Um filme para
causar pesadelos a Fernando Medina e aos lisboetas
Alis Ubbo é um
documentário mordaz sobre as transformações de Lisboa nesta altura de turismo
global. A estreia de Paulo Abreu no campeonato das estreias comerciais. Ótimo
para quem nunca se sentou num tuk-tuk da capital...
Rui Pedro
Tendinha
27 Fevereiro 2020
— 00:05
Continua a ser um
cineasta invisível para a maioria dos cinéfilos portugueses. Paulo Abreu é
alguém que tem apostado num cinema experimental e em curtas com espírito rock
and roll, tendo sido nas longas documentais que tem mostrado uma maior
vitalidade, em especial em obras como Phil Mendrix (sobre o falecido rocker) e
I Don't Belong Here (êxito no circuito festivaleiro), mas é agora com este novo
documentário que finalmente se estreia no circuito comercial aos 56 anos.
O filme, estreado
no Festival de Cinema Luso-Brasileiro de Santa Maria da Feira no ano passado, é
uma meditação punk sobre o fenómeno da gentrificação de Lisboa. Abreu limita-se
a observar uma cidade incapaz de suster o fenómeno da invasão do turismo de
massas. Em última instância, funciona como um manifesto livre sobre a
impotência de todos perante um flagelo que mudou o próprio comportamento dos
lisboetas.
O olhar do
cineasta espalha uma ironia e uma amargura perante o tal estado das coisas: as
ruas são dos tuk-tuks, das trotinetas e os guias, bem como as hordas de
turistas, enchem todos e mais alguns passeios. Esse mesmo olhar tem um cicerone
que é um protagonista carismático, João Patrício, historiador que ao volante do
seu tuk-tuk subverte a função do "agente" de passeio lúdico.
Patrício, qual ator ou performer, está em modo de agente provocador, fazendo
uma ponte para uma ideia de património e história de uma cidade que já não é a
mesma.
Filmado sempre
pela calada (num trabalho que terá começado em 2016), Alis Ubbo (que em fenício
significa porto seguro) põe a ridículo a febre e os procedimentos do novo
turismo enlatado. Abreu observa e deixa-nos perante o vazio de toda esta
tragédia de consumo rápido e de falta de respeito pela identidade de Lisboa.
Conforme o cineasta brasileiro Karim Aïnouz já disse, Lisboa transformou-se
numa Lisboalândia, numa feira de futilidades com propensão gourmet e o gesto
deste olhar acutilante (mas nunca interventivo) é político.
Quem vir este
filme vai sorrir com amargura e perceber que é tudo o que o município de Lisboa
não quer como publicidade. E não deixa de ser curioso que chegue ao circuito
dos cinemas (em Lisboa apenas numa sala numa zona na qual não se sente tanto a
infestação do turismo de logótipo unificado...) um pouco depois de um filme
feito já o ano passado: Lisboa Revisitada, de Eugène Green, encomenda da Casa
de Cinema Manoel de Oliveira, onde o cineasta americano radicado em França
filmava a mesma vampirização a Lisboa.
As más-línguas
podem dizer que tudo isto é "chover no molhado", mas a verdade é que
o modus operandi de Abreu traz sempre um valor de perplexidade perante uma
estupidificação global, da ignorância dos turistas à farsa de quem permite a
destruição da Lisboa antiga e dos seus valores. O turismo global tem destas
coisas: é um predador tão veloz que consegue que um filme como este possa ser
metade comédia à Tati (o realizador, na sua nota de intenções, refere também
Dziva Vertov e Jean Vigo no seu A Propos de Nice e tal não é descabido) e
metade filme de terror à Carpenter. O melhor de tudo é que nunca se cede ao
pecado do objeto panfletário. Na boleia deste mordaz condutor de tuk-tuk vamos
seguros, mesmo com tanto buraco na estrada e paragens para selfies
pindéricas... E olhemos Lisboa com calma, com olhos de cinema...
*** Bom
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