sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

Os protestantes que inventaram o nacionalismo irlandês

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ANÁLISE
Os protestantes que inventaram o nacionalismo irlandês

Os irlandeses não querem repetir os erros do Brexit britânico. A reunificação mexe com fantasmas do passado. Os políticos têm de aprender, com o Brexit e com a História.

Jorge Almeida Fernandes
22 de Fevereiro de 2020, 6:55

Começo por uma citação: “Unir todo o povo da Irlanda, abolir a memória das dissensões do passado e substituir pelo nome comum de Irlandeses as denominações de Protestante, Católico e Dissidente – estes eram os meus desígnios.” Parece um programa adequado quando se volta a falar na reunificação da Irlanda e no fim do sectarismo político-religioso. Mas estas palavras vêm de longe, muito longe.

O seu autor é Theobald Wolfe Tone (1763-1798), fundador dos Irlandeses Unidos, movimento revolucionário pela independência da Irlanda, aliado da França revolucionária e líder da rebelião anti-inglesa de 1798. Falhada a rebelião, foi enforcado pelos ingleses.

A origem do nacionalismo irlandês, que mais tarde se confundirá com catolicismo, deve-se à elite protestante de Dublin, influenciada pelo Iluminismo e marcada pelas Revoluções Americana e Francesa: Wolfe Tone, Robert Emmet, John Mitchell…

Os Irlandeses Unidos conseguiram a adesão de largas massas católicas, base do seu exército, mas a Igreja apoiou os ingleses. O protestante Wolfe Tone foi sacralizado como “ícone tribal católico” e colocado à cabeça “do panteão nacionalista católico”, escreveu o historiador e diplomata irlandês Conor Cruise O’Brien.

Dois séculos depois do “martírio”, Wolfe Tone volta a ser actual. Há 20 anos, a Constituição da República irlandesa foi revista e passou a definir assim o novo desígnio nacional: “Unir todos os povos que partilham o território da ilha da Irlanda em todas as suas diversidades, identidades e tradições.”

Um referendo crítico
Retomo o fio da crónica da semana passada que tinha por título: Esqueça tudo o que sabe sobre a Irlanda. Queria dizer: o “Brexit” mudou todos os dados da equação irlandesa. Mas o título inicial era mais completo: “Esqueça tudo o que sabe sobre a Irlanda mas lembre-se sempre da sua História.”

O imprevisível cenário de reunificação da ilha combina a questão da Irlanda do Norte com um secular conflito que atravessou toda a Irlanda, o que força os políticos a encarar os riscos da História apesar de uma grande parte dos irlandeses desejar, legitimamente, esquecer o passado. A reunificação irlandesa não se limita a um cálculo de vantagens económicas e de equilíbrios territoriais: é sobretudo uma mudança na cabeça das pessoas. Envolve fantasmas históricos, mitos, identidades e, inclusive, o “sangue dos mártires”. Há sempre o temor de que a História se repita.

Anota o constitucionalista Ronan McCrea: “Dada a história do conflito, muitos temas vão pressionar a aceleração do ‘Referendo da Fronteira’. Um voto sobre a unidade irlandesa intensificará emoções e despertará medos. Para que estes medos sejam enfrentados e evitada a instabilidade, será necessário encarar sistemas e procedimentos para tranquilizar os eleitores e evitar que o processo fique refém de grupos não representativos. Como o processo do ‘Brexit’ mostrou, o Reino Unido não dispõe destes procedimentos.” O próprio debate sobre as modalidades do “Brexit” começou depois do referendo, o que conduziu a uma discussão sem fim e a uma profunda divisão do país.

Por isso se multiplicam as recomendações de prudência. Negociar o tempo suficiente. Se os unionistas não aceitarem a abertura de negociações de reunificação antes de um referendo, façam-se um duplo referendo: uma para permitir as negociações, outro para, no fim do processo, aprovar o estatuto final. Tudo menos decisões tangenciais tipo “Brexit” na base da alternativa binária – sim ou não. O unionista Seamus Mallon previne contra uma decisão na base de “50% mais um”. Alguns sugerem uma supermaioria de 60%. “A minha preocupação é que um voto prematuro e uma decisão tangencial podem levar a mais divisões, instabilidade e, provavelmente, violência.”

 “A batalha pela união já começou”, disse em 2018 Peter Robinson, antigo chefe do governo de Belfast. “Não estou à espera de que queimem a minha casa, mas estou inseguro quanto ao que poderá acontecer.” Os unionistas devem preparar-se “para aceitar o resultado do referendo.”

Muitas questões se levantarão. Que bandeira nacional? Poderão os norte-irlandeses manter a cidadania britânica? Que tipo de autonomia terão as províncias? Manterá Belfast o seu próprio parlamento? Há uma imensa desigualdade económica entre as duas Irlandas. Como vai ser gerida? “Penso que as pessoas do Sul vão votar na unidade porque é uma questão emocional. Mas ainda não houve nenhum debate sobre os custos”, diz Peter Shirlow, da Universidade de Liverpool.

Enquanto os factos se parecem encadear no sentido na reunificação, não faltam a advertências sobre os riscos. Quanto aos prazos, Bertie Ahern, ex-primeiro-ministro de Dublin, aconselha um calendário lento. Pensa a reunificação até ao fim desta década. “As instituições necessitam de tempo para ser instaladas, para ultrapassar “divisões político-religiosas” e montar em conjunto “uma polícia, um exército e um sistema de justiça criminal”.

Para lá da movimentação de “placas tectónicas” provocada pelo “Brexit” e pela mudança demográfica que condena a hegemonia política dos unionistas, há grandes mudanças no interior da sociedade irlandesa. É hoje uma sociedade laica, em que a Igreja Católica perdeu a maior parte da antiga influência.

Os conflitos insolúveis
Há dezenas de conflitos que os observadores qualificam de “insolúveis”. Não se trata propriamente de conflitos sem solução mas de conflitos em que os actores recusam a negociação e o compromisso por o considerarem incompatível com os seus interesses vitais. Frequentemente, envolvem valores e questões ditas sagradas.

No último quartel do século XX havia três exemplos notórios: a África do Sul, a Palestina e a Irlanda do Norte. O conflito sul-africano pôde ser resolvido depois de uma mudança geopolítica na África Austral - a começar pela descolonização portuguesa - e graças a uma prodigiosa coragem política dos dois grandes actores, o Congresso Nacional Africano, de Nelson Mandela, e o Partido Nacional, de Frederik de Klerk.

Já os Acordos de Oslo, de 1993, entre israelitas e palestinianos, que tanta expectativa geraram, redundaram num terrível e sangrento fiasco. Os negociadores optaram por deixar de lado as questões “espinhosas”, como Jerusalém e Gaza. E, erro maior, os radicais dos dois campos não se comprometeram no acordo e rapidamente o sabotaram.

Na Irlanda do Norte, ao fim de longas negociações públicas e secretas, os Acordos da Sexta-feira Santa de 1998 conseguiram pôr termo ao terrorismo e estabelecer um sistema de partilha do poder em Belfast, remetendo a reunificação para um futuro indeterminado. Aguarda-se a resposta ao desafio de Wolfe Tone. Não será fácil.

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