“O que será da
cidade quando a vaga de turismo acabar?”
A pressão
imobiliária alojou-se, muitos moradores perderam a casa. Na ilha do Beco do
Paço, no Porto, todos tiveram ordem para sair. O futuro é um lugar incerto.
Mariana Correia
Pinto (texto) e Paulo Pimenta (fotografia) 26 de Dezembro de 2019, 6:13
A bandeira de
Portugal pendurada ao contrário poderia ser alegoria de um português orgulhoso
na nação a quem a nação falhou. Mas António Santos nem reparou nisso quando
fixou aquele pedaço de pano verde e vermelho numa das paredes enegrecidas pela
humidade da sua minúscula casa. A mágoa ainda não lhe deu para desamores com o
país, mas tem-lhe roubado horas de sono no último ano. “Somos portugueses e
deixamos de conseguir pagar uma casa em Portugal”, diz entristecido. Na sua
ilha, junto ao Hospital de Santo António, no Porto, todos receberam ordem para
sair. Quem resiste, como ele, não tem para onde ir.
No estreito e
comprido corredor da típica habitação portuense há malas velhas à chuva,
móveis, bacias, sacos, cobertores, vasos. Sinais de vidas em transição. Mamadou
Samba surge entre as grades da sua porta metalizada e fala pausadamente.
“Querem tirar a gente à toa”, começa. Ele recusa sair. Por convicção e falta de
opção. Todos os dias, caminha até à Praça da República por duas vezes para
fazer as principais refeições do dia num albergue. Desempregado do seu ofício
de armador de ferro e apenas com o Rendimento Social de Inserção (RSI) como
rendimento, não tem como pagar uma renda de 125 euros e ter uma vida com o
mínimo. E muito menos pagar um quarto na cidade de hoje, onde um arrendamento
de 200 euros é um achado.
Naquela zona,
integrada na União de Freguesias do Centro Histórico do Porto, alojou-se a
cobiça imobiliária e despejou-se gente. Os preços da habitação subiram, várias
casas deram lugar a alojamento local. Na ilha no Beco do Paço, curtíssima viela
sem saída, ninguém sabe ao certo o destino daquele terreno. Mas todos culpam o
turismo pela hipervalorização do solo.
António Moura
Pinto, a dias de cumprir oito décadas de vida, surge à porta da casa cinco a
anunciar resistência e uma longa vida no burgo. Como entre aquelas paredes:
“Moro aqui há 58 anos, não vou a lado nenhum.” A evolução da antiga “cidade da
lavoura”, onde chegou aos 12 anos, trouxe “coisas boas e más”, avalia. Mas sobretudo
uma certeza revestida de lágrimas: “Nenhum pobre pode ter uma casa aqui.”
A sobrinha Maria
da Conceição, 65 anos, é prova disso. Há uns meses, o seu contrato de
arrendamento cessou e o senhorio entaipou a entrada da casa, a última da ilha.
Ela vive “de favor”, entre a habitação do tio e a da filha. Trabalha há 22 anos
no Colégio Luso-Inglês do Porto, mas uma cirurgia deixou-a incapaz de trabalhar
há quase meio ano. Na vida entre a ilha e a casa da filha, perdeu a chegada de
uma carta onde pediam a apresentação para provar a incapacidade temporária. Só
percebeu que tinha perdido o apoio quando viu a conta ainda mais minguada.
Maria da
Conceição recorda a cidade do início da década com alguma saudade. Talvez mais
cinzenta e menos vibrante, é certo, mas com lugar para ela. “Dantes a gente
arranjava uma casa, agora é tudo para turista ver”, queixa-se. Ao lado,
enquanto arruma a casa de banho, no exterior da casa, o vizinho António Santos
acena. O corpo foi mostrando fraqueza à custa de muitos anos como trabalhador
na construção civil e o diagnóstico veio pesaroso: tinha duas hérnias, era
preciso operar. Ele seguiu indicações médicas, o patrão demitiu-o.
Agora, ainda sem
poder trabalhar, sobrevive com o RSI. E tenta não se deprimir. “Não penso muito
no futuro. Nem quero imaginar o que acontecerá se tiver de sair daqui”, deixa
sair baixinho. A conselho da junta de freguesia, vai candidatar-se a habitação
social e juntar-se às mais de mil famílias em lista de espera. Se for aceite,
terá dois anos e meio a três anos de espera para conseguir um tecto.
“O turismo é bom, mas não pode valer tudo”,
pede António Santos. “O Porto era uma cidade velha e daqui a uns anos vai ser
uma cidade fantasma”, afirma, com uma pergunta a fazer eco na cabeça de muitos:
“O que será da cidade quando a vaga de turismo acabar?”
Ainda à porta de
casa, chinelos nos pés apesar dos termómetros a marcarem um digito, António
Moura Pinto pede a palavra de novo. “Vivemos o tempo da pior guerra: a do
dinheiro”, afirma, com divisa de quem andou na “guerra real”. E de quem viu a
ditadura cair e os sonhos brotar. “O 25 de Abril foi feito para ajudar o povo.
Para mim é simples: todos tinham de ter direito a um bocado de terreno e uma
casa.”
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