ANÁLISE
As “sardinhas”
desafiam Salvini
O movimento das
“sardinhas” demorou um mês a tornar-se num facto político nacional em Itália. O
paradoxo é que em vez de contestarem o poder, atacam a oposição, que é a Liga
de Salvini.
JORGE ALMEIDA
FERNANDES
21 de Dezembro de
2019, 6:30
Na Europa de
hoje, as ideias rodam à velocidade das modas. Volto a visitar o laboratório
italiano, o que mais aceleradamente inova. O facto de 48% dos italianos
declararem desejar “um homem forte no poder”, que não tenha de se preocupar com
eleições e parlamentos, criou algum alarme. O fenómeno não é exclusivo da
Itália e faz despertar velhos fantasmas.
Façamos, no
entanto, um exercício de memória. Há pouco mais de dois anos, em Março de 2017,
o Movimento 5 Estrelas (M5S) ganhou as eleições italianas. Nessa altura era
moda jurar pela democracia directa e por Rousseau. Os seus mentores, Beppe
Grillo e Davide Casaleggio, anunciavam o advento da nova era em que os cidadãos
“em rede” de tudo decidiriam. “A democracia representativa – a política
entregue a representantes – está gradualmente a perder significado”, dizia
Casaleggio ao Washington Post.
O Parlamento
continuaria a funcionar durante um período de transição, em que os cidadãos
elaborarão projectos de lei que submeteriam a referendo. Dizia Grillo que quem
é capaz de gerir a economia doméstica será capaz de decidir o orçamento. Já
Lenine tinha dito algo parecido sobre uma célebre cozinheira (em O Estado e a
Revolução).
Para alcançar a
maioria absoluta e governar, o M5S aliou-se com a Liga, de Matteo Salvini. Era
o primeiro governo populista na Europa Ocidental e, precisamente, uma aliança
entre populismos, de esquerda e direita. O resultado é conhecido. Subiu a
cotação popular da Liga, desceu a do M5S. Salvini vai tornar-se no modelo do
“homem forte”, enquanto os chamados “grillini” se convertiam ao mais radical
parlamentarismo.
Hoje, governa uma frágil aliança entre o M5S e o Partido
Democrático (PD, centro-esquerda). A Liga continua a liderar as sondagens.
Aposta nas eleições regionais de Janeiro, designadamente na Emília-Romanha
(capital Bolonha), antigo “baluarte vermelho”. Salvini quer provocar eleições
Hoje, governa uma
frágil aliança entre o M5S e o Partido Democrático (PD, centro-esquerda). A
Liga continua a liderar as sondagens. Aposta nas eleições regionais de Janeiro,
designadamente na Emília-Romanha (capital Bolonha), antigo “baluarte vermelho”.
Salvini quer provocar eleições. Calcula que se “libertar Bolonha da esquerda”,
a coligação governamental rebentará.
Higiene da
linguagem
Passemos a outro
tópico. Beppe Grillo está arrependido dos seus excessos de linguagem e do
vaffanculo com que durante anos bombardeou os adversários e o “sistema”.
Publicou esta semana um post no seu blogue sobre o movimento das “sardinhas”, a
que fiz alusão na crónica anterior: “As sardinhas são um movimento
higiénico-sanitário”. Porquê? “Apenas reclamam a higiene da palavra. Reclamam
uma vigorosa convalescença das línguas e das mentes”, em contraponto com as
“ameaçadoras fanfarronadas de um chefe de bando.” É uma referência a Salvini.
Terá chegado à
Itália a moda da linguagem “educada”? Estarão os italianos cansados da
grosseria? Grillo confessa: “Também nós no passado exagerámos um bocado. Mas
agora já não o fazemos.” E faz votos de que as “sardinhas continuem a
desinfectar”.
As “sardinhas”
nasceram em Bolonha no dia 14 de Novembro. Foi inicialmente uma espécie de
flash mob lançado por quatro jovens para contestar Salvini, em campanha
eleitoral na cidade. Apelavam a uma mobilização superior à da Liga, com as
pessoas “apertadas como sardinhas”. E “sem nenhuma bandeira, nenhum partido,
nenhum insulto”. Nenhum insulto a Salvini. Foi um sucesso que contagiou outras
cidades e mobilizou no sábado dezenas de milhares de pessoas em Roma. No prazo
de um mês, o movimento “tornou-se num facto político de dimensão nacional”,
resumiu o Corriere della Sera.
Recusam
transformar-se em partido. Não têm um programa. Contestam Salvini, o “homem
forte”, a Liga, o soberanismo, o racismo e a xenofobia. Têm uma identidade
vincadamente de esquerda. Cantam o hino italiano, Fratelli d’Italia, e o Bella
Ciao, da Resistência. O fascínio que imediatamente provocaram têm a ver com uma
coisa simples: a esquerda perdeu para a direita de Salvini a presença nas ruas.
Subitamente, as “sardinhas” reinventam a mobilização e reapropriam-se das
praças. Atraem especialmente os jovens.
As “sardinhas” nasceram em Bolonha a 14 de Novembro. Foi
inicialmente uma espécie de flash mob lançada por quatro jovens para contestar
Salvini. Contestam Salvini, o “homem forte”, a Liga, o soberanismo, o racismo e
a xenofobia. O fascínio que provocaram têm a ver com uma coisa simples: a
esquerda perdeu para a direita de Salvini a presença nas ruas. Subitamente, as
“sardinhas” reinventam a mobilização e reapropriam-se das praças
Observa o
correspondente do Guardian que o “estilo local” do movimento pode triunfar onde
falhou a esquerda, “incapaz de encontrar o vocabulário e as ideias para
desafiar a retórica fracturante e até violenta de personagens como Salvini e
Marine Le Pen. A ajuda está ao alcance da mão, sob a forma de um florescente
movimento de base e que se inspira no símbolo de um peixe.”
A receita é
original. Por um lado, denunciam a antipolítica, defendem os partidos, exigem
que os políticos façam política dentro das instituições e cumpram os mandatos
que assumiram. A única bandeira é a Constituição. Propõem que a violência
verbal seja equiparada à violência física. Contra o populismo, denunciam as
promessas do “pensamento simples” e defendem “a complexidade”. São “a dieta moderada”
que a Itália parece apreciar, escreve La Repubblica. Têm uma palavra de ordem
sedutora: “Antes no azeite que no ódio”. E que soa melhor em italiano: “Meglio
sott’olio che sott’odio.”
Oposição à
oposição
O paradoxo é
evidente: mobilizam-se, não contra o poder, mas contra a oposição. Será também
o seu ponto fraco, observa o politólogo Giovanni Orsina. O que os une é a
oposição a Salvini. E aqui não são originais. “Neste tempo, a política é sempre
‘contra’. O M5S era contra o establishment e o PD. A Liga contra a Europa e os
europeístas. As ‘sardinhas’ contra os soberanistas. Quando se começa a ser a
favor de qualquer coisa, os apoios caiem imediatamente, porque é difícil dizer
coisas que agradem a todos.”
Outro aparente
paradoxo é assinalado no Corriere della Sera pelo colunista Paolo Franchi: “É
um movimento animado pelos filhos (cultos) das classes médias urbanas (cultas)
que no passado foram a força propulsora do centro-esquerda italiano.” E
contestam Salvini, o líder que seduz os sectores mais modestos das mesmas
classes médias. “O seu papel foi despertar uma esquerda resignada a dar por
perdida a ‘Emilia rossa’. Em política nada é impensável.”
“Os italianos cansam-se muito rapidamente e
procuram rostos novos e posições novas”, diz Orsina. Mas não é apenas
volubilidade. O laboratório político italiano funciona em alta rotação. A
Itália inventou o eurocomunismo, as “togas vermelhas” da Operação Mãos Limpas,
o populismo mediático de Berlusconi e depois o de Beppe Grillo.
Se a Itália gosta
de ser precursora, ensina também a ser prudente: o que hoje parece avassalador
pode amanhã estar fora de moda. Tempos incertos.
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