O turismo e as
cidades, entre a salvação e a vida selvagem
O turismo tomou
definitivamente Portugal na década que agora termina. Conhecemos a economia de
partilha e fomos “invadidos” por alojamentos locais. As cidades
requalificaram-se e ganharam glamour. Mas os preços dispararam e nunca se ouviu
tanto a palavra “despejo”. Porto e Lisboa transformaram-se. E o que significa
isso para quem habita lá?
João Pedro Pincha
e Mariana Correia Pinto 26 de Dezembro de 2019, 6:13
A década cumpria
os seus primeiros cinco anos e o turismo, já palavra forte no dicionário das
cidades, ganhava dimensão. Em 2015, Portugal ultrapassava a barreira dos 10
milhões de hóspedes estrangeiros. Lisboa e Porto confirmavam-se como destinos
turísticos de cobiça internacional. Mas para isso, e por causa disso,
enfrentavam uma revolução. Com ganhos e danos.
O turismo não é
tema novo no país — mas a dimensão atingida sim. O boom, diz a investigadora
Célia Ferreira, aconteceu nesta década e trouxe novos desafios económicos,
políticos e sociais. É uma história cheia de ses — e quase sempre com a mesma
adenda: é preciso manter o equilíbrio. Turismo é bom? Se não for excessivo.
Investimento é positivo? Se for pensado também no bem-estar dos moradores.
Novos negócios trazem benefícios? Se souberem manter a sensatez. “É sempre uma
moeda de duas faces”, aponta Célia Ferreira.
Em Portugal, um
alinhamento de acontecimentos potenciou o país como destino apetecível. Por um
lado, mantinha-se mais barato em relação a outros Estados da Europa, com a
consolidação das companhias aéreas low cost e o nascimento dos alojamentos
locais. Por outro, era ainda geografia segura, num continente onde os atentados
terroristas instalavam o medo. A Norte ou a Sul, estava fertilizado o terreno
para uma metamorfose.
“A turistificação
de Lisboa ainda pode crescer”, escrevia o PÚBLICO no Verão de 2014. A capital
já ganhara inúmeros prémios turísticos e os estrangeiros calcorreavam
encantados as ruelas de Alfama e Mouraria, onde os prédios em obras se
multiplicavam e novos negócios começavam a surgir. No Porto, caminhava-se nos
mesmos trilhos: os prémios de melhor destino europeu acumulavam-se, a
visibilidade externa crescia, a cara do burgo ia mudando. Nas duas cidades, o
turismo ainda haveria de crescer muito nos anos seguintes, mas o decénio
termina agora com alguns sinais de estagnação e diminuição da procura.
Nos últimos dez
anos, Lisboa e Porto conheceram fenómenos novos e contraditórios. O turismo foi
a grande alavanca para saírem da depressão económica em que se encontravam -
mas acabou por ser co-responsável pela saída forçada de centenas de habitantes.
Começou a década como tábua salvífica, termina quase com estatuto de doença.
Entre um e outro
extremo, que polarizaram as opiniões de muitos, algo aconteceu. Em 2011, na
Estratégia de Reabilitação Urbana de Lisboa, o então vereador do Urbanismo,
Manuel Salgado, escrevia o óbvio: “Verifica-se que a degradação da cidade se
agrava, o número de edifícios e fracções devolutas não diminui. Toda a cidade
consolidada carece de conservação ou reabilitação.” A receita da câmara para
dar a volta ao texto estava nesse documento: “aligeirar os mecanismos do
controlo prévio das operações urbanísticas”, “simplificação e transparência das
regras urbanísticas”, “estender os incentivos fiscais a todas as obras de
conservação e reabilitação”.
Aprovada a
estratégia em 2011 e um novo Plano Director Municipal em 2012, os seus efeitos
demoravam a sentir-se. “Houve uma décalage entre a tomada da medida e a sua
efectivação”, analisa Paula Marques, actual vereadora da Habitação e
Desenvolvimento Local. “Vínhamos de um período de crise, com uma grande falta
de investimento em reabilitação e houve uma necessidade de promover políticas
de contraciclo.”
O Porto de 2010
vinha projectado de uma década de inúmeras mutações - a capital europeia da
cultura (2001), a expansão do aeroporto Francisco Sá Carneiro e a aterragem da
Ryanair (2005), a ligação de metro entre aeroporto e centro (2006) e a
deslocação da movida para a baixa (2007) tinham oferecido vida nova à cidade. E
2008 seria um ano simbólico: a figura jurídica do Alojamento Local (AL) acabara
de ser criada e abrira uma caixa de Pandora nas duas cidades. No início do
decénio, em 2010, havia no Porto 21 fogos inscritos no Registo Nacional de
Alojamento Local e em 2018 (último ano com dados fechados) eram 2586: uma
subida de 12.314 por cento. E o cenário era semelhante em Lisboa, com 61 AL em
2010 e 7006 em 2018: um crescimento de 11.485 por cento.
Sónia Alves,
investigadora em habitação e planeamento urbano na Universidade de Cambridge,
que tem estudado as mudanças de Lisboa e Porto, recorda o caminho feito no
mercado imobiliário. Entre os anos 80 e até ao colapso da bolha imobiliária e
financeira, em 2008, o “congelamento das rendas desencorajou o investimento dos
proprietários na manutenção dos seus edifícios” e as “políticas de apoio à
construção e compra de nova habitação favoreceram “processos de suburbanização
e urban sprawl [alastramento urbano]”. De seguida, a chamada Lei Cristas e o
actual momento de liberalização das rendas facilitou os “despejos de antigos
inquilinos e actividades económicas pouco lucrativas”, tornando-se propícia à
“requalificação conduzida para a abertura de actividades económicas
relacionadas com o turismo”.
“Na última década
não houve dinheiro para habitação, mas houve para o turismo”, comenta Sónia
Alves. Num artigo publicado em 2017, em que parte de uma análise do centro
histórico do Porto, argumenta que a gentrificação portuguesa não cumpre os
requisitos para se poder considerar uma gentrificação “normal”, em que pessoas
de uma classe social mais baixa são progressivamente forçadas a sair de um
local que é depois ocupado por pessoas de uma classe social mais alta. Em
Portugal, “a gentrificação do centro histórico é comercial e não demográfica”.
Por outras
palavras: não há uma substituição de uns moradores por outros, eles
simplesmente deixam de existir em certas zonas, onde os prédios são
transformados em hotéis ou AL e os negócios põem “o seu foco nas pessoas que
visitam”.
“O que será da cidade quando a vaga de turismo
acabar?”
O congelamento
das rendas teve um “efeito terrível”, indica a investigadora, referindo a
chegada da “ideia de competitividade económica” aos discursos políticos no
final dos anos 1990. Resultado? “Um planeamento urbano muito à volta desta
ideia”. Mas com câmaras, Estado e até senhorios descapitalizados, quem iria
investir?
“A reabilitação
urbana direccionou-se a um segmento alto ou médio alto ou foi para alojamento
local”, diz Paula Marques. E a Câmara de Lisboa foi em parte responsável, ao
alienar património municipal que acabou no sector turístico ou da habitação de
luxo. Fê-lo por precisar muito de liquidez e “funcionou num primeiro momento”,
sustenta a vereadora, mas “houve uma perversão da política de incentivo à
reabilitação urbana” e a autarquia devia ter actuado “no sentido inverso”,
admite.
No Porto, foi um
estudo encomendado pela própria autarquia à Universidade Católica quem pôs a
descoberto um dado que soava empírico a quem passeava na cidade: o turismo
retirou tecto a muita gente. No centro histórico, mais de metade dos AL (57%)
foram instalados em casas ocupadas, o que faz supor a necessidade de aí se ter
feito um despejo ou cessado contratos de arrendamento. O executivo de Rui
Moreira preferia destacar, no entanto, o outro lado da história: a reabilitação
urbana fez-se atrelada à oportunidade de negócio aberta pelo AL e este foi um
“contributo extraordinário” para a recuperação da cidade.
Em Julho, o AL
seria suspenso temporariamente, até o regulamento estar fechado, mas apenas nos
locais onde havia mais casas para turistas do que para moradores e com a achega
de que “medidas proibicionistas” não seriam bem-vindas. Em Lisboa, o
regulamento está em prática desde Novembro, com zonas de contenção absoluta e
outras de contenção relativa.
O difícil
equilíbrio nesta matéria é assumido pelo vereador da habitação da Câmara do
Porto. Mas, feitas as contas, o balanço entre perdas e ganhos é “positivo”,
defende Fernando Paulo: “O centro histórico há dez ou 15 anos estava despovoado
e as pessoas tinham medo de morar lá.” Assumindo que “territórios sem
habitantes não são cidades”, acredita que o papel da autarquia deve passar por
incentivar ou travar o turismo, consoante o momento.
Até agora, no
entanto, a política tem sido de livre trânsito ao mercado. “Foi uma opção
política não intervir no assunto”, tal como foi política a aposta na “promoção
da cidade como marca”, refere Célia Ferreira, actualmente trabalhadora no
Instituto Nacional de Estatística (INE) e antes na própria Câmara do Porto.
Essa jogada no turismo leva frequentemente a um “esquecimento” dos residentes e
algum “confronto” entre quem está de passagem e quem vive ou trabalha nas
cidades. “Isto é cada vez mais notório”, aponta, referindo duas certezas que
são o resumo do desafio colocado a quem define políticas: por um lado, “ninguém
quer o centro de há 20 anos”, por outro, “ninguém quer os efeitos negativos”
arrastados na maré deste sucesso.
Milhares de
despejos
O que restará da
identidade de Lisboa e Porto depois da revolução turística? E, se a construção
estereotipada se sobrepor à essência, os turistas continuarão a visitar-nos? As
perguntas têm animado debates, motivado estudos e protagonizado confrontos
políticos. Com prognósticos reservados. Para já, os números mostram algum
abrandamento no AL e uma ligeira inversão no declínio populacional (em Lisboa
desde 2015, no Porto desde 2016). Mas os dados dos habitantes, retirados do
INE, devem ser lidos com “cautela”, aconselha Célia Ferreira: “São apenas
estimativas demográficas, só saberemos a sua validade nos próximos censos, em
2021.”
O reverso da
medalha da entrada nas rotas turísticas e económicas mundiais foi também um
aumento generalizado dos preços da habitação. No Porto, a renda média de uma
casa de apenas 50 metros quadrados está nos 500 euros, em Lisboa nos 690,
mostram dados da consultora Confidencial Imobiliário. Atrelado a isto, surgiram
muitas vezes os despejos. Entre 2013 e 2018, de acordo com dados do Balcão
Nacional do Arrendamento, concretizaram-se 9324 em todo o país, com destaque
para Lisboa e Porto. E as tentativas de despejo foram quase três vezes mais
(24.667), o que faz adivinhar casos de bullying imobiliário, nova expressão da
década com muitas vítimas.
O fenómeno da
pressão imobiliária é comum a outras cidades do mundo e levou à “criação de
redes de resistência e resiliência”, aponta a vereadora da autarquia lisboeta,
convencida de que a capital está agora a escolher o caminho certo: “Era
desejável que não estivéssemos a passar por esta crise e espero que isto nos
ensine que o paradigma tem de ser outro.” Seria importante, por exemplo, passar
a fazer um “urbanismo participado.”
Para a
investigadora Sónia Alves, ainda está por fazer uma reflexão essencial: “Temos
políticas de planeamento urbano e habitação para quê?”, questiona. “Temos de
pensar nos modelos que queremos para a cidade. Isso tem de ser prioritário para
a definição de políticas.”
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