quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Veneno racista espalha-se na Alemanha



Veneno racista espalha-se na Alemanha

Autor do atentado de Hanau publicou manifesto neonazi no qual defendia o extermínio da maior parte do Médio Oriente, Israel incluído, e do norte de África, bem como os alemães "impuros". Número de extremistas identificados pelas autoridades subiu um terço.

César Avó
21 Fevereiro 2020 — 00:07

"O racismo é um veneno, o ódio é um veneno. Este veneno existe na nossa sociedade e já é culpado por demasiados crimes." Palavras da chanceler Angela Merkel em reação ao atentado terrorista de quarta-feira à noite em Hanau, cidade que dista 25 quilómetros de Frankfurt. Um homem de 43 anos, inspirado em ideais supremacistas e teorias da conspiração, é o mais recente perpetrador de três tiroteios, tendo matado dez pessoas, mãe incluída.

Na quarta-feira à noite o alemão Tobias R. atacou dois bares de shisha (cachimbos de água) no centro de Hanau, tendo matado nove pessoas e ferido seis. Entre os mortos, cinco são turcos, um é bósnio e outro é búlgaro. Segundo o tabloide Bild, uma das vítimas é uma mulher de 35 anos, mãe de duas crianças. O atacante fugiu dos locais dos tiroteios, mas os indícios levaram a polícia à sua casa, onde foi encontrado morto perto do corpo da sua mãe, ambos com ferimentos de balas.

O ataque terrorista levado a cabo por Tobias R. foi o segundo mais mortífero da extrema-direita alemã desde a Segunda Guerra Mundial. Em 1980, um membro da organização paramilitar Wehrsportgruppe Hoffmann detonou uma bomba na tradicional festa da cerveja em Munique, a Oktoberfest, tendo matado 12 pessoas e ferido duas centenas.

Mas não é preciso recuar décadas para encontrar atividade criminosa ligada à extrema-direita. Para o diretor da agência federal de investigação criminal (BKA), Sebastian Fiedler, há "paralelos significativos" com o tiroteio ocorrido em Halle, em outubro, no qual o autor tentou entrar numa sinagoga, e acabou por matar duas e ferido gravemente outras duas nas imediações; e com o atentado de Christchurch, na Nova Zelândia, no qual o terrorista matou 51 pessoas em duas mesquitas. Todos os casos envolveram pessoas "que se agarram a ideologias grotescas, de extrema-direita, racistas ou mesmo ideologias que eles próprios inventaram", disse Fiedler à emissora alemã SWR.

No mesmo sentido comentou o especialista em contraterrorismo Yan San-Pierre à Deutsche Welle, que acrescentou: "Ao longo do último ano vimos numerosos grupos formarem-se no WhatsApp e milícias de menor dimensão com o objetivo de defender os alemães contra os invasores. Têm surgido cada vez mais desses grupos."

Neonazi e adepto das teorias de conspiração
No caso de Tobias R., a sua mente estava atormentada com ideias próprias de um nazi. Num manifesto de 24 páginas que publicou num site pessoal - entretanto apagado pelas autoridades - defendia o extermínio de metade da população, a começar pelo Médio Oriente, Israel incluído, e prosseguindo pelo norte de África, Ásia, América central e do sul. Os alemães "impuros" também fariam parte da sua lista.

Mas além da simpatia pelo genocídio e de "provas sérias que indicam um antecedente racista para o crime", como disse o procurador-geral, o alemão era adepto das teorias da conspiração. Dias antes do atentado, publicou um vídeo no qual alertava os norte-americanos para a existência de bases militares secretas onde se praticam rituais satânicos que incluem o abuso de crianças.

Uma teoria semelhante à teoria infundada de extrema-direita (QAnon) de que o presidente norte-americano, Donald Trump, está a combater de forma secreta os inimigos ocultos no "Estado profundo" bem como uma rede de tráfico sexual de crianças chefiada por satânicos e canibais.

No site, Tobias R. tinha ainda links para teorias da conspiração relacionadas com raptos realizados por alienígenas. O seu perfil poderá ser inserido no grupo dos incels, os homens que odeiam mulheres: afirmava nunca ter tido um relacionamento com uma mulher alegando que estava a ser vigiado pelo governo.

Mas Tobias R. não tinha qualquer registo criminal nem tinha qualquer investigação nem processos pendentes, segundo adiantou o gabinete do procurador federal. O suspeito das dez mortes - ele próprio foi encontrado morto junto ao corpo da mãe com uma arma - tinha licença de porte de arma desde 2013. Era proprietário de duas armas e associado do clube de tiro local.

Rede terrorista desmantelada
Na semana passada a polícia realizou uma operação em 13 locais de seis estados devido a suspeitas de uma rede terrorista de extrema-direita. No decorrer das rusgas as autoridades detiveram 12 de 13 pessoas suspeitas de estarem envolvidas no grupo terrorista, que planeava ataques contra políticos, requerentes de asilo e muçulmanos, e em concreto para atacar mesquitas.

O grupo foi fundado por radicais de extrema-direita em setembro de 2019 e um dos detidos era um agente administrativo da polícia.

Os grupos terroristas de extrema-direita têm multiplicado a atividade bem como o número de participantes. Em junho do ano passado, Walter Lübcke, edil da CDU na cidade de Kessel que defendia a política para os refugiados da Alemanha, foi assassinado por um confesso e condenado por crimes de natureza violenta contra os migrantes.

Depois, em outubro, como referido acima, um terrorista escolheu o dia do Yom Kipur, uma das datas centrais do judaísmo, para atacar a sinagoga de Halle.

Em julho de 2018, Beate Zschäpe, conhecida como a noiva nazi, foi condenada a prisão perpétua pela participação no grupúsculo neonazi Clandestinidade Nacional-Socialista (NSU), e responsável por matar dez pessoas, a maioria de ascendência turca, entre 2000 e 2007. Os outros membros do grupo criminoso suicidaram-se.

Governo responde com mais meios
O número de extremistas alemães está em crescimento - uma tendência que acompanha o crescimento eleitoral do partido Alternativa para a Alemanha (AfD), anti-imigração e antimuçulmano.

Segundo os serviços de informações estaduais e federal (BfV) foram identificados em 2019 32 200 extremistas alemães com simpatias de extrema-direita. Em comparação com 2018 o número subiu um terço, ano em que contabilizaram 24 100 extremistas. O aumento é explicado pelo facto de as autoridades terem incluído a fação mais extrema da AfD conhecida como Der Flügel (a Ala), bem como a juventude partidária desse partido.

Em dezembro, o Estado anunciou a abertura de 600 postos de trabalho para combater as ameaças da extrema-direita, altura em que a polícia federal disse ter identificado 48 pessoas que poderiam ter feito um ataque terrorista.

No entanto, para a deputada Irene Mihalic, de Os Verdes, o país não está bem preparado para fazer face a esta ameaça. "Na Alemanha, o terrorismo de direita tem sido ignorado pelas autoridades de segurança há demasiado tempo, não lhe tem sido dada atenção suficiente. Mesmo o terror da NSU não levou a nenhuma mudança significativa na forma como se opera. Há já algum tempo que nos queixamos de uma verdadeira fraqueza analítica quando se trata de extremismo de direita. Muitas coisas são simplesmente olhadas isoladamente, sem ver um contexto maior. Mas tais atos não acontecem sem contexto. É por isso que é importante reconhecer as conexões, desenvolver soluções estruturais e olhar de perto para quem está envolvido com quem", disse em entrevista ao Taz.

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