quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

O turismo e as cidades, entre a salvação e a vida selvagem



O turismo e as cidades, entre a salvação e a vida selvagem

O turismo tomou definitivamente Portugal na década que agora termina. Conhecemos a economia de partilha e fomos “invadidos” por alojamentos locais. As cidades requalificaram-se e ganharam glamour. Mas os preços dispararam e nunca se ouviu tanto a palavra “despejo”. Porto e Lisboa transformaram-se. E o que significa isso para quem habita lá?

João Pedro Pincha e Mariana Correia Pinto 26 de Dezembro de 2019, 6:13

A década cumpria os seus primeiros cinco anos e o turismo, já palavra forte no dicionário das cidades, ganhava dimensão. Em 2015, Portugal ultrapassava a barreira dos 10 milhões de hóspedes estrangeiros. Lisboa e Porto confirmavam-se como destinos turísticos de cobiça internacional. Mas para isso, e por causa disso, enfrentavam uma revolução. Com ganhos e danos.

O turismo não é tema novo no país — mas a dimensão atingida sim. O boom, diz a investigadora Célia Ferreira, aconteceu nesta década e trouxe novos desafios económicos, políticos e sociais. É uma história cheia de ses — e quase sempre com a mesma adenda: é preciso manter o equilíbrio. Turismo é bom? Se não for excessivo. Investimento é positivo? Se for pensado também no bem-estar dos moradores. Novos negócios trazem benefícios? Se souberem manter a sensatez. “É sempre uma moeda de duas faces”, aponta Célia Ferreira.

Em Portugal, um alinhamento de acontecimentos potenciou o país como destino apetecível. Por um lado, mantinha-se mais barato em relação a outros Estados da Europa, com a consolidação das companhias aéreas low cost e o nascimento dos alojamentos locais. Por outro, era ainda geografia segura, num continente onde os atentados terroristas instalavam o medo. A Norte ou a Sul, estava fertilizado o terreno para uma metamorfose.

“A turistificação de Lisboa ainda pode crescer”, escrevia o PÚBLICO no Verão de 2014. A capital já ganhara inúmeros prémios turísticos e os estrangeiros calcorreavam encantados as ruelas de Alfama e Mouraria, onde os prédios em obras se multiplicavam e novos negócios começavam a surgir. No Porto, caminhava-se nos mesmos trilhos: os prémios de melhor destino europeu acumulavam-se, a visibilidade externa crescia, a cara do burgo ia mudando. Nas duas cidades, o turismo ainda haveria de crescer muito nos anos seguintes, mas o decénio termina agora com alguns sinais de estagnação e diminuição da procura.

Nos últimos dez anos, Lisboa e Porto conheceram fenómenos novos e contraditórios. O turismo foi a grande alavanca para saírem da depressão económica em que se encontravam - mas acabou por ser co-responsável pela saída forçada de centenas de habitantes. Começou a década como tábua salvífica, termina quase com estatuto de doença.

Entre um e outro extremo, que polarizaram as opiniões de muitos, algo aconteceu. Em 2011, na Estratégia de Reabilitação Urbana de Lisboa, o então vereador do Urbanismo, Manuel Salgado, escrevia o óbvio: “Verifica-se que a degradação da cidade se agrava, o número de edifícios e fracções devolutas não diminui. Toda a cidade consolidada carece de conservação ou reabilitação.” A receita da câmara para dar a volta ao texto estava nesse documento: “aligeirar os mecanismos do controlo prévio das operações urbanísticas”, “simplificação e transparência das regras urbanísticas”, “estender os incentivos fiscais a todas as obras de conservação e reabilitação”.

Aprovada a estratégia em 2011 e um novo Plano Director Municipal em 2012, os seus efeitos demoravam a sentir-se. “Houve uma décalage entre a tomada da medida e a sua efectivação”, analisa Paula Marques, actual vereadora da Habitação e Desenvolvimento Local. “Vínhamos de um período de crise, com uma grande falta de investimento em reabilitação e houve uma necessidade de promover políticas de contraciclo.”

O Porto de 2010 vinha projectado de uma década de inúmeras mutações - a capital europeia da cultura (2001), a expansão do aeroporto Francisco Sá Carneiro e a aterragem da Ryanair (2005), a ligação de metro entre aeroporto e centro (2006) e a deslocação da movida para a baixa (2007) tinham oferecido vida nova à cidade. E 2008 seria um ano simbólico: a figura jurídica do Alojamento Local (AL) acabara de ser criada e abrira uma caixa de Pandora nas duas cidades. No início do decénio, em 2010, havia no Porto 21 fogos inscritos no Registo Nacional de Alojamento Local e em 2018 (último ano com dados fechados) eram 2586: uma subida de 12.314 por cento. E o cenário era semelhante em Lisboa, com 61 AL em 2010 e 7006 em 2018: um crescimento de 11.485 por cento.

Sónia Alves, investigadora em habitação e planeamento urbano na Universidade de Cambridge, que tem estudado as mudanças de Lisboa e Porto, recorda o caminho feito no mercado imobiliário. Entre os anos 80 e até ao colapso da bolha imobiliária e financeira, em 2008, o “congelamento das rendas desencorajou o investimento dos proprietários na manutenção dos seus edifícios” e as “políticas de apoio à construção e compra de nova habitação favoreceram “processos de suburbanização e urban sprawl [alastramento urbano]”. De seguida, a chamada Lei Cristas e o actual momento de liberalização das rendas facilitou os “despejos de antigos inquilinos e actividades económicas pouco lucrativas”, tornando-se propícia à “requalificação conduzida para a abertura de actividades económicas relacionadas com o turismo”.

“Na última década não houve dinheiro para habitação, mas houve para o turismo”, comenta Sónia Alves. Num artigo publicado em 2017, em que parte de uma análise do centro histórico do Porto, argumenta que a gentrificação portuguesa não cumpre os requisitos para se poder considerar uma gentrificação “normal”, em que pessoas de uma classe social mais baixa são progressivamente forçadas a sair de um local que é depois ocupado por pessoas de uma classe social mais alta. Em Portugal, “a gentrificação do centro histórico é comercial e não demográfica”.

Por outras palavras: não há uma substituição de uns moradores por outros, eles simplesmente deixam de existir em certas zonas, onde os prédios são transformados em hotéis ou AL e os negócios põem “o seu foco nas pessoas que visitam”.

 “O que será da cidade quando a vaga de turismo acabar?”
O congelamento das rendas teve um “efeito terrível”, indica a investigadora, referindo a chegada da “ideia de competitividade económica” aos discursos políticos no final dos anos 1990. Resultado? “Um planeamento urbano muito à volta desta ideia”. Mas com câmaras, Estado e até senhorios descapitalizados, quem iria investir?

“A reabilitação urbana direccionou-se a um segmento alto ou médio alto ou foi para alojamento local”, diz Paula Marques. E a Câmara de Lisboa foi em parte responsável, ao alienar património municipal que acabou no sector turístico ou da habitação de luxo. Fê-lo por precisar muito de liquidez e “funcionou num primeiro momento”, sustenta a vereadora, mas “houve uma perversão da política de incentivo à reabilitação urbana” e a autarquia devia ter actuado “no sentido inverso”, admite.

No Porto, foi um estudo encomendado pela própria autarquia à Universidade Católica quem pôs a descoberto um dado que soava empírico a quem passeava na cidade: o turismo retirou tecto a muita gente. No centro histórico, mais de metade dos AL (57%) foram instalados em casas ocupadas, o que faz supor a necessidade de aí se ter feito um despejo ou cessado contratos de arrendamento. O executivo de Rui Moreira preferia destacar, no entanto, o outro lado da história: a reabilitação urbana fez-se atrelada à oportunidade de negócio aberta pelo AL e este foi um “contributo extraordinário” para a recuperação da cidade.

Em Julho, o AL seria suspenso temporariamente, até o regulamento estar fechado, mas apenas nos locais onde havia mais casas para turistas do que para moradores e com a achega de que “medidas proibicionistas” não seriam bem-vindas. Em Lisboa, o regulamento está em prática desde Novembro, com zonas de contenção absoluta e outras de contenção relativa.

O difícil equilíbrio nesta matéria é assumido pelo vereador da habitação da Câmara do Porto. Mas, feitas as contas, o balanço entre perdas e ganhos é “positivo”, defende Fernando Paulo: “O centro histórico há dez ou 15 anos estava despovoado e as pessoas tinham medo de morar lá.” Assumindo que “territórios sem habitantes não são cidades”, acredita que o papel da autarquia deve passar por incentivar ou travar o turismo, consoante o momento.

Até agora, no entanto, a política tem sido de livre trânsito ao mercado. “Foi uma opção política não intervir no assunto”, tal como foi política a aposta na “promoção da cidade como marca”, refere Célia Ferreira, actualmente trabalhadora no Instituto Nacional de Estatística (INE) e antes na própria Câmara do Porto. Essa jogada no turismo leva frequentemente a um “esquecimento” dos residentes e algum “confronto” entre quem está de passagem e quem vive ou trabalha nas cidades. “Isto é cada vez mais notório”, aponta, referindo duas certezas que são o resumo do desafio colocado a quem define políticas: por um lado, “ninguém quer o centro de há 20 anos”, por outro, “ninguém quer os efeitos negativos” arrastados na maré deste sucesso.

Milhares de despejos
O que restará da identidade de Lisboa e Porto depois da revolução turística? E, se a construção estereotipada se sobrepor à essência, os turistas continuarão a visitar-nos? As perguntas têm animado debates, motivado estudos e protagonizado confrontos políticos. Com prognósticos reservados. Para já, os números mostram algum abrandamento no AL e uma ligeira inversão no declínio populacional (em Lisboa desde 2015, no Porto desde 2016). Mas os dados dos habitantes, retirados do INE, devem ser lidos com “cautela”, aconselha Célia Ferreira: “São apenas estimativas demográficas, só saberemos a sua validade nos próximos censos, em 2021.”

O reverso da medalha da entrada nas rotas turísticas e económicas mundiais foi também um aumento generalizado dos preços da habitação. No Porto, a renda média de uma casa de apenas 50 metros quadrados está nos 500 euros, em Lisboa nos 690, mostram dados da consultora Confidencial Imobiliário. Atrelado a isto, surgiram muitas vezes os despejos. Entre 2013 e 2018, de acordo com dados do Balcão Nacional do Arrendamento, concretizaram-se 9324 em todo o país, com destaque para Lisboa e Porto. E as tentativas de despejo foram quase três vezes mais (24.667), o que faz adivinhar casos de bullying imobiliário, nova expressão da década com muitas vítimas.

O fenómeno da pressão imobiliária é comum a outras cidades do mundo e levou à “criação de redes de resistência e resiliência”, aponta a vereadora da autarquia lisboeta, convencida de que a capital está agora a escolher o caminho certo: “Era desejável que não estivéssemos a passar por esta crise e espero que isto nos ensine que o paradigma tem de ser outro.” Seria importante, por exemplo, passar a fazer um “urbanismo participado.”

Para a investigadora Sónia Alves, ainda está por fazer uma reflexão essencial: “Temos políticas de planeamento urbano e habitação para quê?”, questiona. “Temos de pensar nos modelos que queremos para a cidade. Isso tem de ser prioritário para a definição de políticas.”

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