segunda-feira, 9 de março de 2020

O ódio ao presente / O ódio à racionalidade

Imagem de OVOODOCORVO

OPINIÃO
O ódio ao presente

O professor Miguel Castelo-Branco tem, no fundo, um problema com a própria democracia. Mas é importante prestar atenção ao seu discurso, por mais desvairado que pareça.

Elísio Macamo
2 de Março de 2020, 7:00

O mais recente episódio do programa “Prós e Contras” da RTP contou com a participação do professor Miguel Castelo-Branco, por sinal, figura de proa do movimento “Nova Portugalidade”. Muitos amigos torceram o nariz quando o viram no programa devido ao que eles consideram ser uma postura racista. Não tenho a certeza se a palavra racismo descreve a sua postura. Parece-me algo pior, mas ao mesmo tempo incongruente. Segundo ele próprio escreve na sua página da internet, ele não é racista, mas sim “xenófobo”. O problema desta “xenofobia”, contudo, é que ela assenta na superioridade natural do que ele chama de “Portugalidade”, na verdade, uma visão do mundo problemática que merece maior atenção do que tem recebido. É incongruente porque ele parece considerar natural que culturas “inferiores” se submetam à dominação de culturas “superiores”.

Interessei-me por entender esta visão do mundo quando logo na sua primeira intervenção nesse programa ele manifestou falta de interesse pelo que chamou de “superstição” do progresso e disse, pelo contrário, acreditar apenas na tensão entre “abismo e ascensão para outros níveis de consciência”. Há nesta revelação uma ode a uma espécie de niilismo que se confirma nos seus vários escritos, sobretudo na rubrica “Nova Ideia” do seu site. Trata-se dum niilismo de inspiração Nietzscheana que repudia o progresso como afirmação dos mais fracos sobre os mais fortes. Dito doutro modo, a ordem anterior marcada pela desigualdade e pela prerrogativa dos mais fortes de oprimirem os mais fracos é a ordem natural das coisas. Tudo aquilo que procura alterar esta ordem introduzindo uma moral que rejeita a desigualdade e a opressão constitui manifestação da “mentalidade de escravo” que Nietzsche acusou o Cristianismo de ter usado para corromper o mundo.

A leitura dos textos nesse site põe a descoberto uma visão do mundo com uma aversão doentia e sistemática ao presente. Não é exactamente a exaltação do passado. É, antes pelo contrário, o ódio ao futuro que se apresenta aos olhos do autor na forma duma sociedade aberta que resulta do progresso humano. Daí, creio, a rejeição do progresso como uma “superstição” e a exaltação do “abismo” ou da “ascensão para outros níveis de consciência”. É uma rejeição da História. Os textos exaltam a “Portugalidade” como uma maneira de estar que não resulta de nenhuma engenharia social, mas sim da revelação do génio dum povo que se impôs ao resto do mundo pelo seu vigor estético e virilidade. O professor Castelo Branco é sincero quando diz que não é racista, pois no seu esquema filosófico a categoria racial é apenas acidental. Conforme ele sugere, não é a cor da pele que inscreve alguém na “Portugalidade”, mas sim a identificação com o seu valor intrínseco e imutável assim como a hostilidade em relação a tudo quanto possa diluir esse sentido de destino partilhado. Ele escreve vários textos em que argumenta, por exemplo, contra a “Lusofonia” para dizer que nem mesmo falar Português faz de alguém “português”. Cita exemplos de comunidades pelo mundo fora que se identificam como “portuguesas” sem mesmo falarem a língua. Não é que ele não goste de negros. Detesta os negros que não aceitam a sua condição subalterna. Isso inclui também os brancos pobres.

Eu acho que é importante prestar atenção a este discurso, por mais desvairado que pareça. Há duas coisas importantes que ele faz com a sua definição de “Portugalidade”. A primeira é que coloca a “heroicidade” que se manifestou por via das conquistas imperiais e, portanto, da capacidade de Portugal de vergar outros povos à sua vontade como o principal critério de definição dessa “Portugalidade”. Sendo assim, pertence a esta cultura todo aquele que aceita como sendo natural a sua estrutura social. Ou, dito de outro modo, há os fortes e há os fracos e a vida, infelizmente, é assim. Não importa se alguém é negro ou não, o que importa é se aceita a sua posição subalterna. Este critério aplica-se também aos portugueses de pele clara que se encontram no fundo da estrutura social. Têm que aceitar a sua posição subalterna. A aparência de monarquismo que o movimento tem assenta, na verdade, neste ideal de sociedade, nomeadamente uma sociedade desigual por força da ordem natural das coisas. A segunda coisa é que esta visão do mundo define como seu inimigo todo aquele que não se conforma com esta ordem. Toda a sociedade que resulta da engenharia social é uma sociedade frágil e votada ao fracasso. A moral reside no heroísmo dum povo e, por isso, só merece existir uma sociedade preparada para morrer em defesa de si própria – o tal “abismo”. Há ecos do Nazismo, sobretudo aquela convicção profunda assente na ausência de certeza sobre a existência do mundo e o refúgio na comunidade original pelo bocadinho de certeza que ela confere. Por isso, mais “perigosa” do que os negros, ciganos ou outros sujeitos racializados é a esquerda e, no passado, o liberalismo (de Sá da Bandeira, mas também de António Enes muito mais tarde) que, ao inventar as políticas públicas, introduziu um elemento que desestabiliza a ordem natural das coisas. É por isso que o professor Castelo Branco rejeita o “nacionalismo” – um espaço político dentro do qual direitos definem a pertença – a favor do “patriotismo”, esta coisa vaga que só apreende quem dela faz parte.

Admitir a existência de minorias em Portugal – no programa ele mostrou relutância em falar de “comunidades” – é diluir o sentido de patriotismo tão essencial à sua segurança ontológica num mundo incerto. Por essa razão, o niilismo deste movimento manifesta-se como ódio ao presente, pois o presente cria – e é criado pelos – espaços que resultam de políticas públicas. Vários painelistas, sobretudo a professora Cristina Roldão, insistiram muito sobre este assunto e isto criou mais desconforto ao representante da Nova Portugalidade do que tudo quanto se disse sobre o racismo em si. O que mais o incomoda é uma sociedade moderna que se constitui politicamente. Está aqui, pelo menos para mim, a chave para discutir com indivíduos desta laia, ou melhor, para conversar com portugueses sensatos sobre o perigo que esta visão do mundo constitui. O “racismo” é um efeito secundário do seu posicionamento. O essencial deste posicionamento é o ódio ao presente e nesse ódio manifesta-se algo mais importante ainda, nomeadamente uma aversão total à política.

O professor Miguel Castelo-Branco tem, no fundo, um problema com a própria democracia. Ele parece detestar a democracia entendida como regras de jogo para se lutar por uma melhor condição humana, porque isso é sinal de fraqueza e de submissão à moral dos fracos. Nesse sentido, ele não é apenas um problema para os “sujeitos racializados”. É também um problema para todos os portugueses que acreditam na democracia e, porque não, no progresso humano.

(este artigo é uma versão modificada de um texto originalmente publicado no mural de Facebook do autor)

Professor de Sociologia e Estudos Africanos, Universidade de Basileia

OPINIÃO
O ódio à racionalidade

É dura a tarefa de dar voz à serenidade em tempos de histeria – pior, quando o delírio parece aspirar à dignidade de ciência para, aproveitando o prestígio das instituições, converter-se em narrativa única, dominadora e totalitária. Mas de modo algum podemos render-lhes o campo.

Miguel Castelo-Branco
9 de Março de 2020, 5:45

Foi com grande surpresa que na edição de 2 de Março deste jornal fui confrontado com um texto intitulado O ódio ao presente, da autoria do meu prezado conterrâneo professor Elísio Macamo, reflexão motivada pela minha participação no “Prós & Contras” do passado dia 24, assim como da leitura de textos avulsos por mim assinados na página Facebook da Nova Portugalidade (NP), associação cívica e cultural da qual sou colaborador.

Lamentando não existir na nossa língua sentença equivalente daquela de Rivarol que até há anos encimava o pórtico das faculdades de humanidades – “Ce qui n'est pas clair n'est pas français” –, não posso deixar de lamentar no texto do professor Macamo a negação da clareza, concisão, objetividade, coerência e coesão requeridas por qualquer tentame ensaístico. Abstraindo expressões menos cordatas, e até argumentos que visam paralisar o antagonista, categorizando-o como inimigo da democracia e da espécie humana – para não referir o “ódio”, suprema fórmula infantil como inquisitorial que autoriza dar morte cívica a um homem, privá-lo de liberdade de expressão e criminalizar-lhe o pensamento –, o texto do professor Macamo revela três gravíssimas falhas: Macamo parece não ter seguido o debate; se o seguiu, parece não ter compreendido o que ali eu disse; Macamo quis fazer psicanálise ao meu discurso, recorrendo aos seus preconceitos e fantasmas para me endossar um metatexto que é negação do que ali tentei explicar a uma assembleia profundamente hostil a qualquer forma de expressão racional e ilustrada de argumentos. Aquela sala, dominada por uma miríade de associações de ativistas, não estava disposta a discutir, mas a repetir frases feitas e comboios de adjetivos. Nem faltou, caído do éter londrino via Skype, um professor com discurso autoritário para me lançar uma fatwa, tentativa gorada pelo facto de o mesmo se ter estatelado estrepitosamente, dando até provas de imperícia no mais chão conhecimento das cronologias.

Como raramente sucumbo à tentação do pólo irracional e teimosamente me atenho à racionalidade discursiva; como prescindo de psicologizações que reduzem a complexidade a combustões emocionais, obriga-me a circunstância a prestar os seguintes esclarecimentos ao meu compatrício professor Elísio Macamo:

Falso debate
Discreteia o professor Macamo sobre o meu suposto entusiasmo pela “afirmação dos mais fortes sobre os mais fracos” e pela “moral de desigualdade” que cultivaria. Ora, se há evidência em todos os meus escritos é precisamente a denúncia de doutrinas e práticas que justificam a segregação [dos fracos e dos pobres] por invocação da “espontaneidade”, do “struggle for life” ou da “lei da natureza”, porquanto o homem possuiu uma segunda natureza cultural e as comunidades humanas não são termiteiras. O professor Macamo diz – e diz muito bem – que não sou racista, pois que a Portugalidade é expressão do universalismo português entendido como fraternidade de povos destribalizados constituídos em nação de nações, como há meses lembrou o professor Alexandre Franco de Sá em colóquio realizado pela Nova Portugalidade na Casa de Goa. A “racialização”, sim, é obsessão e bordão tão caro aos comunitaristas inclinados ao fator rácico tomado como sobredeterminante na arrumação antropológica e da vida social.

O que insisti dizer nas poucas intervenções em que me foi possível concluir um raciocínio foi, precisamente, o de que o debate sobre o “racismo” é um falso debate. Ser-se negro e mulher ou branco e homem, nada quer dizer. A origem racial, assim como o género, não são categorias sociais. Não há conivência económica, social e política alguma entre a Dra. Joacine Katar Moreira (JKM) e uma mulher portuguesa negra originária de um bairro do subúrbio da outra margem do Tejo que se levanta às cinco da madrugada, apanha o cacilheiro às 5h30, desembarca no Terreiro do Paço às 6h, aguarda meia hora na fila para o autocarro e chega ao emprego às 7h para limpar o gabinete de investigadora em Ciências Sociais da Dra. JKM, mulher com formação superior ocupada no terciário. A questão do “racismo” está, pois, mal colocada. É tudo uma questão de classe e posição social, pelo que a análise adulta deve remeter para as condições sociológicas objetivas de status, rendimento e propriedade. No fundo, tais bandeiras só podem concitar entusiasmo a uma certa burguesia empregada no terciário. Discussões sobre raça e género impedem que se encare a realidade social e política de frente, pelo que são alienação, animação cultural, mas também comunitarização vitimizadora que muitas vezes permite manter negócio político. É uma conspiração anti-democrática que destrói o espaço da Cidade. Enquanto estiverem os “ativistas” siderados por tais temas, não se fala na pobreza, na hemorragia da emigração da nossa juventude, na falta de soberania do país, no desmantelamento da nossa indústria e na vergonha de termos a população ativa a servir copos a turistas ou em call-centers a vender serviços insignificantes.

A tradição colonialista é recente
No debate, lembrei que historicamente houve um racismo doutrinário branco, o qual está mais relacionado com a tradição intelectual das esquerdas (as Luzes, a Enciclopédia, o Evolucionismo, o Progresso) e que chegou tardiamente a Portugal através de Oliveira Martins, mas que encontrou expressão política através do general Dantas Baracho, deputado por Angola no fim da monarquia liberal e, depois, republicano. Afinal, a mudança da Secretaria de Estado da Marinha e do Ultramar para Ministério das Colónias (1911), a Lei do Indígena (1917) e até o Acto Colonial de 1930 foram inspirados pelo modelo centralista, vertical, eurocêntrico e progressista da mission civilisatrice do colonialismo francês da III República de Jules Ferry. Tudo isso foi breve, pelo que a poderemos balizar entre finais do século XIX e o início da década de 1960. Onde antes houvera “cidadania antiga portuguesa” e um império policêntrico – em África mandavam elites negras e mestiças, pois brancos não os havia até finais do século XIX – passou a haver quadrícula colonial, corpo administrativo e funcionários metropolitanos que se sobrepuseram àquelas elites locais, por sinal as mesmas que hoje, de Cabo Verde a Angola e São Tomé, são viveiro para recrutamento de políticos, generais, diplomatas e administradores. Sim, durante séculos Portugal foi uma nação africana.

O terrorismo cultural
O que devia, sim, incomodar o meu prezado conterrâneo professor Elísio Macamo é a destruição do espírito académico. Vivemos numa época em que a Universidade, a maior glória da civilização medieval europeia, está entregue à glossolalia de “novos saberes” que despedaçam séculos de tradição racional ocidental, em que se decreta o que deve ser e não deve ser lido – obras de Voltaire, Goethe, Rousseau, Schopenhauer, Dickens e Mark Twain retiradas das estantes das bibliotecas por conterem matéria considerada racista, etnocêntrica, xenófoba, sexista, misógina e “patriótica” – e até fontes clássicas por excelência da literatura ocidental expurgadas do currículo dos cursos de História da Literatura em Oxford. A defesa do património civilizacional europeu coloca-se como prioritária ante os novos bárbaros. Perante o vírus da histerização que lembra a caça às bruxas e a matança dos gatos de Paris, precisa-se com urgência de políticas firmes que impeçam a transformação da Universidade em Nave dos Loucos.
Por essa posição de firmeza em favor da racionalidade, do rigor e de um patriotismo inclusivo e aberto, que a portugueses de todas as cores e credos possa agregar numa narrativa comum, continuaremos eu e a NP a desenvolver todos os esforços. É dura a tarefa de dar voz à serenidade em tempos de histeria – pior, quando o delírio parece aspirar à dignidade de ciência para, aproveitando o prestígio das instituições, converter-se em narrativa única, dominadora e totalitária. Mas de modo algum podemos render-lhes o campo.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Técnico Superior do Estado/Investigador

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