terça-feira, 24 de dezembro de 2019

David Wallace-Wells: “O século XXI será definido pelas alterações climáticas” Não interessa onde se esteja, quão rico se seja, ou o país em que se viva, a vida no planeta irá ser mudada e definida pelas perturbações do clima



ENTREVISTA
David Wallace-Wells: “O século XXI será definido pelas alterações climáticas” Não interessa onde se esteja, quão rico se seja, ou o país em que se viva, a vida no planeta irá ser mudada e definida pelas perturbações do clima
Teresa Sofia Serafim

No livro A Terra Inabitável, o jornalista norte-americano David Wallace-Wells faz um alerta para a acção climática imediata e deixa o apelo: se o planeta continuar com o mesmo rumo, o futuro pode ser bem mais difícil do que pensamos.

Quanto mais investigava sobre as projecções do clima para o futuro, mais assustado ficava o jornalista norte-americano David Wallace-Wells. Decidiu então passar essa visão para o livro A Terra Inabitável (publicado este ano em Portugal pela editora Lua de Papel e livro do ano escolhido pelo Ípsilon​). Em entrevista ao PÚBLICO, o também editor e colunista da revista New York destaca a importância da mobilização política na resolução da crise climática. Também assume que foi ao escrever este livro que percebeu mesmo a influência que o clima tem em todas as partes da nossa vida. “Para alguém como eu que passou toda a sua vida na cidade, tem sido uma revelação perceber quão dependentes estamos das forças da natureza.”

Começa o seu livro com a frase: “É pior, muito pior do que pensa.” Acha que as pessoas ainda não perceberam as implicações das alterações climáticas?
Sobretudo nos países ocidentais, as pessoas estão a começar a acordar para algumas das ameaças das alterações climáticas. O clima extremo dos últimos anos tem tornado impossível não ficarmos atentos a elas. Antes era frequente falarmos das alterações climáticas num tempo verbal no futuro, mas agora já o fazemos no presente. Foram-se tornando mais reais no dia-a-dia dos cidadãos com as ondas de calor na Europa ou os incêndios florestais na Califórnia. Mas, mesmo que as pessoas estejam a acordar para esses desafios, acho que não perceberam bem como podem transformar toda a vida no planeta nas próximas décadas.

Sou um nova-iorquino com um estilo de vida moderno e sinto que o mundo moderno me protegeu da natureza. Quanto mais aprofundava a minha investigação [para o livro], mais percebia que tudo é modelado pelo clima e que as alterações climáticas tornarão tudo mais inacessível. Mas a humanidade é muito resiliente, adaptável e encontrará formas para viver nesse mundo.

Mas o que é realmente preocupante em relação às alterações climáticas?
É forma como as nossas vidas estão a ser orientadas, o que significa que tudo o que fazemos será influenciado pelas forças das alterações climáticas se não fizermos algo que realmente faça diferença. Os economistas pensam que, no final deste século, podemos ter um PIB global 30% menor do que teríamos sem as alterações climáticas. Poderemos ter 600 biliões de dólares em danos causados pelo clima a nível global, o que é o dobro do que existe hoje. Também podemos ter o dobro das guerras, metade dos alimentos disponíveis e centenas de milhões de refugiados climáticos. Tudo o que temos como garantido na vida moderna será colocado em causa pelas alterações climáticas.

Tudo o que temos como garantido na vida moderna será colocado em causa pelas alterações climáticas
No seu livro, aponta muitos cenários extremos. Por que é que decidiu focar-se nesses cenários?
Aquilo que faço é indicar o intervalo entre o aumento de dois graus [melhor cenário] e cinco graus Celsius [pior cenário] em relação ao período pré-industrial. As Nações Unidas referem mesmo que o aumento de quatro graus é possível até ao final do século se não mudarmos o nosso rumo. Além disso, acho que temos sempre a tendência de avaliar as nossas expectativas para o futuro com base no que vemos no presente. Quando olhamos para presente, o mundo só está 1,5 graus mais quente. É irresponsável ver assim o mundo no futuro porque não há forma de virmos a conseguir preservar um clima com essa temperatura. Por isso, não é assim tão desagradável pensarmos sobre estes cenários e é vital levá-los a sério.

Algumas pessoas definem-no como um alarmista das alterações climáticas. Concorda com esta definição?
A ciência é alarmante [risos]. A coisa mais responsável, ética e transparente a fazer é ficar alarmado com as alterações climáticas. Como jornalista devo contar a verdade sobre a forma como vejo o mundo e o mundo que vejo descrito pela ciência é bastante assustador. É útil comunicar esse medo de forma bem directa.

Também há algum valor político aqui. É inegável que o relatório das Nações Unidas lançado em Outubro do ano passado [sobre os impactos da subida da temperatura em 1,5 graus Celsius até ao final do século XXI em relação aos valores pré-industriais] foi o mais alarmista de sempre publicado por cientistas. E teve um efeito incrível na mobilização política no mundo ocidental. Depois disso, tivemos as greves escolares, [a criação do movimento] Extinction Rebellion ou o Pacto Ecológico Europeu. Não acho que o alarmismo seja a única forma de se falar sobre este tema, mas durante muito tempo os cientistas e os defensores do clima foram relutantes em assustar o público porque pensavam que iriam empurrar as pessoas para o desânimo. Se olharmos para a história do último ano, vemos que as respostas têm sido precisamente o contrário.

Mas também pode ser um discurso perigoso…
Acho que devemos ser cuidadosos e apresentar a ciência com credibilidade e honestidade. Não penso que devemos exagerar. Há grupos de activistas que descaracterizam e exageram quanto às ameaças do clima, pelo menos da forma como a ciência as vê.

Como vê então movimentos como o Extinction Rebellion e a popularidade de Greta Thunberg?
Sou um grande admirador da Greta e do que ela tem conseguido em tão pouco tempo para uma rapariga de 16 anos. Não acho que ela exagere. No fundo, faz as suas mensagens a partir do que ouviu dos cientistas e pede: “Temos cientistas incríveis. Por que é que não os ouvimos?”

O Extinction Rebellion tem uma estratégia retórica diferente. Acho que são mais alarmistas do que eu. Vejo algumas das suas declarações sobre o futuro próximo um pouco fora da linha do que a ciência sugere, mas penso que não é impossível imaginar os cenários que referem. Não acho mal que um grupo de activistas use este tipo de retórica. Acho até admirável o que têm conseguido sobretudo em Inglaterra.

Ao longo do livro dá muitos exemplos de todo o mundo, mas nunca refere Portugal. O que sabe sobre as alterações climáticas no país?
Em geral, a região do Mediterrâneo está a caminhar em direcção à desertificação. Provavelmente, isso acontecerá na segunda metade deste século: a região inteira tornar-se-á tecnicamente num deserto, o que tornará muito mais difícil o crescimento de culturas agrícolas. Alguns agricultores terão de adequar as culturas a frutas mais tropicais. Haverá também mais incêndios.

Em Portugal, há o problema da subida do nível do mar, mas continuamos a construir infra-estruturas perto da zona costeira. Um dos problemas é não pensarmos no futuro a longo prazo?
A nível mundial, os políticos têm falhado quanto a esse problema. Por exemplo, nos EUA acabámos de reconstruir muitas infra-estruturas que ficaram destruídas no furacão Katrina, o que deve ter custado 40 mil milhões de dólares. Mas estima-se que estejam desactualizadas em 2023, porque o seu plano não tem em consideração o nível do mar.

Mas estou menos preocupado quanto ao nível do mar do que a maioria das outras pessoas porque os impactos dramáticos ocorrerão, provavelmente, em períodos longos e todo o gelo do planeta levará muito tempo a derreter. A médio prazo seremos capazes de proteger sítios como Lisboa do aumento do nível do mar, mas isto requer investimento da parte dos governos para se construir novos tipos de infra-estruturas. De momento, em muitas partes do mundo estas decisões não são tomadas por decisores políticos com grande noção do que o futuro nos reserva, mas por construtores interessados nos lucros a curto prazo.

Com esforço, é possível limitar aquecimento global a 1,5 graus

Acha que conferências como a Conferência das Partes (COP) da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas, que terminou há uma semana, continuam a ser o modelo ideal para encontrarmos soluções para as mudanças do clima?
Tenho algumas dúvidas. Parte de mim, espera que possamos usar encontros como a COP para combater as alterações climáticas. É importante pensarmos em termos globais, porque este é um problema global e que tem impactos globais que estão distribuídos de forma desproporcional. Alguns países sofrerão mais do que outros, mas os nossos destinos estão todos ligados.

Por outro lado, quando olhamos para estas conferências – que têm uma história tão longa – poucas coisas concretas foram conseguidas. As nossas emissões [de gases com efeito de estufa] continuam a aumentar e batemos recordes todos os anos. Sempre que chegamos a algum tipo de acordo sobre as metas dessas emissões, todos falham e o Acordo de Paris é exemplo disso. Assinámo-lo só há quatro anos e nenhuma grande nação está a caminho de conseguir cumprir o seu compromisso.

O Acordo de Paris não é suficiente?
Mesmo que todos os países do mundo cumpram esse acordo estaríamos com três graus Celsius de aquecimento no final do século [em relação ao período pré-industrial]. Nenhum país se sente compelido em honrar os seus compromissos. Precisamos de muito mais do que Paris.

Quando penso em abordagens alternativas, uma que me ocorre e que talvez seja a mais encorajadora é o modelo do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares que foi acordado entre os EUA e a União Soviética. Estas duas potências globais chegaram a um acordo e praticamente disseram ao resto do mundo para os seguir. Agora podíamos aplicar este modelo ao clima, mas, claro, era preciso uma grande mudança de pensamento em Washington D.C. e Pequim.

Nas suas últimas entrevistas tem falado muito na importância de países como os EUA e a China. Como devem actuar estes países? 
Todos os países precisam de fazer rapidamente a descarbonização. Se queremos estabilizar a temperatura do planeta a qualquer nível de temperatura, precisamos de parar de produzir gases com efeito de estufa. Isto será necessário para se estabilizar o clima do planeta a uma temperatura que consideremos acolhedora e nos permita viver.

Mas os países têm diferentes obrigações com base no que fizeram no passado com as emissões de combustíveis fósseis e dependendo da fase de desenvolvimento económico em que estão. Os EUA são o maior emissor per capita [de emissões de gases com efeito de estufa] e têm as maiores emissões históricas. A China está numa situação diferente. As suas emissões são sobretudo da última ou das últimas duas décadas, agora são a maior nação emissora do mundo e está posicionada para aumentar as emissões na próxima década. Durante muito tempo, era costume os economistas olharem para a situação de países como a China e pensarem que não lhes podiam pedir para diminuir as suas emissões por causa do desenvolvimento económico e dos milhões de pessoas em pobreza extrema. Nos últimos anos, tem havido uma nova noção de que não serão só as nações mais ricas do mundo a beneficiarem de uma economia verde.

O governo da Indonésia é representativo de um país em desenvolvimento que duplicou o rendimento per capita através da industrialização. Para isso, duplicou as suas emissões. Agora, já dizem que querem diminuir as emissões para metade, o que os deixará prontos para cumprir do Acordo de Paris e ainda continuarão a crescer 6% por ano.

Penso que países como a China podem ter um rápido crescimento económico mais limpo do que o do passado. Até certo ponto, a China determinará o clima futuro do planeta devido ao papel significativo que tem hoje e terá no futuro. Mas está a fazer um jogo hipócrita em que está a expandir rapidamente a sua capacidade de energia renovável de uma forma que envergonha a maior parte dos países desenvolvidos. E, simultaneamente, está a abrir novas centrais de carvão.

Mas, por exemplo, surgiu o Pacto Ecológico Europeu da Comissão Europeia que tem como desafio tornar a Europa o primeiro continente neutro nas emissões. Este tipo de pactos não é um passo importante?
É certamente um passo importante. Aplaudo-o e estou entusiasmado com ele. É uma pequena resposta e precisamos de todos os tipos de abordagens que nos permitam enfrentar os desafios de forma urgente. Também acho que os compromissos que estamos a fazer a nível nacional ou das cidades certamente serão importantes. Todos os caminhos que se aproximam do Acordo de Paris serão muito úteis.

Contudo, estou preocupado com a forma como encaramos os compromissos. Actualmente, os líderes políticos sentem que precisam de ter gestos ao nível da acção climática. Vejo isso a crescer em todo o mundo. Por exemplo, Justin Trudeau declarou a emergência climática no Canadá, mas no outro dia aprovou um novo oleoduto. Emmanuel Macron fez-nos pensar que Jair Bolsonaro está a desflorestar a Amazónia, mas fracassou na aprovação da taxa do carbono em França. Este tipo de comportamentos é um problema.

Mas não é pior termos no poder negacionistas das alterações climáticas como Donald Trump?
Acho que Justin Trudeau é uma melhor autoridade no mundo climático do que é Donald Trump. Também penso que Macron é uma melhor autoridade do que Jair Bolsonaro. Mas estamos a cair numa armadilha quando pensamos que esta narrativa é inteiramente sobre heróis e vilões. A verdade é que todos no planeta vivemos em negação relativamente a esta crise. Continuamos a viver as nossas vidas como se esta crise não fosse assim tão dramática como realmente é. Quando apontamos o dedo a directores de empresas de combustíveis fósseis, a negacionistas das alterações climáticas ou a líderes políticos que não fazem nada pela acção climática, todos nos estamos a juntar ao lado errado da história. Estamos todos a falhar [risos]. A reflexão do estado das coisas será mais correcta e saudável se percebermos a nossa própria responsabilidade, mais do que se a colocarmos de um lado os negacionistas e do outro os heróis.

“Desculpem, isto é uma urgência” climática – Extinction Rebellion lança duas semanas de protestos
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Temos falado sempre da responsabilidade das instituições, mas o que podemos fazer a nível individual?
É útil fazermos algo para reduzir a nossa pegada de carbono, sensibilizar as pessoas à nossa volta para se preocuparem com este problema e dizer aos políticos que queremos mudar. Mas o impacto que cada indivíduo pode ter é insignificante comparado com o tipo de mudanças sistemáticas de que precisamos e que só são possíveis através de políticas públicas. Se quisermos viajar menos de avião ou até deixarmos de comer carne vermelha, devemos fazê-lo, mas não devemos usar isso como desculpa para pensar que fizemos a nossa parte pelo clima. O desafio é muito maior do que isso. Penso que o impacto das acções individuais tem nas emissões de carbono é quase irrelevante.

O que mudou no seu dia-a-dia a propósito da crise climática?
A coisa de que mais me sinto culpado é com as viagens de avião. Esta é uma acção individual que tem impacto. Em cada voo de Nova Iorque para Londres, cada pessoa causa o derretimento de três metros quadrados de gelo no Árctico. Mas, honestamente, não fiz mudanças significantes no meu estilo de vida. A principal coisa que fiz foi reorientar a minha actividade profissional para tentar que os políticos ganhem mais consciência da situação e mudem. A coisa mais importante que alguém pode fazer é chamar a atenção para o voto de políticos que apoiem a acção climática, que cumpram os compromissos e aumentem as suas ambições. Essa acção é mais significativa do que diminuir a carne na nossa dieta. Precisamos de toda uma nova infra-estrutura de transportes ou de um novo sistema de energia só com renováveis e nenhuma destas mudanças surge a nível individual.

Já no final do seu livro há um certo optimismo. Tem esperança de que a crise climática se resolva?
Depende do que se considera esperança. Se a esperança for manter o clima como existe hoje, não há possibilidade para isso. Mas se a esperança for evitar alguns dos cenários mais catastróficos e evitar o aumento de quatro graus Celsius, penso que há uma razão considerável para termos optimismo. A revolução energética que vimos ao longo da última década é entusiasmante. Politicamente também estamos a viver num mundo completamente diferente daquele que tínhamos há um ano: há uma maior preocupação pública e mais debates.

Mas temos um longo caminho pela frente. As Nações Unidas dizem que, para evitarmos um aquecimento catastrófico, temos de diminuir para cerca de metade as emissões de gases com efeito de estufa até 2030. Para isso, precisamos de uma mobilização à escala mundial que devia começar ainda este ano. Obviamente, não estamos a fazer isso, o que significa que vai ser inevitável que tenhamos um nível de aquecimento catastrófico, o que terá impacto em todos os aspectos da vida na Terra.

Incêndios na Califórnia levam à retirada de 180 mil pessoas das suas casas
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O século XXI será transformado e definido pelas alterações climáticas, mais do que por qualquer outra força. Não interessa onde se esteja, quão rico se seja, ou o país em que se viva, a vida no planeta irá ser mudada e definida pelas perturbações do clima.

As alterações climáticas podem também ser uma oportunidade a nível económico…
As coisas estão a encaminhar-se nesse sentido e, provavelmente, irão acelerar-se nas próximas décadas. [Haverá] uma renovação drástica na economia nas próximas décadas, o que significa que há grandes oportunidades não só no sector da energia mas também no dos transportes, da indústria, da agricultura e em todos os aspectos da vida que contribuam para as emissões de carbono.

Para alguém como eu que passou toda a sua vida na cidade, tem sido um grande desconforto e também uma revelação perceber quão dependentes estamos das forças da natureza. Também penso que é uma oportunidade e uma obrigação moral vermos as alterações climáticas como um argumento para aumentarmos a nossa empatia em relação aos outros humanos. Hoje cerca de nove milhões de pessoas morrem todos os anos devido à poluição do ar. A verdade é que poucas pessoas tanto nos EUA como em Portugal estão preocupadas com isso. As alterações climáticas são uma oportunidade para reorientarmos esse tipo de empatia: para nós, a importância das pessoas que não conhecemos e que sofrem [com as alterações climáticas] não é igual à da nossa família, mas deve tornar-se parecida.

Não interessa onde se esteja, quão rico se seja, ou o país em que se viva, a vida no planeta irá ser mudada e definida pelas perturbações do clima

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