quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Sonho de um hotel de quatro estrelas fez desaparecer mata municipal em Fornos de Algodres



JUSTIÇA
Sonho de um hotel de quatro estrelas fez desaparecer mata municipal em Fornos de Algodres

Os 30 hectares da mata, com um complexo desportivo e muito mais, foram entregues a um privado. Hoje estão lá um hotel e umas termas feitos com dinheiros públicos. O resto está ao abandono. O empresário foi condenado a quatro anos de prisão, com pena suspensa, e arrisca-se a ter de devolver o subsídio que recebeu. Noutro processo, pronto há três anos mas ainda sem despacho final, é arguido com o ex-autarca de Fornos de Algodres.

José António Cerejo 26 de Dezembro de 2019, 6:40

Avila de Fornos de Algodres, perto da Guarda, tinha uma mata municipal na Serra da Esgalhada. Nos seus 30 hectares havia um complexo desportivo com um campo relvado, dois pelados, um polidesportivo, um centro de interpretação ambiental, uma praça com jogos de água, um circuito de manutenção e um parque de merendas. Tudo equipado como deve ser, bons acessos, estacionamento, caminhos cuidados, iluminação e sinalética. Tudo feito com dinheiros públicos, perto de cinco milhões de euros.

Agora Fornos não tem nada disso. Quase tudo está ao abandono. Só os campos de jogos têm algum uso, ninguém sabe até quando. Em contrapartida, há duas empresas privadas, das quais o município é um sócio minoritário, sem qualquer poder de gestão, que lá têm um hotel e um balneário termal. E são donas de toda a mata e de tudo o que a Câmara lá fez. Para que o complexo desportivo fique também ao abandono, reconhece o actual presidente da Câmara, Manuel Fonseca (PS), basta que o accionista maioritário, Gumercindo Lourenço, assim decida.


O mesmo Gumercindo Lourenço que em Setembro, foi condenado pela Relação de Coimbra a quatro anos e três meses de prisão, com pena suspensa, por fraude na obtenção do subsídio de 5,5 milhões de euros com que construiu o hotel e que se arrisca a ter de devolver ao Turismo de Portugal (TP), além de ter de lhe pagar uma indemnização de 2,3 milhões.

A mata, às portas da vila, foi deixando de ser municipal e passou a ser propriedade da Terras Serranas SA e da Fornos Vida SA. Em troca, o município, que é um dos mais endividados do país, ficou com 15% do capital de ambas, correspondente a 30 mil euros na primeira e 7500 na segunda.

Há uns 15 anos apareceu em Fornos um dos donos das Águas da Curia, Guilherme Romão, com a ideia de fazer um hotel na mata. À época, a Câmara investia aí fortemente com fundos europeus. Alguns equipamentos desportivos estavam já construídos e havia projectos para a requalificação de toda a área.

Fornos de Algodres: obras pagas duas vezes e falsas declarações
O então presidente da Câmara, José Miranda (PSD), comprou a ideia e em 2004, em representação do município, criou com Romão a Terras Serranas. Para ficar com 15% do capital, correspondente a 7500 euros, a autarquia entregou-lhe 32 mil m2 (3,2 hectares) da mata. Cinco anos depois, sem que o hotel aparecesse, foi a vez de Gumercindo entrar em cena. Ex-emigrante em França, convidado a investir em Portugal por Mário Soares e dono de várias empresas de construção e hotelaria, o empresário entende-se com Miranda e Romão e toma o lugar deste na sociedade.


Antes de mais, aumenta o capital de 50 mil para 200 mil euros. Para que o município mantenha os 15%, Miranda entrega-lhe mais uma fatia da mata com 88.100 m2 (8,8 hectares). Feita a avaliação, e ignorando não só o valor de mercado do terreno em si, como o custo das benfeitorias feitas pelo município, foi-lhe atribuído o valor de 22.500 euros. O responsável pela avaliação, que por lei tinha de ser um revisor oficial de contas (ROC) “sem interesses na sociedade”, foi José Marques de Almeida. Precisamente o ROC da Terras Serranas e de muitas das empresas de Gumercindo, para quem trabalha há 30 anos.

Autarca faz falsa declaração
Contrariamente ao que manda a lei, nem a Câmara nem a Assembleia autorizaram a entrega do terreno à empresa. O que não impediu Miranda, presidente da autarquia entre 2001 e 2013, de anexar à escritura de aumento de capital, em 2009, uma declaração em que diz, falsamente, que a Assembleia Municipal autorizou o município, em Setembro de 2001, a entrar na operação com a entrega daqueles 8,8 hectares. Sucede que a empresa só foi criada três anos depois.

Já em 2010, Gumercindo e o autarca conseguem que os 32 mil m2 inicialmente entregues pelo município à Terras Serranas sejam multiplicados por cinco. Afinal, garantiram ambos no Registo Predial, o terreno tinha 155.755 m2 (15,6 hectares) e não 32.000 como por “erro de medição” tinha sido registado em 2004.

Surpreendentemente, aquando do aumento de capital, o objecto social da empresa passou a incluir a “exploração e comercialização de termas de águas sulfurosas e afins”. Gumercindo Lourenço estava então a lançar-se no negócio das águas termais, mas na Serra da Esgalhada elas nunca tinham aparecido. Já com ele como presidente e Miranda como administrador, a empresa avançou para a construção de um hotel de quatro estrelas.

Em poucos meses conseguiu que o Turismo de Portugal — então presidido por Luis Patrão, actual administrador da ANA, presidente da Comissão de Gestão do PS e antigo braço direito de Guterres e Sócrates — lhe aprovasse um financiamento de mais de 5,5 milhões de euros, dos quais 3,6 milhões poderiam converter-se em apoio a fundo perdido. O contrato foi assinado ainda em 2009 e o hotel foi inaugurado em Junho de 2012, com o nome Estrela à Vista, actual Palace Hotel & SPA — Termas de São Miguel.

No total, a Terras Serranas recebeu 5,4 milhões de euros, dos quais 1,3 milhões a fundo perdido e o restante reembolsável em dez anos. Sem juros e sem qualquer pagamento nos três primeiros anos. De acordo com o contrato, mais 2,3 milhões desse total podiam ter sido a fundo perdido. Só não foi assim devido a uma intervenção da Inspecção-Geral de Finanças (IGF) de que se falará adiante.

E a água termal apareceu
Ainda a construção do hotel estava no início quando Gumercindo Lourenço deu asas à ideia de que ali haveria água medicinal. Entregue ao Ministério da Economia no início de 2010, em nome da Terras Serranas, o pedido de atribuição do direito de prospecção de água mineral foi deferido um ano depois. A pesquisa demoraria três anos, tendo a Direcção-Geral de Energia e Geologia (DGEG) confirmado, em Agosto de 2014, que ali havia água mineral.

Todavia, três anos antes, já Gumercindo Lourenço e Miranda tinham criado uma nova sociedade, a Fornos Vida, para construir e explorar um balneário termal. E para que o município ficasse com 15% do capital (7500 euros), a Câmara e a Assembleia aprovaram a entrega a essa sociedade de mais dois nacos da mata com 54.858 m2 (5,5 hectares). As duas parcelas, em que também já havia muito investimento municipal, foram avaliadas pelo mesmo ROC em 66.056 euros (apenas o valor constante das cadernetas prediais), ficando o município com um crédito de 58.556 euros sobre a sociedade.

Foi a esta sociedade que o Governo atribuiu, no Verão de 2015, a concessão da exploração das chamadas Termas de São Miguel. Mas em Maio de 2011, duas semanas após a sua criação e muito antes de encontrar água e obter a respectiva concessão, já a Câmara lhe tinha aprovado a arquitectura do balneário termal que a iria utilizar. E no ano seguinte, ainda sem qualquer garantia da existência de água termal, o TP atribuiu-lhe 2,3 milhões de euros, dos quais 1,3 milhões a fundo perdido, para a construção do balneário.

No pedido de financiamento, Gumercindo alegou que a concessão da água termal tinha sido atribuída ao seu “grupo empresarial” em 2010, o que, na verdade, só viria a verificar-se cinco anos depois.

Questionado pelo PÚBLICO sobre o facto de ter financiado a construção do balneário termal quando apenas sabia, por informação da DGEG, que ali tinha sido autorizada a pesquisa de água mineral, o TP respondeu que, de acordo com o regulamento então em vigor, só lhe competia verificar, como verificou, que o projecto de arquitectura do edifício já tinha sido aprovado pelo município.

Tal como aconteceu com o hotel, o balneário foi construído e equipado por uma empresa também pertencente a Gumercindo. Ficou pronto em 2014, um ano antes da atribuição da concessão da exploração da água. A abertura, porém, só ocorreu em 2018, depois de cumpridos os programas de controlo da água impostos pela DGEG e de o Ministério da Saúde emitir a licença de funcionamento.

Empresário escapou à prisão
No decorrer de 2014 muita coisa começou a correr mal a Gumercindo Lourenço.

Por um lado, a IGF detectou graves irregularidades no processo do hotel de Fornos, recomendando ao TP que retirasse o financiamento à Terras Serranas. Por isso, a segunda parte do apoio a fundo perdido, que poderia chegar aos 2,3 milhões, nunca foi atribuída, tendo o contrato de financiamento sido rescindido pelo TP logo em 2015. Em consequência, a empresa foi notificada para devolver, com juros, os 5,5 milhões que havia recebido. Todavia, tal não se verificou até agora, visto que a Terras Serranas impugnou judicialmente a decisão do TP e o processo continua pendente.

Pior do que isso, a IGF comunicou ao Ministério Público (MP) numerosos indícios de que Gumercindo Lourenço tinha cometido o crime de fraude na obtenção de subsídio, empolando a facturação da empresa que construiu o hotel e conseguindo, através de um engenhoso esquema, receber mais 2,3 milhões do TP do que devia.

Em resultado da investigação do MP, o empresário veio a ser condenado em Viseu, em 2018, a cinco anos e três meses de prisão efectiva. Já em Setembro deste ano, a Relação de Coimbra reduziu essa condenação para quatro anos e três meses com pena suspensa, mantendo a obrigação de indemnizar o TP em 2,3 milhões de euros.

Negócio repetiu-se em várias câmaras
Há alguns anos Gumercindo Lourenço conseguiu fechar negócios semelhantes aos de Fornos com as câmaras de Tabuaço, Aguiar da Beira e Penamacor. Os autarcas sonhavam com hotéis e turistas e o empreendedor era visto como uma dádiva do céu. Os fundos europeus abriam os cordões à bolsa através do Turismo de Portugal, com financiamentos de milhões de euros, parte deles a fundo perdido. Os grandes hotéis nasciam e, nalguns casos, nasciam nascentes termais com eles. Passado pouco tempo, os litígios, os processos e os inquéritos criminais envolvendo Gumercindo Lourenço, as suas empresas, antigos autarcas, técnicos municipais e até um revisor oficial de contas multiplicaram-se.

Noutros locais, como Castro Daire, Soure e Penafiel, embora os municípios não se tenham associado aos projectos do empresário, os seus empreendimentos deram origem a queixas judiciais das autarquias, participações da IGF ao MP e investigações do fisco. J.A.C.



Por outro lado, em Outubro de 2013, Miranda foi substituído na presidência da Câmara pelo socialista Manuel Fonseca. Como vice-presidente ficou uma combativa independente, Rita Silva, que embora tenha sido afastada da vice-presidência por Manuel Fonseca, em 2018, continua na dianteira da luta pelo regresso da mata ao município.

Em consequência destas mudanças, a Câmara tentou logo em 2014 que o Governo recuasse na intenção de concessionar a água à Fornos Vida. O argumento foi o de que ia requerer a anulação judicial da entrega dos terrenos à empresa.

A iniciativa não teve sucesso, mas em 2015 o município fez entrar no Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco dois pedidos de declaração de nulidade da constituição da Terras Serranas e da Fornos Vida e de restituição dos terrenos que lhes foram entregues. Os dois pedidos tinham por base a alegada verificação de ilegalidades na sua constituição, mas o tribunal, apesar de os processos estarem prontos para decisão há mais de um ano, só no dia 3 deste mês se pronunciou, declarando-se incompetente para os julgar. Apesar disso, o juiz absolveu Gumercindo Lourenço e as empresas de restituir os terrenos ao município devido a um “erro na forma do processo”.

Queixa-crime contra anterior autarca
Na sequência do pedido de nulidade da constituição das empresas, já em 2017, o município deu mais um passo e apresentou ao Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) de Coimbra uma queixa-crime contra o seu ex-presidente José Miranda. A denúncia refere-se ao alegado favorecimento de Gumercindo e a ilegalidades na gestão da autarquia.

Antes disso, contudo, já os dois homens tinham sido constituídos arguidos noutro inquérito do MP que corria na Guarda e tinha um âmbito mais vasto do que aquele em que Gumercindo já foi condenado. O empresário estava mais uma vez indiciado por fraude na obtenção de subsídio e fraude fiscal e Miranda era suspeito de abuso de poder e participação económica em negócio. De acordo com um despacho do MP, a investigação estava já concluída em Outubro de 2016, aguardando apenas a acusação. “Em condições para que nele fosse deduzida acusação” encontrava-se ainda um outro processo em que foi investigado o facto de o posto de transformação do hotel ter sido pago duas vezes pelos fundos europeus: uma à Terras Serranas e outra ao município.

Passados três anos e com o processo de Viseu já julgado, os inquéritos da Guarda foram incorporados um no outro e continuam em segredo de justiça, no DIAP de Coimbra. Igualmente em segredo de justiça está o inquérito instaurado em 2017 com base na denúncia do município de Fornos contra o seu anterior presidente.

No meio deste labirinto jurídico, a vizinha freguesia de Infias reivindica a propriedade dos terrenos que o município entregou às duas empresas. E a Fornos Vida interpôs uma acção judicial, também por causa desses terrenos, contra o município e a freguesia.

José Miranda, contactado pelo PÚBLICO, respondeu que estes assuntos “estão em investigação” pelo que não lhe parece oportuno pronunciar-se. Gumercindo Lourenço não respondeu às perguntas do PÚBLICO.

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