OPINIÃO
Devolver à origem
a arte que ninguém pediu
A única pilhagem
que vejo aqui é esta: Joacine Katar Moreira a roubar descaradamente polémicas
internacionais por puro oportunismo político.
1 de Fevereiro de
2020, 6:15
Diga-me, caro
leitor: consegue nomear uma obra – uma só – moçambicana, angolana, guineense,
timorense ou ameríndia que faça parte do imaginário artístico português? Uma
máscara, uma escultura, uma jóia, uma tapeçaria, um colar, qualquer coisa que
nós sintamos ser tão nossa quanto os painéis de São Vicente, a Adoração dos
Magos de Domingos Sequeira, a custódia de Belém ou os biombos Namban, com a
chegada dos portugueses ao Japão no século XVI (quanto a estes, não se assuste:
não foram roubados, mas sim comprados no mercado de arte internacional nos anos
50 do século passado)?
A discussão em
torno da devolução de património aos países de origem é muito gira, sim senhor,
tal como o infatigável desejo de penitência pelo nosso passado colonial, mas
para que o debate e a penitência façam algum sentido convém garantir primeiro
isto: que existam obras com um peso artístico ou simbólico significativo para
devolver. Ora, não havendo exemplos evidentes dessas obras, nem pedidos
conhecidos de devolução, está-me a parecer que a única coisa que temos em
Portugal é um intenso desejo de devolver aquilo que nenhum governo africano ou
asiático se deu sequer ao trabalho de pedir.
E, assim sendo, a
proposta do Livre para a “descolonização da cultura” portuguesa e para o
levantamento do património a ser restituído às antigas colónias é
essencialmente uma polémica de papelão. Na pior das hipóteses (ou na melhor,
depende da perspectiva), essa restituição atingiria sobretudo o espólio do
Museu Nacional de Etnologia, que em tempos foi uma instituição muito
respeitada, mas que hoje é pouco mais do que um edifício bonito com vista para
o Tejo e o segundo museu menos visitado do país, abaixo dos 20 mil visitantes
em 2018. (Pior, só mesmo o Museu Nacional da Música, que fica dentro de uma
estação de metro.)
Esta é a melhor
medida do poder de atracção do património artístico retirado às antigas
colónias: 55 visitas diárias em média, entre portugueses e turistas. Joacine
Katar Moreira adoraria ter um pequeno Museu Britânico em Portugal para poder
fazer grande estrilho com peças pilhadas, só que Portugal, infelizmente, não é
a Inglaterra. A pobreza do país, o seu défice de educação e o seu atraso
científico pagam-se muito caro em termos de desenvolvimento, mas pagam-se
bastante barato na hora de devolver o valiosíssimo património que nos
esquecemos de roubar.
O Museu Britânico
foi fundado em 1753. O Museu Nacional de Arqueologia (que nasceu como museu
etnográfico, e tem uma colecção africana) foi fundado em 1893, 140 anos depois,
graças ao trabalho de Leite de Vasconcelos. O Museu Nacional de Etnologia foi
fundado em 1965, graças ao trabalho de Jorge Dias. Estas diferenças de séculos
explicam quase tudo, e o facto de a base daqueles museus ser o espantoso
trabalho de indivíduos notáveis, e não o fruto de uma política cultural
estruturada, explica o resto. A palavra “colonial” aplica-se tanto a Inglaterra
como a Portugal, mas há uma distância oceânica entre o maior império económico,
étnico e cultural que o mundo já viu e um pequeno império que passou a maior
parte do tempo falido.
O nosso interesse
por matérias-primas (das especiarias ao ouro do Brasil) e por escravos rimou
com o nosso desinteresse pela produção artística local, até porque a arte
africana é uma descoberta (ocidental, receio bem) do século XX. Donde, a única
pilhagem que vejo aqui é esta: Joacine Katar Moreira a roubar descaradamente
polémicas internacionais por puro oportunismo político.
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