sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

Esqueça tudo o que sabe sobre a Irlanda

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ANÁLISE
Esqueça tudo o que sabe sobre a Irlanda

O “Brexit” pôs a História em movimento e deverá abrir a porta à reunificação irlandesa e selar o fim do Reino Unido.

JORGE ALMEIDA FERNANDES
15 de Fevereiro de 2020, 6:24

Inacreditável. Em 2016, raros sonhavam com a reunificação da Irlanda no horizonte das suas vidas. Na Escócia, depois do referendo, muitos duvidavam da viabilidade da independência. Subitamente, elas aí estão, no centro da agenda política. Não quer dizer que venham a acontecer. Quer dizer que passaram a ser possíveis. Não foram o Sinn Féin nem o Partido Nacional Escocês (SNP) que fizeram revoluções. Foi o “Brexit”, de Boris Johnson, que pôs a História em movimento. Para onde vamos? Não sabemos. Falta o segundo tempo. Boris ganhou o referendo contra a Europa. Quererá ficar na História como o primeiro-ministro que perdeu o Reino Unido?

Todos os olhos estão postos no Sinn Féin, o antigo braço armado do IRA. Ganhou as legislativas irlandesas de domingo com a estratégia errada. Temendo uma humilhação eleitoral, na sequência do seu fiasco nas europeias, apresentou apenas 42 candidatos (para 160 lugares). Procura distanciar-se da era da violência e escolheu uma liderança mais jovem; chefiada por Mary Lou McDonald.

Fez uma campanha longe dos temas nacionalistas, centrada nos problemas da habitação, da saúde ou das pensões de reforma. Não viu o vento mudar, contra o “duopólio do poder” do Fianna Fáil e do Fine Gael, que durava desde a fundação da República. Mesmo assim, venceu. Explica o politólogo Jonathan Evershed, da Universidade de Cork: “Para os eleitores, o passado do Sinn Féin é muito menos importante do que as promessas sobre o futuro. Esta eleição representa uma tendência de longo prazo na política irlandesa.” Por outro lado, a restauração da partilha de poder em Belfast (Irlanda do Norte] terá ajudado à mudança de imagem do Sinn Féin.” É uma importante mudança simbólica, uma viragem de página na História.

O Sinn Féin Ganhou as legislativas irlandesas de domingo com a estratégia errada. Temendo uma humilhação eleitoral, na sequência do seu fiasco nas europeias, apresentou apenas 42 candidatos (para 160 lugares)
Ponto fulcral: já não podemos da “questão irlandesa” e da “questão escocesa” sem falar também da “questão inglesa”. O grande marco é o ano de 2016, em que os britânicos votaram tangencialmente a separação da União Europeia. Escoceses e norte-irlandeses (estes por estreita margem) votaram contra o “Brexit”. Esta fractura foi então assinalada mas depressa obscurecida pelo agressivo debate da “questão europeia”.

Nacionalismos cruzados
As consequências manifestaram-se, em todo o seu esplendor, nas legislativas britânicas de 12 de Dezembro. Na Escócia, o SNP ganhava 48 dos 59 mandatos. No Parlamento de Londres, pela primeira vez, os republicanos norte-irlandeses têm mais um deputado do que os unionistas. Na Inglaterra, os conservadores de Boris arrasaram trabalhistas e liberais: os ingleses plebiscitaram o “Brexit”.

Resumiu a Reuters: “O resultado eleitoral foi celebrado como uma vitória dos nacionalismos, do inglês, do escocês e do irlandês – e pode selar o fim do Reino Unido.”

Nessa noite, o mundo pareceu virado do avesso. Disse à BBC Mike Nesbitt, líder do Partido Unionista do Ulster, entre 2012 e 2017, radical adepto da união à Grã-Bretanha: “A grande ironia de tudo isto é que, durante décadas, os unionistas olhavam por cima do ombro e decidiram que os nacionalistas irlandeses eram a grande ameaça. De facto, [a ameaça] é o nacionalismo inglês.” Os unionistas queixam-se do “egoísmo” dos ingleses e as negociações com a UE convenceram-nos de que os seus interesses pouco pesam em Londres.

Já não podemos da “questão irlandesa” e da “questão escocesa” sem falar também da “questão inglesa”. O grande marco é o ano de 2016, em que os britânicos votaram tangencialmente a separação da União Europeia

Lamentou a escocesa Jo Swinson, líder (demissionária) do Partido Liberal-Democrata: “Muitos vão celebrar a vaga de nacionalismo que está a varrer os dois lados da fronteira.” Nicola Sturgeon, líder do SNP e chefe do governo escocês, foi categórica: “Boris Johnson pode ter mandato para retirar a Inglaterra da União Europeia. Mas não tem, categoricamente, um mandato para retirar a Escócia da EU. Cabe à Escócia escolheu o seu futuro.”

A coligação que sustentou o “Brexit” juntava velhos eurocépticos, liberais e nacionalistas ingleses, caso do UKIP, que era então o partido de Nigel Farage. O que interessa é que souberam apresentar o projecto como uma “libertação nacional”, um levantamento “para se libertar a nação do pesado jogo da União Europeia”, na fórmula do radical Jacob Rees-Mogg. Acontece que ou outros britânicos não pensavam da mesma forma nem exprimiam os mesmos interesses. O patriotismo britânico cedia passo ao nacionalismo inglês.

“Há aqui uma grande ironia”, escreveu o irlandês Finton O’Toole, colunista do Irish Times. “A Grã-Bretanha não é nem nunca foi um Estado-nação. Na maior parte da sua história enquanto Estado foi o coração, não de uma entidade nacional, mas de um vasto império multinacional e poliglota. E o próprio Reino Unido é a amálgama de quatro nações, Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte. Não existe um Reino Unido-nação anterior à UE para regressar a si mesmo. Não há um ‘povo’ unido a quem o poder seria devolvido.” A nação inglesa renascia através de um “Brexit” a que se opunham as outras três nações britânicas. Apela a Economist a “um retorno do nacionalismo inglês ao patriotismo britânico.”

A mudança virá do Norte
Os factores de mudança mais importantes podem vir da Irlanda do Norte. O primeiro é o demográfico. Pela primeira vez desde a “partilha” de 1921, os católicos são a primeira comunidade religiosa. Num país em que a identidade política era “sectária” é uma mudança de grande alcance. A religião deixa de ser fundamento da política. Os unionistas estão a perder a hegemonia eleitoral. Um segundo factor é o sistema de “partilha do poder” em Belfast, com governos de coligação de unionistas e republicanos. Contribuiu para a normalização das relações entre as duas comunidades.

Por fim, há uma lenta mudança de mentalidades, que o “Brexit” vai acelerar. Os cidadãos “protestantes” do Norte evocam uma tripla identidade: Ulster, Grã-Bretanha e Europa. Acabam de perder a Europa. Uma sondagem recente, realizada por uma instituição conservadora, indicava que uma curta maioria dos irlandeses do Norte votariam em referendo a favor da reunificação: 51% contra 49.

 “Nenhum partido irlandês ou britânico, nem sequer o Sinn Féin, está seriamente interessado numa agenda de reunificação”, escreve Mary C. Murphy, também da Universidade de Cork. “Mas a questão começa provoca alguma mobilização na sociedade civil.”

Os Acordos da Sexta-feira Santa de 1998 abrem uma via para a reunificação: um referendo constitucional votado positivamente nas duas Irlandas. Ninguém se quer precipitar num processo muito complexo e arriscado. Nenhum referendo poderá ser legitimado por uma margem tangencial. Serão necessárias longas conversações. Mas o Norte começa a descobrir a sua incompatibilidade com a Inglaterra. Por isso, conclui Mary Murphy, “o ‘Brexit’ será o detonador de inesperadas conversações.”

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