Patrick Gautrat:
"Pétain não inventou nada. Para Vichy, o Portugal de Salazar era um
modelo"
No livro Pétain,
Salazar, De Gaulle - Affinités, Ambiguïtés, Illusions (1940-1944), o
ex-embaixador de França em Lisboa conta o fascínio do regime de Vichy pelo
Estado Novo. Ao DN, Gautrat destaca a forma como, ao mesmo tempo, Salazar
fechava os olhos aos gaulistas em Portugal.
Helena Tecedeiro
23 Novembro 2019
— 00:24
Nas palavras de
Charles De Gaulle, Salazar era o "ídolo de Vichy". Como é que um
militar como Philippe Pétain, herói da Primeira Guerra Mundial, se foi inspirar
do regime de um professor de Finanças português?
É normal na
medida em que não era apenas Pétain, eram todas as pessoas da direita mais
conservadora em França que sonhavam para a nossa república um regime que não
seria verdadeiramente republicano, mas que fosse autoritário, corporativo.
Exatamente o que foi o Estado Novo de Salazar de 1926 até 1933. Era um
movimento de ideias, o que chamaríamos hoje uma "moda", de todas as
pessoas de direita muito conservadora ou de extrema-direita francesas que se
inspiravam em Portugal. Queriam ir a Lisboa, conhecer Salazar. Logo Pétain, que
era muito próximo destes meios, só podia ser influenciado favoravelmente pelo
regime.
O regime de
Salazar era mais aceitável do que as outras ditaduras da época?
Sim. Para um
homem como Pétain, não tinha nada que ver. Pétain não gostava - e digo isto de
forma bruta -, não tinha simpatia pelo regime nacional-socialista ou pelo
regime fascista, por isso inspirava-se de uma fórmula, digamos, mais aceitável,
se é que podemos usar essa palavra, que era a fórmula do Estado autoritário e corporativo.
Isso explica que
a divisa de Vichy "Trabalho, Família, Pátria" seja muito próxima do
"Deus, Pátria, Família" do Estado Novo?
Sim, exatamente.
A assimilação é completa. É a mesma ideia com uma palavra de diferença. Pétain
não inventou nada. Para Vichy, Portugal era um modelo. É paradoxal que [se
inspirasse] num país mais pequeno. Mas, ao mesmo tempo, Vichy tinha perdido
dois terços do seu território, por isso parecia menos audacioso adaptar as
fórmulas de Salazar e do Estado Novo a um país que estava reduzido a um terço
da sua superfície - e que se aproximava muito mais de Portugal, tanto no
tamanho como na população e na economia.
Também se pode
dizer que Salazar e Pétain partilhavam a ideia de que a guerra só podia
terminar com uma paz de compromisso? Cada um deles tinha a ganhar com o apoio
do outro?
Sim. Salazar
ajudou muito a França em 1940, quando houve o Armistício. Salazar teve um papel
muito positivo na altura, de negociação discreta. Com Espanha, por exemplo, que
tinha ideias muito agressivas sobre as posições francesas. Em 1940, Salazar,
que se dizia francófilo, teve um papel positivo para a França. Depois, sempre
pensou que a ameaça mais consistente para a Europa era o bolchevismo. O
bolchevismo só podia ser derrotado se a guerra terminasse e se evitasse que a
Alemanha fosse totalmente esmagada. Uma das ideias-mestras de Salazar era que a
Alemanha, pela qual ele também não tinha uma simpatia ilimitada em termos
ideológicos, não podia afundar-se porque isso significava a invasão da Europa
pelo bolchevismo. Por isso era preciso encontrar a paz. E o que é interessante
é que ambos se enganaram. Pétain não era um grande político. Mas Salazar era
suposto ser mais fino. E nunca Salazar percebeu que a paz negociada, a paz de
compromisso, era impossível porque as partes em conflito não a queriam. Os
Aliados ocidentais não a queriam. Na conferência de Casablanca, em 1943,
fizeram questão de dizer que queriam uma capitulação sem condições. Os
soviéticos não a queriam. E os alemães também não porque queriam a guerra
total. É paradoxal exigir uma solução quando sabemos que todos os protagonistas
estão contra.
Essa proximidade
com Pétain, o apoio ao regime de Vichy, não impedia Salazar de fechar os olhos
às atividades dos gaulistas em território português. É a ambiguidade a que se
refere no livro?
É uma ambiguidade
interessada. Salazar era um homem com muita ambiguidade de carácter. Ele
precisava dos gaulistas. Sempre teve muitas reticências em relação a eles
porque acusava o general De Gaulle de permitir a entrada de comunistas no seu
comité de Argel. E isso para Salazar era o pior dos horrores: ter comunistas no
governo da França Livre. Mas ele estava muito desejoso de comprar o fosfato que
havia em Marrocos e que estava controlado, a partir de 1942, pelos Aliados e
pela França Livre. Isso ajudava-o a fechar os olhos. Não os fechava totalmente
mas fechava em grande parte, sem chegar, como recordo várias vezes no livro, ao
reconhecimento da França Livre. Porque reconhecer o governo da França Livre
significava deixar de reconhecer Vichy. Salazar era muito legalista, queria
muito manter a ligação diplomática com o governo de Vichy. Como não podia haver
dois reconhecimentos, encontrou esta solução periclitante, ambígua, do
reconhecimento oficial de Vichy ao mesmo tempo que havia um reconhecimento de
facto dos gaulistas.
É algo muito
português, essa capacidade de estar bem com Deus e com o Diabo. Este desejo de
agradar a todos explica porque Salazar e a ditadura em Portugal sobreviveram ao
fim da guerra e o regime se perpetuou até 1974?
Concordo
totalmente. Era fundamental em 1945 ser bem-visto pelas grandes democracias.
Ora, Salazar fez tudo o que era preciso para ser bem-visto Reino Unido - apesar
de nalgumas soluções de que falo no livro, em que houve más relações, ele
conseguiu manter boas relações com o aliado histórico tradicional. Tinha
péssimas relações com Roosevelt e com os americanos até ao momento em que em
1943-44 se percebeu que a base dos Açores era fundamental para os EUA e isso
permitiu um acordo entre portugueses e americanos. Salazar conseguiu de forma
notável manter a relação com os Aliados ocidentais, não tendo nunca tido
qualquer relação com os soviéticos. Em 1945, portanto, quando foi preciso fazer
o balanço das ditaduras, havia um mau que era Franco, que tinha sobre os ombros
mais de um milhão de mortos da Guerra Civil espanhola e que enviara tropas para
a URSS durante a Operação Barbarossa, em 1941-43. Franco era o mal absoluto, o
ditador sanguinário. Salazar era um ditador, sim, mas menos sanguinário, do
qual não se conheciam bem os excessos nas detenções da polícia política, logo
foi considerado como um parceiro que se podia frequentar. E o símbolo desta
atitude foi a capa da revista Time em 1946 - Salazar, o último dos ditadores.
Era um parceiro aceitável para os ocidentais. E em 1949, três anos depois,
Portugal vai ser aceite na NATO, o que foi a maior consagração para o regime.
Não foi aceite logo na ONU. Só entraria em 1955, aliás, com a Espanha. Mas na
NATO, que era fundamental no plano estratégico, foi aceite desde a fundação da
Aliança.
E com a França de
De Gaulle, depois da guerra, a relação é bastante boa?
É como na música
de Serge Gainsbourg Je t'aime moi non plus. É uma relação que não é calorosa.
De Gaulle nunca apreciou Salazar, lembrava-se da paixão sem limites da
extrema-direita francesa por Salazar e lembrava-se dos pequenas entraves que
Salazar colocou à representação gaulista mesmo se na maior parte do tempo
fechou os olhos às suas atividades. Mas nunca reconheceu o governo provisório
de De Gaulle. Este não perdoa a Salazar, como se perceberá no final da sua
vida. Em 1970, já fora da política, irá visitar Franco, mas nunca se encontrou
com Salazar. Era característico de uma atitude de desafio em relação ao chefe
do governo português, com uma ressalva muito importante e pouco conhecida: o
apoio que a França gaulista deu ao Portugal colonizador nos anos 1960 a 1968.
Na altura, a França estava envolvida na guerra da Argélia e, na ONU, Portugal e
França estiveram várias vezes do mesmo lado. Ambos defendiam a presença da mãe
pátria nas colónias. França acabou por se retirar da Argélia, mas manteve com
Portugal ligações privilegiadas e muito discretas, de apoio militar. Seja
através do envio de peritos, seja logístico, seja de armas na luta que Portugal
travava para manter o seu império colonial. França, mesmo depois de perder a
Argélia e de ter abandonado a forma tradicional de colonização em África,
manteve com Portugal ligações privilegiadas. Mas nunca houve, para minha
surpresa, qualquer tentativa de organizar um encontro entre De Gaulle e
Salazar. A partir de 1965-66, diz-se que De Gaulle estava muito preocupado com
a reação dos imigrantes portugueses que começavam a chegar em massa a França. E
achava que um encontro com Salazar seria malvisto por essa comunidade, logo não
valia a pena arranjar complicações por causa de um homem pelo qual ele não
tinha grande simpatia.
Conhece bem
Portugal. Foi embaixador em Lisboa. Os portugueses sempre sentiram estar ao
abrigo dos populismos. Mas em outubro elegemos o primeiro deputado populista de
direita. Ninguém está ao abrigo dos populismos?
Ninguém está a
salvo dos populismos porque todos temos a nossa história. Numa república laica
como França, uma parte significativa da opinião é populista. Logo, Portugal
será tanto menos poupado por este fenómeno quanto outros países europeus que
tiveram regimes que causaram sofrimento. Estou a pensar em países da Europa
central ou em Espanha, que têm partidos de extrema-direita a surgir. Estou aqui
a juntar extrema-direita e populismo, apesar de não serem a mesma coisa. O
populismo pode ser também de extrema-esquerda. Portugal não me parece ter
proteção garantida contra este fenómeno. Voltei há pouco de Lisboa, onde estive
uns dias, e é verdade que não se sente uma onda populista. Os portugueses são
pragmáticos. E o populismo tal como é concebido hoje em alguns países da Europa
não me parece adaptar-se à mentalidade portuguesa. Mas o que importa é ver que
herança deixou o regime de Salazar. Não há nada em Portugal que se assemelhe à
polémica em torno de Franco, mas há uma polémica em torno de um museu Salazar.
Significa que o fenómeno existe e que não o podemos ignorar.
Em França, a
Frente Nacional ainda tem uma herança de Vichy?
O fenómeno da
Frente Nacional não pode ser assimilado exatamente a Vichy, é muito mais amplo,
tem entre os seus apoiantes pessoas que antes eram comunistas. Mas há toda uma
herança que vem da descolonização. Há um seguimento histórico entre Vichy, o
fim da guerra, a IV República Francesa com toda a sua instabilidade e a
descolonização, sobretudo na Argélia. E Jean-Marie Le Pen foi o herdeiro - não
diria de Vichy - de uma corrente de pensamento próxima de Vichy. Nem que fosse
por acolher uma série de personalidades que tinham vivido Vichy e que tinham
defendido o regime do marechal Pétain. Em França há talvez 20% a 25% dos
eleitores que se dizem favoráveis à Frente Nacional. No caso de Vichy são
quatro ou cinco vezes menos. As pessoas sabem cada vez menos o que foi Vichy. É
muito mais ideológico, muito mais limitado. Mas existe na Frente Nacional uma
certa herança de Vichy.
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