A nova Lisboa
marcha pelo ambiente. "Coragem" ou "trapalhada"?
A partir de junho
Lisboa vai mudar. A nova zona de emissões reduzidas traz menos carros, mais
transportes e muitas questões para Fernando Medina.
Ana Sanlez
15 Fevereiro 2020
— 17:25
A liberdade
completava pouco mais de uma década quando na vida dos lisboetas irrompeu outra
revolução. Em 1986, a Rua Augusta, corredor nobre do comércio da capital, foi
cortada ao trânsito. Juntou-se um coro de protestos, conta quem se lembra, e
anunciou-se a morte da Baixa. Sem carros, ia cair o Carmo e a Trindade, e o
comércio viria atrás.
"Hoje,
ninguém imagina a Rua Augusta com carros. As mudanças não nos assustam, temos é
de percebê-las", aponta Vasco Morgado, presidente da Junta de Freguesia de
Santo António, uma das três freguesias abrangidas pela nova zona de emissões
reduzidas (ZER), o plano da Câmara Municipal de Lisboa (CML) para reduzir a
circulação de automóveis na Baixa da capital e aumentar, assim, a qualidade do
ar. Para já, o que o projeto deixa no ar são dúvidas.
"Se for
implementado tal como está, prevejo alguns problemas. Por um lado acho que
protege os moradores, mas não se percebe o estacionamento limitado das visitas.
Do lado dos comerciantes a grande questão são as cargas e descargas, que são
hoje um enorme problema nesta zona da cidade", sublinha Vasco Morgado.
Se acabar com as
carrinhas estacionadas nos passeios em hora de ponta é urgente, diz o autarca,
também é importante assegurar "o descanso dos poucos moradores que
resistem" na Baixa. O projeto prevê que as cargas e descargas sejam feitas
de madrugada, entre a 00.00 e as 06.30.
"Quem é que
vai estar nas lojas para receber as encomendas a essas horas", questiona
Fernanda Igrejas, empresária da Rua do Ouro há 30 anos e membro dos órgãos
sociais da Associação de Dinamização da Baixa Pombalina. A organização, com cerca
de 200 membros, entre lojas e serviços, reuniu-se nesta semana para debater o
plano de Fernando Medina, e redigir uma lista de dúvidas e sugestões para
endereçar à autarquia.
"Estamos de
acordo com o objetivo subjacente ao plano. Mas não concordo com a forma como se
vai realizar, nem com a rapidez com que se vai pôr o projeto em prática. Nos
primeiros tempos vai ser penoso para o comércio, são demasiadas
restrições", desabafa a proprietária do número 157 da Rua do Ouro, uma das
artérias inseridas na ZER. A partir de junho, só transportes públicos e carros
autorizados, como residentes e veículos em emergência, poderão atravessar a Rua
Áurea, que vai ganhar ainda uma ciclovia.
Nova Lisboa para
turistas?
Além do
alargamento do período de cargas e descargas, os comerciantes querem
sensibilizar a câmara para "as situações do dia-a-dia", como
"problemas técnicos que têm de ser resolvidos rapidamente" por
profissionais que passam a ter acesso condicionado à Baixa.
Na Rua da
Conceição, conhecida como a rua das retrosarias, as preocupações dos lojistas
são semelhantes. O novo plano prevê reservar "parte significativa"
desta artéria ao transporte público, como o elétrico 28. "Estou
dividida", assume Susana Pais, que há 16 anos trabalha na retrosaria
Adriano Coelho. "É verdade que aqui há muita poluição e alargar os
passeios é importante. Mas sem carros há certamente clientes que vão deixar de
vir. Passam a ir aos centros comerciais onde não há restrições nenhumas."
Entre os
restantes funcionários, as opiniões dividem-se. Paula Gaspar defende "a
retirada total do trânsito". Francisco Jerónimo acha que "a Baixa não
está preparada para uma mudança tão drástica".
Sobre o tema
"Nova Lisboa" não há na capital, por estes dias, quem não queira dar
opinião. Na Rua da Prata, onde trabalha há um ano, Marisa Rodrigues até vê as
mudanças com bons olhos. Fica admirada, porém, ao saber que é já no verão que a
revolução vai passar por aqui. "Quando ouvi a apresentação do projeto
pensei que ia levar uns três anos a implementar."
Na ourivesaria
Lua de Prata, quem compra são "turistas e clientes fiéis e antigos",
pelo que Marisa não está preocupada com a possível perda de clientela. "Se
a intenção é transformar a Baixa no local mais turístico possível, estão no bom
caminho", acrescenta a colega Patrícia Almeida.
As duas
funcionárias que, tal como todos os comerciantes com quem o Dinheiro Vivo
falou, se deslocam para a Baixa de transportes públicos, defendem que para o
plano das ZER ter sucesso é preciso aumentar o estacionamento e baixar os
preços dos bilhetes comprados a bordo, que hoje custam dois euros nos
autocarros e três nos elétricos.
Medina admite
mudanças
Durante as
próximas semanas, serão estas e muitas outras as questões a que Fernando Medina
terá de responder, no périplo que iniciou nesta quinta-feira pelas juntas de
freguesia, associações de comerciantes e moradores e outras entidades
interessadas nas mudanças, como o ACP.
Na Junta de
Freguesia da Misericórdia, a primeira que o autarca enfrentou, Medina ouviu
aplausos pela "coragem" e apupos pela "trapalhada". O
presidente admitiu "abertura" para mudar algumas das medidas, antes
de o plano avançar para a consulta pública e ser submetido à aprovação da CML.
Há, no entanto, linhas vermelhas das quais o presidente não abdica. Eliminar a
circulação automóvel na Rua de São Pedro de Alcântara é uma delas. "É uma
vergonha o que ali existe há anos."
Na Misericórdia,
o objetivo do plano é acabar com a "função de atravessamento" de
artérias como a Calçada do Combro ou a Rua de São Bento. Segundo Fernando
Medina, o objetivo do plano é desviar os carros para a Avenida Infante Santo, a
Calçada da Estrela e a Avenida D. Carlos I, artérias "com mais
capacidade" para absorver o trânsito.
Num plano que tem
como meta limpar o ar de Lisboa, também estes desvios ativam alertas.
"Tenho receio de que a poluição se afaste da Baixa para outros sítios.
Quando se mexeu na Avenida da Liberdade, os níveis de poluição aumentaram na
Rua de São José e na Rua do Telhal", lembra Vasco Morgado.
Já a presidente
da Junta da Misericórdia, Carla Madeira, acredita que a freguesia só tem a
ganhar com as propostas. "Estas zonas sofreram uma grande pressão, com a
especulação imobiliária e com o aumento desenfreado do turismo. Uma padaria
local ou uma esplanada são mais apelativas numa zona nobre, com um passeio
largo e sem poluição, do que com o caos que existe atualmente."
A autarca espera
que, nos próximos anos, as ruas da Misericórdia, que compete com Santo António
pelo título de metro quadrado mais caro do país, acima dos 4500 euros, estejam
repletas de lojas novas. "É uma zona atrativa, independentemente da forma
como lá podemos chegar. Se, em tempos, a zona da Baixa da cidade era tida como
abandonada, hoje é novamente um dos epicentros da nova e moderna Lisboa. Jamais
perderá a procura, seja por ser das mais nobres para se viver e trabalhar, seja
porque turisticamente é das mais atrativas", ressalva Patrícia Araújo,
responsável da divisão de retalho da imobiliária JLL.
A meta da ZER é
tirar 40 mil carros da Baixa, para que em 2050 Lisboa cheire a neutralidade
carbónica, a flores e a mar.
Sem comentários:
Enviar um comentário