OPINIÃO
Aeroporto do
Montijo – As aves não são estúpidas e os portugueses também não!
Se todos
concordamos que ciência sem dados comprovados não é ciência, porque é que
discordamos que análises de impacte com falta de dados são válidas?
20 de Fevereiro
de 2020, 5:25
São muitas as
opiniões sobre a proposta de localização do novo aeroporto de Lisboa, na
península do Montijo. Opina-se sobre critérios de segurança, questões de saúde
humana, transportes e acessibilidades e muitos outros aspectos. E se opiniões
todos podemos ter pelo menos uma, factos são factos! As recentes declarações do
Exmo. Sr. secretário de Estado adjunto e das Comunicações revelam um
desconhecimento profundo sobre o estado da arte da ecologia da avifauna estuarina
no estuário do Tejo.
Indicar que se
fez uso dos “melhores dados da ciência e da técnica”, quando muito infelizmente
tal não é o caso, tendo sido isso mesmo indicado à Agência Portuguesa do
Ambiente (APA), é o expoente máximo do absurdo no processo do Aeroporto do
Montijo. Estou totalmente de acordo que “ciência sem dados comprovados não é
ciência”. Por esse motivo indico aqui estudos científicos publicados em formato
open access, ou seja, de acesso livre a todos os interessados, que comprovam
que as aves limícolas que frequentam o estuário do Tejo são extremamente fiéis
aos locais que usam diariamente, tanto para alimentação como para se refugiarem
(no período da maré alta).
https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1002/ece3.503
https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0033811
https://peerj.com/articles/2517/
Este postulado não
é portanto arriscado, é na verdade cientificamente comprovado. Algo que, tanto
quanto sei, o seu contrário não o é: “de que (…) vão encontrar outras rotas
migratórias, outras paragens estalajadeiras, como no Mouchão.” Caso o seja,
fica aqui o pedido público sobre essa informação e da entidade da Administração
Pública que a detém, mas que deverá já ter sido publicada em revistas de
especialidade, após revisão por pares, como foram os dados que indicam
taxativamente que as aves limícolas no estuário do Tejo demonstram elevada
fidelidade aos locais que usam.
Quem detém os
mais recentes dados científicos no que diz respeito à avifauna estuarina do
Tejo, sua ecologia e uso de habitats, não é a APA, que delegou no Instituto da
Conservação da Natureza e Florestas o tópico dos impactes do aeroporto do
Montijo na avifauna, e aí se escuda. Contudo, e talvez por uma lamentável falta
de recursos logísticos e humanos, também não é o ICNF que detém a informação
mais avançada nesta matéria. Os dados e os conhecimentos técnicos e científicos
que os investigadores portugueses que se dedicam ao estudo desta temática
possuem são verdadeiramente aqueles que melhor permitem estimar e avaliar estes
impactes. Infelizmente, muitos destes foram ignorados neste processo, mesmo após
terem sido apresentados no decorrer do processo de consulta pública promovido
pela APA. Não foi portanto usado o mais avançado conhecimento científico e
técnico disponível para avaliação dos impactes sobre a avifauna, como se
insiste em apregoar.
Um exemplo?
A dinâmica das
aves limícolas que usam o estuário do Tejo como local de alimentação
(nomeadamente as zonas entre-marés, ou seja, os sedimentos expostos no período
da maré baixa) e de refúgio (as zonas acima do nível da maré alta, nomeadamente
salinas ou sapais) segue o ritmo das marés. As várias espécies deste grupo de
aves deslocam-se entre estes habitats, procurando alimento adequado idealmente
num local próximo de um determinado refúgio, para que muito provavelmente a
deslocação entre os dois possa ser o mais energeticamente rentável. No estuário
do Tejo, a distância percorrida entre estes dois habitats foi, ate à data,
apenas estimada e publicada para uma espécie, o pilrito-de-peito-preto
(Calidris alpina). Seria assim importante estabelecer estas distâncias para
pelo menos algumas outras espécies que se sabe têm uma dieta distinta deste
pilrito, para se poder avaliar de forma rigorosa as áreas afectadas. Mas tal
não foi feito; a total ausência de recolha de dados de campo nesta matéria para
o Estudo de Impacte Ambiental (EIA) ditou que a mesma bitola fosse aplicada a
todas as espécies. Contudo, o seguimento já desenvolvido com várias outras
espécies de aves por vários investigadores, recorrendo por exemplo a aparelhos
GPS, permite essa quantificação, aí sim usando os melhores dados da ciência e
da técnica.
O EIA é muito
claro no que respeita à avifauna (Efeitos do Projeto do Aeroporto do Montijo
sobre a Avifauna Estuarina e ZPE do Estuário do Tejo, Anexo 6.3), ao indicar
diversas vezes ao longo do texto que há muita informação em falta. E sendo que
“Não há aeroporto sem impactos” (obviamente!), não deveria o Governo estar
preocupado em fazer essa avaliação realmente de forma rigorosa?
Um outro exemplo?
No EIA
considera-se apenas um estudo sobre o efeito do ruído na perturbação das aves e
indica-se de forma errada que, para um volume de 55 decibel (db), não haverá
alteração do comportamento das aves consideradas. Na realidade, o estudo
original, onde se provoca um impulse noise durante apenas três segundos emitido
por uma buzina de ar comprimido, demonstra que para esse volume de ruído (que
no caso do Aeroporto do Montijo será certamente provocado pelas aeronaves que
irão sobrevoar o estuário), pelo menos 5% das aves alteram o seu comportamento.
Este lapso poderia ter sido rectificado na sequência do processo de consulta
pública, onde foi identificado por vários investigadores, mas tal não
aconteceu. Em alternativa, considerou-se apenas a área impactada com
perturbação dita “forte” (≥ 65 db) e ignorou-se a restante área onde
efectivamente ocorre perturbação destas aves (os tais ≥ 55 db). O argumento
declarado pelo Exmo. Sr. presidente do ICNF para tal decisão é de que é a
partir de este volume de ruído (≥ 65 db) que pelo menos 25% das aves serão
induzidas a comportamentos de resposta de voo.
Ora, num bando
com 60 mil aves, como aquele composto unicamente por maçaricos-de-bico-direito
actualmente presente no interior da Zona de Protecção Especial do estuário do
Tejo, apenas quando 15 mil aves forem forçadas a levantar voo é que se
considera ter havido impacte do novo aeroporto. Como diz um ditado português
adaptado, “Quando levantam 15 mil, levantam logo 30 ou 60 mil!”. Não admira,
portanto, que a petição realizada pelo parceiro Birdlife na Holanda contra o
aeroporto do Montijo detenha já mais de 26 mil assinaturas. Afinal, o
maçarico-de-bico-direito é a sua ave nacional!
O referido lapso
resulta, por exemplo, numa falha muito grave na avaliação do verdadeiro impacte
do ruído nas aves que usam as zonas entre-marés para encontrar o seu alimento. Uma
estimativa que rectifica o mesmo prevê que cerca de metade das zonas de
alimentação do estuário vão ser afectadas (49%), e não 31% como prevê o EIA.
Não deveria o ICNF, na qualidade de autoridade nacional da conservação da
natureza, defender este ponto e exigir medidas de compensação adequadas ao
mesmo? Para que serve a “Estratégia Nacional de Conservação da Natureza e
Biodiversidade para 2030”, onde o Conselho de Ministros em 2018 sublinha a
necessidade de “Melhorar o estado de conservação do património natural”?
A consequência de
não serem usados os melhores dados da ciência e da técnica está à vista. O EIA
(considerando perturbações apenas acima dos 65 db) refere que as áreas totais
afectadas são: 246 ha (refúgios) e 2357 ha (alimentação). A Declaração de
Impacto Ambiental (DIA), por seu turno, indica que a área de perturbação forte
corresponde a “cerca de 1600 ha (…) do biótopo de alimentação da ZPE”. Sendo a
medida de compensação correspondente a “Aquisição de salinas numa área total no
mínimo igual à área sujeita a perturbação forte, ou seja, 1467 ha;”. Será que
os “cerca de 1600 ha” são os “1467 ha”? Isto não é claro nem rigoroso. Mas,
mais importante, servindo as salinas essencialmente como áreas de refúgio, uma
coisa não substitui a outra. De que serve estas aves terem locais para se
refugiar durante a maré alta se não tiverem áreas para se alimentar durante a
maré baixa, onde se indicam 1467 ha de perturbação forte? Estas áreas são
indissociáveis e ambas indispensáveis para as espécies que serão afectadas,
como os melhores dados da ciência e da técnica demonstram.
No final de
contas, a questão não é se as aves são estúpidas ou não. O facto é que a
ciência indica inequivocamente que um número cada vez maior de espécies se
encontra em declínio. Estou seguro que cabe à nossa geração a responsabilidade
de não contribuir ainda mais para riscar do mapa a biodiversidade que resta e
nos foi legada pelas gerações anteriores. Temos que ter a ousadia e a coragem
para dizer basta! Protejam-se as áreas que foram designadas para a conservação
da natureza, esse sim é o nosso maior dever.
Nota do autor:
Constato com tristeza o lamentável nível do debate desinformado sobre o
proposto aeroporto do Montijo. Pronuncio-me aqui apenas no que diz respeito aos
impactes previstos sobre a avifauna estuarina, reconhecendo a minha vasta
ignorância nas restantes temática.
Investigador no
CESAM – Centro de Estudos do Ambiente e do Mar e no Departamento de Biologia,
Universidade de Aveiro
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