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ANÁLISE
Os protestantes
que inventaram o nacionalismo irlandês
Os irlandeses não
querem repetir os erros do Brexit britânico. A reunificação mexe com fantasmas
do passado. Os políticos têm de aprender, com o Brexit e com a História.
Jorge Almeida
Fernandes
22 de Fevereiro
de 2020, 6:55
Começo por uma
citação: “Unir todo o povo da Irlanda, abolir a memória das dissensões do
passado e substituir pelo nome comum de Irlandeses as denominações de
Protestante, Católico e Dissidente – estes eram os meus desígnios.” Parece um
programa adequado quando se volta a falar na reunificação da Irlanda e no fim
do sectarismo político-religioso. Mas estas palavras vêm de longe, muito longe.
O seu autor é
Theobald Wolfe Tone (1763-1798), fundador dos Irlandeses Unidos, movimento
revolucionário pela independência da Irlanda, aliado da França revolucionária e
líder da rebelião anti-inglesa de 1798. Falhada a rebelião, foi enforcado pelos
ingleses.
A origem do
nacionalismo irlandês, que mais tarde se confundirá com catolicismo, deve-se à
elite protestante de Dublin, influenciada pelo Iluminismo e marcada pelas
Revoluções Americana e Francesa: Wolfe Tone, Robert Emmet, John Mitchell…
Os Irlandeses Unidos
conseguiram a adesão de largas massas católicas, base do seu exército, mas a
Igreja apoiou os ingleses. O protestante Wolfe Tone foi sacralizado como “ícone
tribal católico” e colocado à cabeça “do panteão nacionalista católico”,
escreveu o historiador e diplomata irlandês Conor Cruise O’Brien.
Dois séculos
depois do “martírio”, Wolfe Tone volta a ser actual. Há 20 anos, a Constituição
da República irlandesa foi revista e passou a definir assim o novo desígnio
nacional: “Unir todos os povos que partilham o território da ilha da Irlanda em
todas as suas diversidades, identidades e tradições.”
Um referendo
crítico
Retomo o fio da
crónica da semana passada que tinha por título: Esqueça tudo o que sabe sobre a
Irlanda. Queria dizer: o “Brexit” mudou todos os dados da equação irlandesa.
Mas o título inicial era mais completo: “Esqueça tudo o que sabe sobre a
Irlanda mas lembre-se sempre da sua História.”
O imprevisível
cenário de reunificação da ilha combina a questão da Irlanda do Norte com um
secular conflito que atravessou toda a Irlanda, o que força os políticos a
encarar os riscos da História apesar de uma grande parte dos irlandeses
desejar, legitimamente, esquecer o passado. A reunificação irlandesa não se
limita a um cálculo de vantagens económicas e de equilíbrios territoriais: é
sobretudo uma mudança na cabeça das pessoas. Envolve fantasmas históricos,
mitos, identidades e, inclusive, o “sangue dos mártires”. Há sempre o temor de
que a História se repita.
Anota o
constitucionalista Ronan McCrea: “Dada a história do conflito, muitos temas vão
pressionar a aceleração do ‘Referendo da Fronteira’. Um voto sobre a unidade
irlandesa intensificará emoções e despertará medos. Para que estes medos sejam
enfrentados e evitada a instabilidade, será necessário encarar sistemas e
procedimentos para tranquilizar os eleitores e evitar que o processo fique
refém de grupos não representativos. Como o processo do ‘Brexit’ mostrou, o
Reino Unido não dispõe destes procedimentos.” O próprio debate sobre as
modalidades do “Brexit” começou depois do referendo, o que conduziu a uma
discussão sem fim e a uma profunda divisão do país.
Por isso se
multiplicam as recomendações de prudência. Negociar o tempo suficiente. Se os
unionistas não aceitarem a abertura de negociações de reunificação antes de um
referendo, façam-se um duplo referendo: uma para permitir as negociações, outro
para, no fim do processo, aprovar o estatuto final. Tudo menos decisões
tangenciais tipo “Brexit” na base da alternativa binária – sim ou não. O unionista
Seamus Mallon previne contra uma decisão na base de “50% mais um”. Alguns
sugerem uma supermaioria de 60%. “A minha preocupação é que um voto prematuro e
uma decisão tangencial podem levar a mais divisões, instabilidade e,
provavelmente, violência.”
“A batalha pela união já começou”, disse em
2018 Peter Robinson, antigo chefe do governo de Belfast. “Não estou à espera de
que queimem a minha casa, mas estou inseguro quanto ao que poderá acontecer.”
Os unionistas devem preparar-se “para aceitar o resultado do referendo.”
Muitas questões
se levantarão. Que bandeira nacional? Poderão os norte-irlandeses manter a
cidadania britânica? Que tipo de autonomia terão as províncias? Manterá Belfast
o seu próprio parlamento? Há uma imensa desigualdade económica entre as duas
Irlandas. Como vai ser gerida? “Penso que as pessoas do Sul vão votar na
unidade porque é uma questão emocional. Mas ainda não houve nenhum debate sobre
os custos”, diz Peter Shirlow, da Universidade de Liverpool.
Enquanto os
factos se parecem encadear no sentido na reunificação, não faltam a
advertências sobre os riscos. Quanto aos prazos, Bertie Ahern,
ex-primeiro-ministro de Dublin, aconselha um calendário lento. Pensa a
reunificação até ao fim desta década. “As instituições necessitam de tempo para
ser instaladas, para ultrapassar “divisões político-religiosas” e montar em
conjunto “uma polícia, um exército e um sistema de justiça criminal”.
Para lá da
movimentação de “placas tectónicas” provocada pelo “Brexit” e pela mudança
demográfica que condena a hegemonia política dos unionistas, há grandes
mudanças no interior da sociedade irlandesa. É hoje uma sociedade laica, em que
a Igreja Católica perdeu a maior parte da antiga influência.
Os conflitos
insolúveis
Há dezenas de
conflitos que os observadores qualificam de “insolúveis”. Não se trata
propriamente de conflitos sem solução mas de conflitos em que os actores
recusam a negociação e o compromisso por o considerarem incompatível com os
seus interesses vitais. Frequentemente, envolvem valores e questões ditas sagradas.
No último quartel
do século XX havia três exemplos notórios: a África do Sul, a Palestina e a
Irlanda do Norte. O conflito sul-africano pôde ser resolvido depois de uma
mudança geopolítica na África Austral - a começar pela descolonização portuguesa
- e graças a uma prodigiosa coragem política dos dois grandes actores, o
Congresso Nacional Africano, de Nelson Mandela, e o Partido Nacional, de
Frederik de Klerk.
Já os Acordos de
Oslo, de 1993, entre israelitas e palestinianos, que tanta expectativa geraram,
redundaram num terrível e sangrento fiasco. Os negociadores optaram por deixar
de lado as questões “espinhosas”, como Jerusalém e Gaza. E, erro maior, os
radicais dos dois campos não se comprometeram no acordo e rapidamente o
sabotaram.
Na Irlanda do
Norte, ao fim de longas negociações públicas e secretas, os Acordos da
Sexta-feira Santa de 1998 conseguiram pôr termo ao terrorismo e estabelecer um
sistema de partilha do poder em Belfast, remetendo a reunificação para um
futuro indeterminado. Aguarda-se a resposta ao desafio de Wolfe Tone. Não será
fácil.
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