OPINIÃO
A morte da Europa
ANTÓNIO BARRETO
22 de Dezembro de
2019, 7:18
Já havia perigo
nas costas do Mediterrâneo. Também, mais a Norte, na Germânia e, a Leste, nos
Urais. No Atlântico, instalava-se uma inquietante distância: um estranho
silêncio alternava com um ruído agoirento. Desta feita, nas praias dos mares do
Norte, a Europa morreu de vez.
A má notícia
chegou cem anos depois de ingleses e americanos terem salvado uma Europa
exangue e setenta anos após uma segunda ressurreição da Europa, novamente às
mãos de americanos e ingleses. À terceira, perante a indiferença dolosa da
América, é a Grã-Bretanha que dá o golpe de misericórdia. A sua saída da Europa
tem o sabor do absurdo e o ar da tragédia. E tudo isto aconteceu perante o ar
aliviado de tantos europeus que estavam desejosos de ver os ingleses pelas
costas.
Evidentemente, os
principais responsáveis de todas as mortes foram sempre os Europeus. Os
nacionalistas e os imperialistas. Os revolucionários e os bolchevistas. Os
fascistas e os nazis. E outros. O que realmente muda é que, nas mortes
anteriores, houve americanos e britânicos para salvar as pratas da casa. E as
paredes. Desta vez, é pior. Os europeus destruíram. Os americanos ajudaram. Os
britânicos confirmaram e vieram dizer a todos que é possível, que ainda pode
ser pior.
A Europa perdeu a
batalha das nações, sem criar um substituto que não seja a vacuidade do
cosmopolitismo global. Perdeu as batalhas da tecnologia, da ciência e da
cultura. É hoje raro, algures no mundo, reconhecer traços sólidos da cultura
europeia, a não ser o património histórico dentro de portas. Até no continente
europeu, marcas, símbolos e valores ascendentes são americanos, islâmicos,
africanos e asiáticos. A Europa perdeu a batalha da defesa: se tiver de se
defender, depende de outros, de americanos em particular. Desde que eles
estejam dispostos, o que é cada vez menos verdade. Talvez a Europa seja ainda
um farol na justiça, nos direitos humanos e na protecção social. Nem sempre.
Mas talvez. Só que, para isso, é necessário ter riqueza, instituições, democracia,
consensos, defesa e segurança. O que vai faltando… Os europeus sabem gastar e
distribuir. Mas sabem cada vez menos criar, poupar, consolidar e desenvolver.
Sem estes, aqueles não são possíveis.
É destes momentos
que se faz também a história: parece que tudo conduz ao erro, os homens estão
fechados num círculo de fogo e não sabem como sair. Em frente ao desastre,
ninguém sabe ou quer evitá-lo! Perdeu a Europa, perdeu a Grã-Bretanha, talvez
tenha perdido o mundo.
Faremos este luto
durante muitos anos. A Europa perdeu o seu mais eficiente e bem equipado
exército, as suas mais formidáveis universidades, os seus campos mais
equilibrados e preservados, o seu mais criativo sistema financeiro e a sua
cultura mais universal. O pior é que muitos europeus ficaram felizes com essas
perdas!
Esta desastrada
aventura apenas começou. De Norte e do Sul, do Oeste e do Leste, virão mais
notícias, perturbação e fractura. Apesar de tudo, das derrotas, retiram-se
lições. Desta, também.
Ficámos a saber
que é possível sair pacifica e democraticamente da Europa. Que outros poderão
seguir um dia. Que talvez seja possível consagrar o separatismo pacífico e
democrático, na Escócia ou na Catalunha. Que talvez seja necessário rever a paz
na Irlanda. Que teremos de estar preparados para os sinais de fogo da Itália,
da Turquia, da Hungria e da Polónia. Temos de estar preparados para uma Europa
inquieta, violenta ou vulnerável, como já quase ninguém a viu. Foram mais de
setenta anos em que, sem dramas, os Europeus tiveram a impressão de que o
futuro só continha boas notícias. Sete décadas de paz, em que os piores factos
de violência, de Belfast a Bilbao, de Belgrado e Sarajevo, foram excepção e
foram sendo resolvidos. Anos durante os quais a maior catástrofe ocorrida, a
construção do Muro de Berlim, chegou a um termo pacífico. Longos anos durante
os quais todos os vestígios de ditadura foram desaparecendo. Nunca a Europa
tinha vivido tal! Em paz. Em liberdade, de Lisboa a Helsínquia e de Madrid a
Bucareste.
Ficámos a saber
que não há só nacionalistas de extrema-direita, reaccionários e fascistas.
Também há nacionalistas de esquerda e comunistas. Também há nacionalistas
democráticos, conservadores e liberais. Ficámos a saber que há socialistas,
social-democratas e trabalhistas que não querem ou já não se interessam pela
Europa. E que votar contra a Europa já não é o próprio dos extremos, dos
fascistas e dos comunistas. Ficámos a saber que a virtude não está toda do lado
da Europa, do cosmopolitismo e da globalização. Ficámos a saber que as
liberdades têm uma geografia, que a democracia tanto pode existir no
cosmopolitismo europeu como nos Estados nacionais e que o racismo e a xenofobia
não são exclusivos da direita e das nações, também são crenças das esquerdas e
das federações. Também ficámos a saber que o desejo de controlar as migrações e
de orientar as políticas sociais não é próprio dos fascismos e da
extrema-direita, é uma das mais legítimas aspirações de qualquer povo.
Poderia pensar-se
que estas hipóteses, agora confirmadas, enriquecem o debate e abrem
perspectivas de novas escolhas para a Europa! Mas não. O problema é que todas
estas hipóteses e alternativas, democráticas ou não, são contra a Europa,
apesar da Europa e fora da Europa!
Ganhou sentido o
cartaz de uma manifestação, há alguns anos, em Madrid: “Os nossos sonhos não
cabem nas vossas urnas”! Ficámos a saber que a Europa estabelecida, a Europa
dos Conselhos e do Parlamento, a Europa da Comissão e das Políticas comuns, já
não é capaz de perceber o que querem os povos. E temos a consciência, agora, de
que, sem capacidade para se auto-regenerar, a Europa abrirá as portas aos
realmente anti-europeus e anti-democráticos, de esquerda e de direita. Do
Oriente e do Ocidente. Nacionalistas ou não.
Gradualmente, a
Europa perde os seus traços antigos: a cultura clássica helénica, o
Cristianismo, o espírito do Renascimento e o iluminismo. Em troca, vai
recebendo o poderio da cultura de massas americana, o irredentismo islâmico e o
multiculturalismo afro-asiático. O pior é que, com tudo o que perde, a Europa
também pode perder a sua diversidade nacional, a democracia e as liberdades.
Sociólogo
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