EDITORIAL
VPV: os encantos
de uma prosa amarga
Foi sempre a
nossa boa má consciência. Era lido, citado e reverenciado como nenhum outro
colunista da imprensa portuguesa
MANUEL CARVALHO
22 de Fevereiro
de 2020, 7:15
É uma boa
reflexão sobre nós próprios e sobre o país indagar sobre as causas que
conservaram um colunista tão ácido, tão mordaz, tão crítico e tão pessimista
como Vasco Pulido Valente no primeiro plano da actualidade ao longo de 40 anos
ou mais. VPV, que nos deixou esta sexta-feira, era um velho herdeiro do
conservadorismo previsível e aristocrático num tempo em que o mundo deixara de
devotar à ordem natural das coisas. Foi cínico, cáustico e pessimista num
Portugal que se deixou deslumbrar pelas obras faraónicas, o dinheiro fácil e um
falso amparo eterno de Bruxelas. Desdenhava com muita frequência a capacidade
do regime e dos “indígenas” para construir uma democracia mais robusta ou uma
sociedade mais livre e distante do paternalismo do Estado. Foi anti-cavaquista
quando Cavaco estava no auge, anti-soarista depois de ajudar a eleger Soares
para Belém e antitudo o que os portugueses elegeram com fartas ou menos fartas
maiorias. Foi sempre a nossa boa má consciência. Era lido, citado e
reverenciado como nenhum outro colunista da imprensa portuguesa.
Porquê?
Concordemos num ponto prévio: na imprensa portuguesa, ninguém escrevia nem
ninguém escreve tão bem como VPV. As suas frases curtas, incisivas e ritmadas
valiam por si próprias, como que pudessem dispensar o seu significado. Escrever
daquela forma luminosa, nas suas colunas ou nos seus ensaios historiográficos,
garantia-lhe à partida um lugar distinto. Havia depois a acrescentar à forma
uma lucidez aguda que descobria questões de fundo onde a maioria via detalhes,
uma imaginação fértil para a analogia (caso da “geringonça”), uma bagagem
cultural prodigiosa e um pessimismo cínico que com facilidade alimentava a
polémica sempre tão eficaz junto dos leitores de jornais. Parece fácil. Não é.
Nos textos de VPV tudo era altamente complexo, sofisticado e brilhante.
Vasco Pulido
Valente vai fazer-nos falta. Hoje, mais do que nunca, faz-nos falta quem nos
convoque para a leitura de detalhes que nos escapam, ideias que não apreciamos,
expressões que nos incomodam e visões do país e do mundo que estão longe das
nossas. VPV conseguia-o sem recorrer ao ângulo fácil que apela à emoção.
Conseguia-o porque tinha mundo, cultura, inteligência, talento, liberdade e
coragem para dizer o que muitos não querem ouvir sem recear consequências.
Vasco Pulido Valente tinha todos esses dons, que, temperados pelo mau feitio, o
levavam a ver a actualidade sem os adornos que o poder gosta de usar. Vamos ter
saudades das irritações que nos causou, do prazer estético que as suas prosas
nos concederam ou da verrina com que desembrulhou o país das últimas décadas
para expor os seus defeitos.
Sem comentários:
Enviar um comentário