quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

“O que será da cidade quando a vaga de turismo acabar?”



“O que será da cidade quando a vaga de turismo acabar?”

A pressão imobiliária alojou-se, muitos moradores perderam a casa. Na ilha do Beco do Paço, no Porto, todos tiveram ordem para sair. O futuro é um lugar incerto.

Mariana Correia Pinto (texto) e Paulo Pimenta (fotografia) 26 de Dezembro de 2019, 6:13

A bandeira de Portugal pendurada ao contrário poderia ser alegoria de um português orgulhoso na nação a quem a nação falhou. Mas António Santos nem reparou nisso quando fixou aquele pedaço de pano verde e vermelho numa das paredes enegrecidas pela humidade da sua minúscula casa. A mágoa ainda não lhe deu para desamores com o país, mas tem-lhe roubado horas de sono no último ano. “Somos portugueses e deixamos de conseguir pagar uma casa em Portugal”, diz entristecido. Na sua ilha, junto ao Hospital de Santo António, no Porto, todos receberam ordem para sair. Quem resiste, como ele, não tem para onde ir.

No estreito e comprido corredor da típica habitação portuense há malas velhas à chuva, móveis, bacias, sacos, cobertores, vasos. Sinais de vidas em transição. Mamadou Samba surge entre as grades da sua porta metalizada e fala pausadamente. “Querem tirar a gente à toa”, começa. Ele recusa sair. Por convicção e falta de opção. Todos os dias, caminha até à Praça da República por duas vezes para fazer as principais refeições do dia num albergue. Desempregado do seu ofício de armador de ferro e apenas com o Rendimento Social de Inserção (RSI) como rendimento, não tem como pagar uma renda de 125 euros e ter uma vida com o mínimo. E muito menos pagar um quarto na cidade de hoje, onde um arrendamento de 200 euros é um achado.

Naquela zona, integrada na União de Freguesias do Centro Histórico do Porto, alojou-se a cobiça imobiliária e despejou-se gente. Os preços da habitação subiram, várias casas deram lugar a alojamento local. Na ilha no Beco do Paço, curtíssima viela sem saída, ninguém sabe ao certo o destino daquele terreno. Mas todos culpam o turismo pela hipervalorização do solo.

António Moura Pinto, a dias de cumprir oito décadas de vida, surge à porta da casa cinco a anunciar resistência e uma longa vida no burgo. Como entre aquelas paredes: “Moro aqui há 58 anos, não vou a lado nenhum.” A evolução da antiga “cidade da lavoura”, onde chegou aos 12 anos, trouxe “coisas boas e más”, avalia. Mas sobretudo uma certeza revestida de lágrimas: “Nenhum pobre pode ter uma casa aqui.”

A sobrinha Maria da Conceição, 65 anos, é prova disso. Há uns meses, o seu contrato de arrendamento cessou e o senhorio entaipou a entrada da casa, a última da ilha. Ela vive “de favor”, entre a habitação do tio e a da filha. Trabalha há 22 anos no Colégio Luso-Inglês do Porto, mas uma cirurgia deixou-a incapaz de trabalhar há quase meio ano. Na vida entre a ilha e a casa da filha, perdeu a chegada de uma carta onde pediam a apresentação para provar a incapacidade temporária. Só percebeu que tinha perdido o apoio quando viu a conta ainda mais minguada.

Maria da Conceição recorda a cidade do início da década com alguma saudade. Talvez mais cinzenta e menos vibrante, é certo, mas com lugar para ela. “Dantes a gente arranjava uma casa, agora é tudo para turista ver”, queixa-se. Ao lado, enquanto arruma a casa de banho, no exterior da casa, o vizinho António Santos acena. O corpo foi mostrando fraqueza à custa de muitos anos como trabalhador na construção civil e o diagnóstico veio pesaroso: tinha duas hérnias, era preciso operar. Ele seguiu indicações médicas, o patrão demitiu-o.

Agora, ainda sem poder trabalhar, sobrevive com o RSI. E tenta não se deprimir. “Não penso muito no futuro. Nem quero imaginar o que acontecerá se tiver de sair daqui”, deixa sair baixinho. A conselho da junta de freguesia, vai candidatar-se a habitação social e juntar-se às mais de mil famílias em lista de espera. Se for aceite, terá dois anos e meio a três anos de espera para conseguir um tecto.

 “O turismo é bom, mas não pode valer tudo”, pede António Santos. “O Porto era uma cidade velha e daqui a uns anos vai ser uma cidade fantasma”, afirma, com uma pergunta a fazer eco na cabeça de muitos: “O que será da cidade quando a vaga de turismo acabar?”

Ainda à porta de casa, chinelos nos pés apesar dos termómetros a marcarem um digito, António Moura Pinto pede a palavra de novo. “Vivemos o tempo da pior guerra: a do dinheiro”, afirma, com divisa de quem andou na “guerra real”. E de quem viu a ditadura cair e os sonhos brotar. “O 25 de Abril foi feito para ajudar o povo. Para mim é simples: todos tinham de ter direito a um bocado de terreno e uma casa.”

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