JUSTIÇA
Auditoria
investiga centenas de processos atribuídos sem sorteio
Detectadas na
Relação de Lisboa centenas de casos entregues sem sorteio durante 15 anos. Não
significa que haja indícios de fraude, mas ainda podem ser revelados mais casos
de distribuição viciada.
Mariana Oliveira
11 de Março de 2020, 6:30
https://www.publico.pt/2020/03/11/sociedade/noticia/auditoria-investiga-centenas-processos-atribuidos-sorteio-1907215
Os resultados
preliminares da investigação que foi aberta pelo Conselho Superior da
Magistratura (CSM) há cerca de um mês para apurar eventuais falhas na
distribuição de processos aos diversos juízes do Tribunal da Relação de Lisboa
detectou centenas de processos distribuídos manualmente ao longo dos últimos 15
anos.
Tal não significa
que neste rol haja qualquer indício de irregularidades nas entregas de
processos que escaparam ao habitual sorteio, mas a análise detalhada que está
agora a ser feita, ainda pode vir a revelar novos casos de viciação, além das
três manipulações já conhecidas e que integram a investigação da Operação Lex.
Este inquérito criminal tem como arguidos três juízes desembargadores daquele
tribunal superior, incluindo um antigo presidente daquela instância, Luís Vaz
das Neves, interrogado no último dia de Janeiro.
O Tribunal da
Relação de Lisboa, com cerca de 150 juízes, é por onde passam a maioria dos
processos complexos e mediáticos do país. As outras Relações do país
(Guimarães, Porto, Coimbra e Évora) também estão sob escrutínio, mas, até ao
momento, não há qualquer indício de irregularidades.
Após cruzar
informações de múltiplas fontes, o PÚBLICO apurou que os resultados
preliminares da auditoria ao sistema informático que faz a distribuição
electrónica dos processos serviu para solidificar as suspeitas de fraude na
distribuição que já existiam no âmbito da Operação Lex, como o PÚBLICO já
noticiara. Mas mostraram que ainda há muito trabalho por fazer e só numa fase
mais avançada da investigação será possível perceber se os três casos
detectados na Lex são a excepção ou, pelo contrário, uma prática habitual nos
15 anos em que Vaz das Neves e o seu sucessor, Orlando Nascimento, estiveram na
presidência da principal Relação do país.
Até ao final
deste mês o CSM deverá voltar a avaliar novas conclusões da averiguação
interna, que a par da certidão do Ministério Público remetida após a
constituição de arguido de Vaz das Neves já deu origem a três processos
disciplinares que já estão a correr. Um contra o antigo presidente da Relação,
outro contra o seu sucessor, Orlando Nascimento e um terceiro contra o
desembargador Rui Gonçalves.
Neste momento, a
equipa que está a fazer a auditoria - que é liderada por um juiz do Supremo e
inclui um perito do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça,
além de oficiais de justiça - está a analisar cada um dos casos de distribuição
manual, comparando os registos electrónicos e a documentação formal assinada
pelos responsáveis pela distribuição. Nem sempre esses actos são presididos
pelos líderes das Relações, que podem delegar nos seus vices ou noutros juízes
a responsabilidade pela distribuição dos processos. Além disso a auditoria terá
que verificar se a justificação legal apresentada para fazer a distribuição
manual corresponde à verdade. Isto porque os juízes podem ter invocado os
mecanismos previstos pela lei, mas que não se adequam àquela situação em
concreto.
Recorde-se que a
aplicação informática que faz a distribuição electrónica dos casos pelos juízes
tem um módulo que permite fazer a distribuição manual, porque a própria lei
prevê algumas situações em que um caso tem que ir parar às mãos de um concreto
magistrado. Por exemplo, a Relação anulou a sentença da primeira instância e
mandou o juiz que fez o julgamento proferir uma nova decisão mais fundamentada.
O problema é que
tanto Vaz das Neves como o seu sucessor Orlando Nascimento, que se demitiu na
semana passada na sequência da divulgação de que as irregularidades processuais
também o visavam, usariam essa ferramenta de forma fraudulenta para viciar a
distribuição, evitar o sorteio electrónico e entregar determinados casos a
juízes que escolhiam previamente.
Os registos
informáticos já recolhidos parecem comprovar a fraude na distribuição, já
indiciada por mensagens de telemóvel trocadas entre Vaz das Neves e o juiz Rui
Rangel, o desembargador que está no centro deste caso de corrupção e tráfico de
influências, que envolve igualmente a sua ainda mulher, Fátima Galante.
As SMS foram
reveladas em primeira mão pela TVI que, em meados de Fevereiro, noticiou que
Vaz das Neves tinha sido constituído arguido no caso Lex, uma investigação
actualmente dirigida pela procuradora Maria José Morgado e pelo colega Vítor
Pinto. A equipa que lidera a Operação Lex, composta por mais duas procuradoras,
deverá ter a acusação do caso pronta até ao início do Verão.
As mensagens de
telemóvel mostravam como alegadamente tinha sido combinada a distribuição de
uma acção que Rui Rangel intentou contra o Correio da Manhã por causa de uma
notícia publicada em Abril de 2013 sobre uma dívida do magistrado a uma clínica
por causa de um tratamento corporal para reduzir o abdómen. O título referia
que Rangel tinha sido condenado “por calote a clínica”. O desembargador não
gostou da expressão e meteu um processo cível contra o jornal pedindo uma
indemnização pelos danos morais causados à sua imagem.
SMS e e-mails
Orlando
Nascimento acabou por ser escolhido como juiz relator do caso e, em Março de
2015, assina com dois colegas um acórdão em que os três condenam o Correio da
Manhã e alguns jornalistas a pagar uma indemnização de 50 mil euros a Rangel. O
dinheiro só acabou por não ser pago porque o jornal e os jornalistas visados
recorreram para o Supremo Tribunal de Justiça que anulou a anterior decisão e
absolveu todos, como antes o fizera o tribunal de primeira instância.
Antes de
reveladas as SMS, já a Visão noticiara a existência de um estranho e-mail que
teria sido enviado em Outubro de 2012 pelo antigo agente de jogadores José
Veiga para um funcionário da Relação de Lisboa, seu amigo de longa data, que
trabalhava com Rui Rangel. Foi este funcionário que, segundo os indícios
recolhidos pelos investigadores, reencaminhou para Rui Rangel e para o colega
Rui Gonçalves um e-mail relacionado com um recurso que José Veiga pretendia
apresentar da decisão das Varas Criminais de Lisboa que o condenaram, em
Setembro de 2012, a uma pena de quatro anos e seis meses de prisão, suspensa,
por fraude fiscal e branqueamento de capitais. Em causa estava um caso de
fraude fiscal relacionado com a transferência de João Vieira Pinto para o
Sporting.
Após ter recebido
o e-mail de Veiga, em Outubro de 2012, o oficial de justiça remete de seguida a
mensagem de correio electrónico para Rangel e para um colega, Rui Gonçalves,
que já foi ouvido como testemunha na Operação Lex e que acabou por ser o juiz
relator do caso.
Na semana
passada, o CSM anunciou que abriu um processo disciplinar contra este juiz da
Relação de Lisboa. Mas dentro do plenário do órgão máximo da magistratura
judicial, que se reuniu a 3 de Março, houve quem defendesse que mesmo que
existissem indícios da violação de deveres disciplinares, como entretanto
passaram mais de sete anos o caso já estaria prescrito. Relevante para a
abertura do processo disciplinar a Rui Gonçalves, uma decisão que acabou por
ter sido tomada por unanimidade pelo plenário do conselho, foi o facto de
vários membros, incluindo o presidente do Supremo, (que por inerência preside
ao CSM) terem sublinhado que já havia notícias que falavam da possibilidade de
Rui Gonçalves ser constituído arguido na Operação Lex ou num processo filho deste
caso, o que acontecer iria alterar o prazo de prescrição dos eventuais ilícitos
disciplinares.
Independentemente
disso, os elementos recolhidos no caso Lex já permitiram apurar que a
distribuição do caso que envolvia Veiga só é feita em Janeiro de 2013, ou seja,
três meses depois de o e-mail ter sido remetido aos dois juízes da Relação.
Curiosamente Veiga e outros dirigentes desportivos acabaram por ser absolvidos
pela Relação de Lisboa em Julho de 2013. Apenas João Pinto acabou condenado no
caso de fraude fiscal.
tp.ocilbup@arieviloem
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