JUSTIÇA
Sonho de um hotel
de quatro estrelas fez desaparecer mata municipal em Fornos de Algodres
Os 30 hectares da
mata, com um complexo desportivo e muito mais, foram entregues a um privado.
Hoje estão lá um hotel e umas termas feitos com dinheiros públicos. O resto
está ao abandono. O empresário foi condenado a quatro anos de prisão, com pena
suspensa, e arrisca-se a ter de devolver o subsídio que recebeu. Noutro
processo, pronto há três anos mas ainda sem despacho final, é arguido com o
ex-autarca de Fornos de Algodres.
José António
Cerejo 26 de Dezembro de 2019, 6:40
Avila de Fornos
de Algodres, perto da Guarda, tinha uma mata municipal na Serra da Esgalhada.
Nos seus 30 hectares havia um complexo desportivo com um campo relvado, dois
pelados, um polidesportivo, um centro de interpretação ambiental, uma praça com
jogos de água, um circuito de manutenção e um parque de merendas. Tudo equipado
como deve ser, bons acessos, estacionamento, caminhos cuidados, iluminação e
sinalética. Tudo feito com dinheiros públicos, perto de cinco milhões de euros.
Agora Fornos não
tem nada disso. Quase tudo está ao abandono. Só os campos de jogos têm algum
uso, ninguém sabe até quando. Em contrapartida, há duas empresas privadas, das
quais o município é um sócio minoritário, sem qualquer poder de gestão, que lá
têm um hotel e um balneário termal. E são donas de toda a mata e de tudo o que
a Câmara lá fez. Para que o complexo desportivo fique também ao abandono,
reconhece o actual presidente da Câmara, Manuel Fonseca (PS), basta que o accionista
maioritário, Gumercindo Lourenço, assim decida.
O mesmo
Gumercindo Lourenço que em Setembro, foi condenado pela Relação de Coimbra a
quatro anos e três meses de prisão, com pena suspensa, por fraude na obtenção
do subsídio de 5,5 milhões de euros com que construiu o hotel e que se arrisca
a ter de devolver ao Turismo de Portugal (TP), além de ter de lhe pagar uma
indemnização de 2,3 milhões.
A mata, às portas
da vila, foi deixando de ser municipal e passou a ser propriedade da Terras
Serranas SA e da Fornos Vida SA. Em troca, o município, que é um dos mais
endividados do país, ficou com 15% do capital de ambas, correspondente a 30 mil
euros na primeira e 7500 na segunda.
Há uns 15 anos
apareceu em Fornos um dos donos das Águas da Curia, Guilherme Romão, com a
ideia de fazer um hotel na mata. À época, a Câmara investia aí fortemente com
fundos europeus. Alguns equipamentos desportivos estavam já construídos e havia
projectos para a requalificação de toda a área.
Fornos de
Algodres: obras pagas duas vezes e falsas declarações
O então
presidente da Câmara, José Miranda (PSD), comprou a ideia e em 2004, em
representação do município, criou com Romão a Terras Serranas. Para ficar com
15% do capital, correspondente a 7500 euros, a autarquia entregou-lhe 32 mil m2
(3,2 hectares) da mata. Cinco anos depois, sem que o hotel aparecesse, foi a
vez de Gumercindo entrar em cena. Ex-emigrante em França, convidado a investir
em Portugal por Mário Soares e dono de várias empresas de construção e
hotelaria, o empresário entende-se com Miranda e Romão e toma o lugar deste na
sociedade.
Antes de mais,
aumenta o capital de 50 mil para 200 mil euros. Para que o município mantenha
os 15%, Miranda entrega-lhe mais uma fatia da mata com 88.100 m2 (8,8
hectares). Feita a avaliação, e ignorando não só o valor de mercado do terreno
em si, como o custo das benfeitorias feitas pelo município, foi-lhe atribuído o
valor de 22.500 euros. O responsável pela avaliação, que por lei tinha de ser
um revisor oficial de contas (ROC) “sem interesses na sociedade”, foi José
Marques de Almeida. Precisamente o ROC da Terras Serranas e de muitas das
empresas de Gumercindo, para quem trabalha há 30 anos.
Autarca faz falsa
declaração
Contrariamente ao
que manda a lei, nem a Câmara nem a Assembleia autorizaram a entrega do terreno
à empresa. O que não impediu Miranda, presidente da autarquia entre 2001 e
2013, de anexar à escritura de aumento de capital, em 2009, uma declaração em
que diz, falsamente, que a Assembleia Municipal autorizou o município, em
Setembro de 2001, a entrar na operação com a entrega daqueles 8,8 hectares.
Sucede que a empresa só foi criada três anos depois.
Já em 2010,
Gumercindo e o autarca conseguem que os 32 mil m2 inicialmente entregues pelo
município à Terras Serranas sejam multiplicados por cinco. Afinal, garantiram
ambos no Registo Predial, o terreno tinha 155.755 m2 (15,6 hectares) e não
32.000 como por “erro de medição” tinha sido registado em 2004.
Surpreendentemente,
aquando do aumento de capital, o objecto social da empresa passou a incluir a
“exploração e comercialização de termas de águas sulfurosas e afins”.
Gumercindo Lourenço estava então a lançar-se no negócio das águas termais, mas
na Serra da Esgalhada elas nunca tinham aparecido. Já com ele como presidente e
Miranda como administrador, a empresa avançou para a construção de um hotel de
quatro estrelas.
Em poucos meses
conseguiu que o Turismo de Portugal — então presidido por Luis Patrão, actual
administrador da ANA, presidente da Comissão de Gestão do PS e antigo braço
direito de Guterres e Sócrates — lhe aprovasse um financiamento de mais de 5,5
milhões de euros, dos quais 3,6 milhões poderiam converter-se em apoio a fundo
perdido. O contrato foi assinado ainda em 2009 e o hotel foi inaugurado em
Junho de 2012, com o nome Estrela à Vista, actual Palace Hotel & SPA —
Termas de São Miguel.
No total, a
Terras Serranas recebeu 5,4 milhões de euros, dos quais 1,3 milhões a fundo
perdido e o restante reembolsável em dez anos. Sem juros e sem qualquer
pagamento nos três primeiros anos. De acordo com o contrato, mais 2,3 milhões
desse total podiam ter sido a fundo perdido. Só não foi assim devido a uma
intervenção da Inspecção-Geral de Finanças (IGF) de que se falará adiante.
E a água termal
apareceu
Ainda a
construção do hotel estava no início quando Gumercindo Lourenço deu asas à
ideia de que ali haveria água medicinal. Entregue ao Ministério da Economia no
início de 2010, em nome da Terras Serranas, o pedido de atribuição do direito
de prospecção de água mineral foi deferido um ano depois. A pesquisa demoraria
três anos, tendo a Direcção-Geral de Energia e Geologia (DGEG) confirmado, em
Agosto de 2014, que ali havia água mineral.
Todavia, três
anos antes, já Gumercindo Lourenço e Miranda tinham criado uma nova sociedade,
a Fornos Vida, para construir e explorar um balneário termal. E para que o
município ficasse com 15% do capital (7500 euros), a Câmara e a Assembleia
aprovaram a entrega a essa sociedade de mais dois nacos da mata com 54.858 m2
(5,5 hectares). As duas parcelas, em que também já havia muito investimento
municipal, foram avaliadas pelo mesmo ROC em 66.056 euros (apenas o valor
constante das cadernetas prediais), ficando o município com um crédito de
58.556 euros sobre a sociedade.
Foi a esta
sociedade que o Governo atribuiu, no Verão de 2015, a concessão da exploração
das chamadas Termas de São Miguel. Mas em Maio de 2011, duas semanas após a sua
criação e muito antes de encontrar água e obter a respectiva concessão, já a
Câmara lhe tinha aprovado a arquitectura do balneário termal que a iria
utilizar. E no ano seguinte, ainda sem qualquer garantia da existência de água
termal, o TP atribuiu-lhe 2,3 milhões de euros, dos quais 1,3 milhões a fundo
perdido, para a construção do balneário.
No pedido de
financiamento, Gumercindo alegou que a concessão da água termal tinha sido
atribuída ao seu “grupo empresarial” em 2010, o que, na verdade, só viria a
verificar-se cinco anos depois.
Questionado pelo
PÚBLICO sobre o facto de ter financiado a construção do balneário termal quando
apenas sabia, por informação da DGEG, que ali tinha sido autorizada a pesquisa
de água mineral, o TP respondeu que, de acordo com o regulamento então em vigor,
só lhe competia verificar, como verificou, que o projecto de arquitectura do
edifício já tinha sido aprovado pelo município.
Tal como
aconteceu com o hotel, o balneário foi construído e equipado por uma empresa
também pertencente a Gumercindo. Ficou pronto em 2014, um ano antes da
atribuição da concessão da exploração da água. A abertura, porém, só ocorreu em
2018, depois de cumpridos os programas de controlo da água impostos pela DGEG e
de o Ministério da Saúde emitir a licença de funcionamento.
Empresário
escapou à prisão
No decorrer de
2014 muita coisa começou a correr mal a Gumercindo Lourenço.
Por um lado, a
IGF detectou graves irregularidades no processo do hotel de Fornos,
recomendando ao TP que retirasse o financiamento à Terras Serranas. Por isso, a
segunda parte do apoio a fundo perdido, que poderia chegar aos 2,3 milhões,
nunca foi atribuída, tendo o contrato de financiamento sido rescindido pelo TP
logo em 2015. Em consequência, a empresa foi notificada para devolver, com
juros, os 5,5 milhões que havia recebido. Todavia, tal não se verificou até
agora, visto que a Terras Serranas impugnou judicialmente a decisão do TP e o
processo continua pendente.
Pior do que isso,
a IGF comunicou ao Ministério Público (MP) numerosos indícios de que Gumercindo
Lourenço tinha cometido o crime de fraude na obtenção de subsídio, empolando a
facturação da empresa que construiu o hotel e conseguindo, através de um
engenhoso esquema, receber mais 2,3 milhões do TP do que devia.
Em resultado da
investigação do MP, o empresário veio a ser condenado em Viseu, em 2018, a
cinco anos e três meses de prisão efectiva. Já em Setembro deste ano, a Relação
de Coimbra reduziu essa condenação para quatro anos e três meses com pena
suspensa, mantendo a obrigação de indemnizar o TP em 2,3 milhões de euros.
Negócio
repetiu-se em várias câmaras
Há alguns anos
Gumercindo Lourenço conseguiu fechar negócios semelhantes aos de Fornos com as
câmaras de Tabuaço, Aguiar da Beira e Penamacor. Os autarcas sonhavam com
hotéis e turistas e o empreendedor era visto como uma dádiva do céu. Os fundos
europeus abriam os cordões à bolsa através do Turismo de Portugal, com
financiamentos de milhões de euros, parte deles a fundo perdido. Os grandes
hotéis nasciam e, nalguns casos, nasciam nascentes termais com eles. Passado
pouco tempo, os litígios, os processos e os inquéritos criminais envolvendo
Gumercindo Lourenço, as suas empresas, antigos autarcas, técnicos municipais e
até um revisor oficial de contas multiplicaram-se.
Noutros locais,
como Castro Daire, Soure e Penafiel, embora os municípios não se tenham
associado aos projectos do empresário, os seus empreendimentos deram origem a
queixas judiciais das autarquias, participações da IGF ao MP e investigações do
fisco. J.A.C.
Por outro lado,
em Outubro de 2013, Miranda foi substituído na presidência da Câmara pelo
socialista Manuel Fonseca. Como vice-presidente ficou uma combativa
independente, Rita Silva, que embora tenha sido afastada da vice-presidência
por Manuel Fonseca, em 2018, continua na dianteira da luta pelo regresso da
mata ao município.
Em consequência
destas mudanças, a Câmara tentou logo em 2014 que o Governo recuasse na
intenção de concessionar a água à Fornos Vida. O argumento foi o de que ia
requerer a anulação judicial da entrega dos terrenos à empresa.
A iniciativa não
teve sucesso, mas em 2015 o município fez entrar no Tribunal Administrativo e
Fiscal de Castelo Branco dois pedidos de declaração de nulidade da constituição
da Terras Serranas e da Fornos Vida e de restituição dos terrenos que lhes
foram entregues. Os dois pedidos tinham por base a alegada verificação de
ilegalidades na sua constituição, mas o tribunal, apesar de os processos
estarem prontos para decisão há mais de um ano, só no dia 3 deste mês se
pronunciou, declarando-se incompetente para os julgar. Apesar disso, o juiz
absolveu Gumercindo Lourenço e as empresas de restituir os terrenos ao
município devido a um “erro na forma do processo”.
Queixa-crime contra anterior autarca
Na sequência do
pedido de nulidade da constituição das empresas, já em 2017, o município deu
mais um passo e apresentou ao Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP)
de Coimbra uma queixa-crime contra o seu ex-presidente José Miranda. A denúncia
refere-se ao alegado favorecimento de Gumercindo e a ilegalidades na gestão da
autarquia.
Antes disso,
contudo, já os dois homens tinham sido constituídos arguidos noutro inquérito
do MP que corria na Guarda e tinha um âmbito mais vasto do que aquele em que
Gumercindo já foi condenado. O empresário estava mais uma vez indiciado por
fraude na obtenção de subsídio e fraude fiscal e Miranda era suspeito de abuso
de poder e participação económica em negócio. De acordo com um despacho do MP,
a investigação estava já concluída em Outubro de 2016, aguardando apenas a
acusação. “Em condições para que nele fosse deduzida acusação” encontrava-se
ainda um outro processo em que foi investigado o facto de o posto de transformação
do hotel ter sido pago duas vezes pelos fundos europeus: uma à Terras Serranas
e outra ao município.
Passados três
anos e com o processo de Viseu já julgado, os inquéritos da Guarda foram
incorporados um no outro e continuam em segredo de justiça, no DIAP de Coimbra.
Igualmente em segredo de justiça está o inquérito instaurado em 2017 com base
na denúncia do município de Fornos contra o seu anterior presidente.
No meio deste
labirinto jurídico, a vizinha freguesia de Infias reivindica a propriedade dos
terrenos que o município entregou às duas empresas. E a Fornos Vida interpôs
uma acção judicial, também por causa desses terrenos, contra o município e a
freguesia.
José Miranda,
contactado pelo PÚBLICO, respondeu que estes assuntos “estão em investigação”
pelo que não lhe parece oportuno pronunciar-se. Gumercindo Lourenço não
respondeu às perguntas do PÚBLICO.
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