Ministra da
Cultura, Graça Fonseca
Directora do
Museu dos Coches: despacho da secretária de Estado é “ilegal”
Silvana Bessone
apresentou reclamação sobre ordem de cedência de colecção ao futuro Hotel Vila
Galé de Alter do Chão no âmbito do Revive, após meses de oposição na DGPC.
Tutela diz que protocolo ainda não foi assinado e que condições museológicas
serão cumpridas. É “uma situação absolutamente insólita”, diz presidente do
ICOM Europa.
Joana Amaral
Cardoso 21 de Fevereiro de 2020, 21:31
A directora do
Museu Nacional dos Coches apresentou uma denúncia à Direcção-Geral do
Património Cultural (DGPC) em que alega a ilegalidade da cedência de 42 peças
da colecção Rainer Daehnhardt ao grupo hoteleiro Vila Galé, ordenada pela
secretária de Estado Adjunta e do Património Cultural no âmbito do programa
Revive — a primeira de mais que a tutela planeia para hotéis nascidos do
programa que rentabiliza monumentos. O documento, a que o PÚBLICO teve acesso,
é o culminar de pareceres contrários à cedência da colecção de arte e equestre
e nele a directora, Silvana Bessone, acusa o despacho da governante Ângela
Ferreira de “conter ilegalidades” e de ser, no fundo, “uma ordem que considera
ilegal”.
Em causa está o
despacho de 13 de Janeiro de 2020, assinado por Ângela Ferreira, que determina
que “deve a DGPC diligenciar no sentido de serem cedidas à Vila Galé
Internacional S.A. as obras de arte pertencentes à Colecção Rainer Daehnhardt
por esta requeridas” (excepto 13 peças em que a Companhia das Lezírias mostrou
interesse), num total de 42 que devem migrar para Alter do Chão. A colecção,
adquirida pelo Estado no âmbito do espólio da Fundação Alter Real em 2012, está
sob alçada da DGPC desde 2017 e depositada no Museu Nacional dos Coches (MNC)
desde 2018. No auto de entrega dos bens da fundação ao MNC chega a referir-se
que têm um valor global de cerca de 997 mil euros.
A rara
“reclamação de ordem ilegal” da directora do museu foi enviada dia 17 à
directora-geral do Património cessante, Paula Silva. Nela se citam documentos
em que a directora-geral do Património e a directora do Departamento de Museus,
Conservação e Credenciação da DGPC, Teresa Mourão, se manifestaram contra a cedência
das obras ao longo do último ano.
O arqueólogo e
presidente da secção europeia do Conselho Internacional de Museus (ICOM, na
sigla inglesa), Luís Raposo, aplaude a iniciativa da directora do MNC, atitude
que lhe parece inédita na defesa de colecções nacionais de património. “É uma
reacção plenamente justificada” ao despacho da secretária de Estado,
acrescenta, “quer por razões de enquadramento legal, quer por razões técnicas e
de ética profissional”, diz ao PÚBLICO. Uma reacção a “uma situação absolutamente
insólita”, para Raposo, que espera que não passe a constituir política de fundo
na gestão do património de “um Governo que se diz de esquerda, e deveria
defender valores totalmente contrários a estes”.
De Alexandre
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arte contemporânea
"Ilegal” e
“inválido"
Em mais de 100
páginas de uma reclamação formal e de 12 anexos que documentam o processo,
Silvana Bessone defende o que se pode resumir em três grandes argumentos, para
os quais apresenta sustentação jurídica, sobre a ilegalidade da ordem de
cedência das obras ao Vila Galé de Alter do Chão: viola as competências da
direcção do museu; contraria o conceito de cedência temporária de bens
culturais incluídos em museus; e, ainda, terá um problema de base – a ministra
Graça Fonseca não terá delegado formalmente as suas competências sobre o Museu
dos Coches, guardião da colecção em causa, na sua secretária de Estado.
Silvana Bessone
apoia-se na Lei de Autonomia dos Museus, no Código de Procedimento
Administrativo e na Lei Quadro dos Museus Portugueses para demonstrar que o
despacho que ordena que a DGPC ceda as obras é um acto “ilegal”.
A reclamação da
directora do MNC argumenta que o despacho da secretária de Estado Adjunta é
“uma ordem concreta, que se traduz num acto administrativo” e que isso “afasta
a competência da própria directora” do museu que é a guardiã da colecção.
Assim, lê-se no mesmo, “por violação das regras de competência própria”
patentes no regime jurídico de autonomia de gestão dos museus, monumentos e
palácios e de acordo com o Código de Procedimento Administrativo, “o acto de
sua excelência a secretária de Estado Adjunta do Património Cultural é ilegal”.
Por outro lado,
também “contraria”, lê-se ainda “o conceito de cedência temporária de bens
culturais incorporados em museu e consagrado na Lei Quadro dos Museus
Portugueses” por se tratar de uma cedência a uma unidade hoteleira e por
períodos renováveis (a concessão do imóvel no âmbito do Revive é por 50 anos),
o que “não obedece ao conceito de exposição temporária ou itinerante” da lei,
diz o documento; à luz do mesmo código, o despacho padecerá “de invalidade”.
Noutro ponto, Silvana Bessone defende ainda que o despacho sofre de
“incompetência” — citando o Regime Jurídico de Autonomia de Gestão dos Museus,
Monumentos e Palácios, demonstra que “a ministra da Cultura não delegou as suas
competências sobre a direcção das unidades orgânicas, em que se inclui o MNC,
em sua excelência a secretária de Estado Adjunta e do Património Cultural”, o
que tornará o documento de Ângela Ferreira “inválido”.
No requerimento,
Bessone repete ainda um pedido: que seja ouvida a Secção de Museus,
Conservação, Restauro e Património Imaterial do Conselho Nacional da Cultura. E
o ICOM Portugal requereu já formalmente uma reunião da secção para debater este
despacho, revela Luís Raposo ao PÚBLICO.
O “teste” de
Alter
O plano de
cedência a 25 anos de “uma colecção muito significativa, com valor intrínseco
muito grande”, como a descreve Luís Raposo, com peças em prata e outras de
grande valor arqueológico, é o primeiro de uma intenção de política pública,
anunciada pela secretária de Estado à Agência Lusa na quarta-feira: haverá mais
empréstimos do género no âmbito do Revive. “Será permitido aos concessionários
poderem fazer exposições temporárias destas obras no seu empreendimento
turístico, desde que asseguradas todas as condições técnicas necessárias”. O
PÚBLICO questionou esta sexta-feira a secretária de Estado sobre se o teor
desta reclamação pode vir a alterar a decisão em causa e o plano de expandir o
modelo, mas não obteve resposta a essa pergunta.
A assessora de
imprensa do Ministério da Cultura frisa sim ao PÚBLICO que “a cedência desta
colecção será temporária” e que “não foi, até à data, assinado qualquer
protocolo de cedência”, o que dependerá da verificação e aceitação da
“existência das condições museológicas, técnicas e de segurança identificadas
pela DGPC”. Diz a mesma fonte oficial que não “flexibilizaram as condições
técnicas ou de segurança exigidas para expor uma colecção do Estado” e que já
houve visitas da DGPC ao local, e que o hotel (que obteve a concessão da antiga
Coudelaria de Alter, onde, diz a tutela, “esta colecção sempre esteve exposta”,
em 2018 no âmbito do Revive) se comprometeu a assegurar as condições exigidas.
Luís Raposo
aplaude esta “prudência”, mas lembra que essa posição deveria ter sido clara
desde o início, tanto mais quando se sabe que os pareceres dos departamentos da
DGPC foram negativos. Ao mesmo tempo, opina: “25 anos não é uma exposição
temporária; na prática é uma entrega a título gratuito”. Preocupa-o a intenção
de se vir a fazer mais cedências de obras do Estado. “Esta declaração é uma
espécie de ‘salto em frente’, que significa um mergulho num poço sem fundo, e
que este não será um caso único, uma excepção”, nota. Ainda assim, Luís Raposo
acredita que a situação “irá ser corrigida, neste caso” de Alter, vendo nele
“um teste”.
Em quarto de
hotel?
Quinta-feira, a
RTP noticiou a existência desta mesma reclamação, dando conta das críticas do
próprio historiador Rainer Daehnhardt, responsável pelo coligir da colecção.
“Não estou nada a favor nem de empréstimos a hotéis nem a entidades que não
estão devidamente qualificadas em defender o património cultural português.”
Nos documentos há
menções ao temor de que as peças, que vão de armas a pinturas, passando por
estribos ou armaduras, se destinem a pura decoração. O Vila Galé, em Março de
2019, diz num email apenso à reclamação de Bessone que a colecção será “para
exposição nas zonas públicas do hotel” na antiga coudelaria. Em Agosto, um
parecer de Teresa Mourão detalha que o hotel informa que “as peças figurarão no
Salão de Eventos, da Recepção e do Restaurante/Bar” do hotel. “Locais com
características totalmente contrárias à exposição com segurança de bens
culturais museológicos”, escreve a directora do DMCC, que frisa que “não deverá
ser autorizada a cedência” para “fins meramente decorativos, sendo
consequentemente negativo o parecer do DMCC”. Ao PÚBLICO, a assessora de
imprensa da tutela é agora taxativa: “O destino desta colecção não será a
decoração de quartos do hotel ou restaurantes” e “a colecção será exposta num
núcleo museológico, dotado de todas as condições técnicas e de segurança
adequadas”.
A reclamação de
ilegalidade da directora do museu que tem à sua guarda a colecção em disputa
revela ainda as contradições e tensões no processo: há o pressuposto de que,
como aliás a assessora do ministério reiterou ao PÚBLICO, as obras “nunca
chegaram a ser expostas” nos Coches; mas a lista oficial de peças integradas na
colecção do museu “demonstra que existem peças que foram integradas na
exposição permanente do MNC, quer no novo edifício, quer no Picadeiro Real” e localiza-as
mesmo em vitrinas específicas. Dos anexos constam documentos em que está
plasmado o desconforto das entidades da gestão do património com o caso, como
quando no relatório técnico da DGPC da visita ao futuro hotel em Alter do Chão,
datado de dia 12 de Fevereiro, o processo é classificado como “singular” e onde
os conservadores manifestam que estão a executar “uma ordem contrária à sua
conduta deontológica”.
Silvana Bessone
justifica, no final do requerimento, os motivos para esta tomada de posição,
uma reacção a “uma ordem que considera ilegal”: “Motivação de colaboração na
gestão do serviço público e a assunção da responsabilidade em relação aos bens
culturais que deve salvaguardar”, além “do poder de direcção legítimo que
considera essenciais no exercício das funções de directora do MNC”. O PÚBLICO
contactou a directora do MNC mas até à hora de publicação não obteve resposta.
Foi na sequência
do anúncio da substituição de Paula Silva pelo gestor ligado ao imobiliário
Bernardo Alabaça na direcção da DGPC que o PÚBLICO avançou que o despacho que
autoriza a cedência contraria um parecer técnico de que a tutela teria
conhecimento. Um dia depois, o PCP pedia a audição da ministra da Cultura no
Parlamento por causa dos planos de cedência, considerando-os um “precedente
grave” que podem configurar “apropriação de património público para fins
privados”. com Sérgio C. Andrade
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