o seguiu, parece não ter compreendido o que ali eu disse;
Macamo quis fazer psicanálise ao meu discurso, recorrendo aos seus preconceitos
e fantasmas para me endossar um metatexto que é negação do que ali tentei
explicar a uma assembleia profundamente hostil a qualquer forma de expressão
racional e ilustrada de argumentos. Aquela sala, dominada por uma miríade de
associações de ativistas, não estava disposta a discutir, mas a repetir frases
feitas e comboios de adjetivos. Nem faltou, caído do éter londrino via Skype,
um professor com discurso autoritário para me lançar uma fatwa, tentativa
gorada pelo facto de o mesmo se ter estatelado estrepitosamente, dando até
provas de imperícia no mais chão conhecimento das cronologias.
Como raramente
sucumbo à tentação do pólo irracional e teimosamente me atenho à racionalidade discursiva;
como prescindo de psicologizações que reduzem a complexidade a combustões
emocionais, obriga-me a circunstância a prestar os seguintes esclarecimentos ao
meu compatrício professor Elísio Macamo:
Falso debate
Discreteia o
professor Macamo sobre o meu suposto entusiasmo pela “afirmação dos mais fortes
sobre os mais fracos” e pela “moral de desigualdade” que cultivaria. Ora, se há
evidência em todos os meus escritos é precisamente a denúncia de doutrinas e
práticas que justificam a segregação [dos fracos e dos pobres] por invocação da
“espontaneidade”, do “struggle for life” ou da “lei da natureza”, porquanto o
homem possuiu uma segunda natureza cultural e as comunidades humanas não são
termiteiras. O professor Macamo diz – e diz muito bem – que não sou racista,
pois que a Portugalidade é expressão do universalismo português entendido como
fraternidade de povos destribalizados constituídos em nação de nações, como há
meses lembrou o professor Alexandre Franco de Sá em colóquio realizado pela
Nova Portugalidade na Casa de Goa. A “racialização”, sim, é obsessão e bordão
tão caro aos comunitaristas inclinados ao fator rácico tomado como
sobredeterminante na arrumação antropológica e da vida social.
O que insisti
dizer nas poucas intervenções em que me foi possível concluir um raciocínio
foi, precisamente, o de que o debate sobre o “racismo” é um falso debate.
Ser-se negro e mulher ou branco e homem, nada quer dizer. A origem racial,
assim como o género, não são categorias sociais. Não há conivência económica,
social e política alguma entre a Dra. Joacine Katar Moreira (JKM) e uma mulher
portuguesa negra originária de um bairro do subúrbio da outra margem do Tejo
que se levanta às cinco da madrugada, apanha o cacilheiro às 5h30, desembarca
no Terreiro do Paço às 6h, aguarda meia hora na fila para o autocarro e chega
ao emprego às 7h para limpar o gabinete de investigadora em Ciências Sociais da
Dra. JKM, mulher com formação superior ocupada no terciário. A questão do
“racismo” está, pois, mal colocada. É tudo uma questão de classe e posição
social, pelo que a análise adulta deve remeter para as condições sociológicas
objetivas de status, rendimento e propriedade. No fundo, tais bandeiras só
podem concitar entusiasmo a uma certa burguesia empregada no terciário.
Discussões sobre raça e género impedem que se encare a realidade social e
política de frente, pelo que são alienação, animação cultural, mas também
comunitarização vitimizadora que muitas vezes permite manter negócio político.
É uma conspiração anti-democrática que destrói o espaço da Cidade. Enquanto
estiverem os “ativistas” siderados por tais temas, não se fala na pobreza, na
hemorragia da emigração da nossa juventude, na falta de soberania do país, no
desmantelamento da nossa indústria e na vergonha de termos a população ativa a
servir copos a turistas ou em call-centers a vender serviços insignificantes.
A tradição
colonialista é recente
No debate,
lembrei que historicamente houve um racismo doutrinário branco, o qual está
mais relacionado com a tradição intelectual das esquerdas (as Luzes, a
Enciclopédia, o Evolucionismo, o Progresso) e que chegou tardiamente a Portugal
através de Oliveira Martins, mas que encontrou expressão política através do
general Dantas Baracho, deputado por Angola no fim da monarquia liberal e,
depois, republicano. Afinal, a mudança da Secretaria de Estado da Marinha e do
Ultramar para Ministério das Colónias (1911), a Lei do Indígena (1917) e até o
Acto Colonial de 1930 foram inspirados pelo modelo centralista, vertical, eurocêntrico
e progressista da mission civilisatrice do colonialismo francês da III
República de Jules Ferry. Tudo isso foi breve, pelo que a poderemos balizar
entre finais do século XIX e o início da década de 1960. Onde antes houvera
“cidadania antiga portuguesa” e um império policêntrico – em África mandavam
elites negras e mestiças, pois brancos não os havia até finais do século XIX –
passou a haver quadrícula colonial, corpo administrativo e funcionários
metropolitanos que se sobrepuseram àquelas elites locais, por sinal as mesmas
que hoje, de Cabo Verde a Angola e São Tomé, são viveiro para recrutamento de
políticos, generais, diplomatas e administradores. Sim, durante séculos
Portugal foi uma nação africana.
O terrorismo
cultural
O que devia, sim,
incomodar o meu prezado conterrâneo professor Elísio Macamo é a destruição do
espírito académico. Vivemos numa época em que a Universidade, a maior glória da
civilização medieval europeia, está entregue à glossolalia de “novos saberes”
que despedaçam séculos de tradição racional ocidental, em que se decreta o que
deve ser e não deve ser lido – obras de Voltaire, Goethe, Rousseau,
Schopenhauer, Dickens e Mark Twain retiradas das estantes das bibliotecas por
conterem matéria considerada racista, etnocêntrica, xenófoba, sexista, misógina
e “patriótica” – e até fontes clássicas por excelência da literatura ocidental
expurgadas do currículo dos cursos de História da Literatura em Oxford. A
defesa do património civilizacional europeu coloca-se como prioritária ante os
novos bárbaros. Perante o vírus da histerização que lembra a caça às bruxas e a
matança dos gatos de Paris, precisa-se com urgência de políticas firmes que
impeçam a transformação da Universidade em Nave dos Loucos.
Por essa posição
de firmeza em favor da racionalidade, do rigor e de um patriotismo inclusivo e
aberto, que a portugueses de todas as cores e credos possa agregar numa
narrativa comum, continuaremos eu e a NP a desenvolver todos os esforços. É
dura a tarefa de dar voz à serenidade em tempos de histeria – pior, quando o
delírio parece aspirar à dignidade de ciência para, aproveitando o prestígio
das instituições, converter-se em narrativa única, dominadora e totalitária.
Mas de modo algum podemos render-lhes o campo.
O autor escreve
segundo o novo acordo ortográfico
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