segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

CDU antecipa congresso depois de derrota histórica em Hamburgo / Os espectros do nazismo e do comunismo atormentam a Alemanha





CDU antecipa congresso depois de derrota histórica em Hamburgo

Os democratas-cristãos sofreram o pior resultado dos últimos 70 anos na cidade-estado e aceleraram o processo de sucessão de Annegret Kramp-Karrenbauer, marcando uma conferência especial para 25 de Abril.

Ricardo Cabral Fernandes 24 de Fevereiro de 2020, 19:09

O Partido Social-Democrata (SPD) alemão venceu as eleições deste domingo na cidade-estado de Hamburgo e os democratas-cristãos da CDU sofreram o pior resultado dos últimos 70 anos, aprofundando a crise vivida no partido desde a demissão de Annegret Kramp-Karrenbauer (AKK). A escolha do sucessor foi acelerada com a convocatória de uma conferência especial para 25 de Abril e a CDU acusou o SPD de fazer uma “campanha suja” contra si.

Hamburgo é um dos últimos bastiões dos social-democratas e assim continuará a ser ao conquistarem 39% dos votos, de acordo com resultados provisórios, enquanto a CDU caiu para terceiro lugar, com 11%, superados pelos Verdes (24,2%). O Alternativa para a Alemanha, de extrema-direita, quase se viu fora do parlamento estadual ao conquistar 5,2%, pouco mais do limiar mínimo de 5% para eleger deputados.

Espera-se que o próximo governo estadual seja formado por uma coligação entre social-democratas e ecologistas, à semelhança do anterior executivo de coligação na cidade-estado alemã e com uma maior participação dos ecologistas. Os Verdes foram os grandes beneficiados nestas eleições ao duplicarem os votos das últimas eleições estaduais, em 2015, e continuam na trajectória ascendente que vem desde as eleições para o Parlamento Europeu, em Maio de 2019. Vistos como um bastião contra a extrema-direita, têm posto as alterações climáticas no centro da agenda política.

A prestação nas urnas da AfD atraía muito as atenções, depois de as sondagens publicadas na semana passada apontarem a possibilidade de o partido, que é a terceira maior força política a nível nacional, ficar de fora do parlamento estadual. Quebraria o ímpeto de crescimento e implantação nacional da AfD nos últimos anos. Porém, e apesar de ter perdido 0,8% dos votos, ainda conseguiu votos suficientes para ter deputados estaduais.

Diz a imprensa alemã que um importante factor para a descida de votos na extrema-direita em Hamburgo foi a crise na Turíngia e o atentado terrorista na semana passada em Hanau, quando um homem disparou, por motivações xenófobas, contra dois bares de shisha (cachimbo de água), matando dez pessoas. A AfD foi responsabilizada por o seu discurso de ódio contra minorias ter influenciado o terrorista.

No entanto, quem mais sofreu nestas eleições foram os democratas-cristãos, aprofundando a crise interna que o partido tem vivido nas últimas semanas. Tiveram o pior resultado dos últimos 70 anos em Hamburgo e a responsabilidade está a ser atribuída à mesma crise política na Turíngia, quando a CDU estadual se aliou à AfD para apoiar um candidato dos Liberais (FDP) como chefe do governo estadual e, assim, afastar o candidato do Die Linke.


O cordão sanitário em torno da AfD, imposto pela direcção nacional da CDU, foi rompido pela delegação do partido, mesmo depois da líder, Annegret Kramp-Karrenbauer (AKK) ter dado ordens explícitas para não haver concertação política com a extrema-direita. Sentindo-se desautorizada, AKK, que a chanceler Angela Merkel escolhera para a suceder, apresentou a sua demissão.

“Este resultado deve fazer-nos acordar um pouco e mostrar que há muito em jogo neste momento”, disse o ministro da Saúde alemão, o democrata-cristão Jens Spahn, citado pela Deutsche Welle. “É Hamburgo, é a Turíngia. São os resultados nas urnas. É a posição do partido”, acrescentou. Spahn, que pertence à ala conservadora da CDU, é visto como um dos três candidatos com mais hipóteses de suceder à líder demissionária.

Conhecidos os resultados, o secretário-geral do SPD, Lars Klingbeil, abriu as hostilidades contra a CDU, seus parceiros de coligação no Governo federal, acusando-os de não terem uma demarcação clara face à extrema-direita. “O comportamento da CDU na Turíngia está no limite do embaraço”, disse esta segunda-feira o político social-democrata.

AKK respondeu, dizendo que o SPD está a fazer “uma campanha suja” e garantindo que o seu partido estabeleceu uma “clara linha de demarcação” da AfD. A seguir, a líder demissionária chegou mesmo a pôr em causa o futuro da coligação, pedindo aos social-democratas que parem os ataques ou o melhor é abandonarem a coligação com a CDU. Uma jogada demasiado arriscada para os dois partidos que poderia ter um elevado preço nas urnas.

Há meses que AKK vinha sendo criticada internamente por uma série de gaffes e maus resultados eleitorais e a gota de água que ditou o seu afastamento foi a aliança com a AfD na Turíngia. A líder demissionária pretendia que a sucessão fosse decidida num congresso no final do ano, em Dezembro, para evitar uma luta interna que aprofundasse as divergências no partido, mas a direcção nacional da CDU decidiu-se esta segunda-feira pela conferência especial de 25 de Abril para escolher a nova liderança.

Os candidatos à sucessão devem apresentar-se esta semana e, até ao momento, apenas um dos democratas-cristãos apontados pela imprensa alemã se chegou à frente: o deputado federal Norbert Röttgen. Outros dos referidos, para além de Spahn, são Armin Laschet, chefe do governo da Renânia, e Friedrich Merz, antigo líder da bancada do partido no Bundestag.



OPINIÃO
Os espectros do nazismo e do comunismo atormentam a Alemanha

Até há uma década os extremos políticos que hoje têm representação na AfD e no Die Linke estavam mais ou menos proscritos da política germânica. Mas a situação mudou substancialmente com os dois grandes partidos tradicionais em retrocesso.

JOSÉ PEDRO TEIXEIRA FERNANDES
16 de Fevereiro de 2020, 16:49

1. A Turíngia, um pequeno estado da República Federal da Alemanha, é um dos 16 Länder da federação com pouco mais de dois milhões de habitantes e capital em Erfurt. Recentemente, tornou-se o centro das atenções políticas germânicas e da Europa. Thomas Kemmerich do Freie Demokratische Partei / Partido Democrático Liberal (FDP), foi designado para chefiar o governo estadual da Turíngia com a ajuda da Alternative für Deutschland / Alternativa para a Alemanha (AfD).  Apesar de se ter demitido em seguida, abrindo caminho a novas eleições, o simbolismo do acontecimento é grande. Pela primeira vez na Alemanha do pós-guerra um político eleito para governar um Estado da federação foi indigitado para o cargo com o apoio de um partido populista ou de (extrema) direita. Até agora, o tradicional centro-direita conservador chefiado por Angela Merkel, a Christlich Demokratische Union Deutschlands / União Democrata-Cristã da Alemanha (CDU), sempre tinha recusado participar em qualquer coligação, ou solução governamental, com a AfD.

2. Mas a história desta transformação começa bem mais atrás. Nas eleições estaduais de Outubro de 2019 o Die Linke (A Esquerda) foi o partido mais votado na Turíngia seguido da AfD à (extrema) direita. Numa Alemanha habituada ao domínio de dois grandes partidos — ao centro-direita a CDU coligada com a CSU, os democratas-cristãos da Baviera; e ao centro-esquerda o SPD, o Sozialdemokratische Partei Deutschlands / Partido Social-Democrata da Alemanha — o resultado mostrou uma desagregação desse sistema bipartidário. Não foi um acaso isto ter ocorrido num território da antiga República Democrática Alemã (RDA), um Estado oficialmente comunista desde a sua fundação em 1949, até à sua extinção em 1990, por absorção pela antiga República Federal da Alemanha (RFA), criando a actual Alemanha unificada.

Não é provavelmente um acaso que o Die Linke (a esquerda radical ou extrema-esquerda) e a AfD (a direita populista ou extrema-direita) sejam os partidos em ascensão na Turíngia. Se a AfD tem origens nos sectores mais nacionalistas e à (extrema) direita da Alemanha, o partido Die Linke é, de alguma forma, o ressurgir do passado do comunismo da RDA

Aí, para além dos tormentos do passado nazi, da opressão totalitária com perseguição de opositores políticos pela Geheime Staatspolizei (a Gestapo) e execução em massa dos judeus, há ainda o espectro do muro de Berlim e do passado comunista. A antiga RDA não foi um modelo de respeito das liberdades individuais, da democracia e dos direitos humanos. Pelo contrário, à sua maneira deixou um rasto de opressão e de perseguições com memórias negativas ainda bem vivas entre muitos alemães.

3. Não é provavelmente um acaso que o Die Linke (a esquerda radical ou extrema-esquerda) e a AfD (a direita populista ou extrema-direita) sejam os partidos em ascensão na Turíngia. Anteriormente, em 2014, o Die Linke já tinha ganho as eleições e chegado ao poder nesse Estado. Mas qual a origem deste último partido? Se a AfD tem origens nos sectores mais nacionalistas e à (extrema) direita da Alemanha — tocando em conexões perigosas com o passado nazi e o seu totalitarismo — o partido Die Linke, por sua vez, é, de alguma forma, o ressurgir do passado do comunismo da RDA.

Até há uma década os extremos políticos que hoje têm representação na AfD e no Die Linke estavam mais ou menos proscritos da política germânica. Os seus eleitores ou não votavam, ou então diluíam tipicamente o seu voto na CDU (à direita) e no SPD (à esquerda), sem influenciar a agenda política. Mas a situação mudou substancialmente com os dois grandes partidos tradicionais em retrocesso.

Se a ascensão da AfD faz recear o pior dos anos 1930 — desde logo o colapso da República de Weimar provocado pelo Partido Nazi —, o Die Linke também não desperta memórias políticas tranquilizadoras. Pelo contrário, cria substanciais anticorpos na sociedade germânica até porque o seu passado, embora com outro tipo de opressão que não o da inqualificável barbárie nazi, é mais recente (e foi mais longo) do que o do nazismo. Para muitos alemães, sobretudo na parte Leste, é um reciclar do passado opressivo comunista da RDA onde o Sozialistische Einheitspartei Deutschlands / Partido Socialista Unificado da Alemanha (SED) era o partido único que controlava o Estado. A par disso, há as memórias de repressão da Stasi (abreviatura de Ministerium für Staatssicherheit / Ministério para a Segurança do Estado), uma polícia política orwelliana com centenas de milhares de funcionários e informantes infiltrados em todas as áreas da sociedade. Provavelmente, a mais eficaz da era das ditaduras não digitais.

Olhar para a Alemanha e ver apenas o declínio dos principais partidos e a ascensão da (extrema) direita não capta a totalidade da transformação social e política em curso. Continuam a existir duas Alemanhas políticas — e económicas e culturais. As votações mais elevadas na AfD e do partido Die Linke no Leste da Alemanha não deixam dúvidas quanto a isso

4. A Alemanha, em particular a Alemanha de Leste, vive assim hoje o regresso dos fantasmas do nazismo e do comunismo, os quais tornam a pairar sobre a sua política e sociedade. A experiência política particular da Guerra-Fria e o grau de baixa prosperidade relativa do Leste, quando comparado com a parte ocidental, convergem para que as divisões entre as duas Alemanhas se perpetuem no tempo. Acresce ainda um longo passado anterior à unificação de 1871 que não se apagou também, o qual a divide o Norte e o Sul, católicos e protestantes, pró-prussianos e anti-prussianos. Estes últimos foram agentes maiores da unificação do século XIX, mas também da tragédia alemã e europeia, pelas catástrofes bélicas do século XX.

Quando se olha para os padrões de votação nas últimas eleições, sejam as efectuadas nos Länder ou as eleições federais, detectam-se essas diferentes realidades. Apesar do declínio claro dos dois grandes partidos, a parte ocidental ainda é dominada pela coligação CDU/CSU e pelo SPD (e Verdes). Nessa parte da Alemanha, quer a AfD, quer o partido Die Linke, apesar da sua ascensão, não têm um peso eleitoral particularmente significativo. Já no Leste da Alemanha, como mostra o caso da Turíngia, há uma tendência acentuada para os extremos políticos crescerem à custa dos dois grandes partidos tradicionais (que têm origem na política da Alemanha ocidental do pós-1945). Em teoria, a AfD e o Die Linke são os maiores inimigos, na prática, convergem mais do que parece. Cada um à sua maneira corrompe a imagem política de moderação e de consensos da Alemanha unificada na União Europeia.

5. Pelas razões explicitadas anteriormente, olhar para a Alemanha e ver apenas o declínio dos principais partidos e a ascensão da (extrema) direita não capta a totalidade da transformação social e política em curso. Como notado, continuam a existir duas Alemanhas políticas — e económicas e culturais. As votações mais elevadas na AfD e do partido Die Linke no Leste da Alemanha não deixam dúvidas quanto a isso.

Claro que isto traz problemas políticos sérios. A ascensão da (extrema) direita e o espectro dos anos 1930 é o problema melhor identificado e conhecido. Lembra-nos como as democracias se podem degradar até que o terreno seja propício a uma tomada autoritária do poder, como fez o Partido Nazi  em 1933. Mas não é só a (extrema) direita que faz renascer os espectros do(s) autoritarismo(s). Os dois extremos alimentem-se mutuamente. Para muitos alemães a esquerda radical ou (extrema) esquerda do Die Linke tenta também branquear o passado, agora não o do nazismo, mas o do comunismo. Qualifica eufemisticamente a RDA como tendo sido apenas um regime injusto.

Para além disso, vários membros do Die Linke não eram apenas simpatizantes do regime comunista anterior, ou membros do partido único, o SED. Vários casos têm vindo a público de ligações à Stasi — uma espécie versão alemã oriental da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) criada pelo Estado Novo de Salazar. A Alemanha está a ser novamente atormentada pelos espectros do passado nazi e comunista. Esperemos que continue a saber afastá-los, tal como fez exemplarmente a Alemanha Ocidental após 1945.

Investigador do IPRI-NOVA - Universidade NOVA de Lisboa

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