quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

No choice - a guerra civil americana



No choice - a guerra civil americana

A sociedade polarizou-se sob a forma de “guerra cultural”, com atitudes antagónicas sobre quase tudo: as elites políticas, o papel do Estado, as minorias, os imigrantes, as mulheres ou os costumes. Está em jogo a própria identidade americana.

JORGE ALMEIDA FERNANDES
20 de Dezembro de 2019, 7:00

Ganha ou perde Donald Trump? A interrogação é legítima e não tem resposta segura. As consequências políticas do impeachment não se confundem com a sua fundamentação constitucional. Tudo o que se passa com Trump deve ser avaliado na óptica da polarização da política americana. Não é arriscado prever que a votação do impeachment pela Câmara dos Representantes tende a agravar a polarização política e social. E, tal como se aprendeu na campanha eleitoral de 2016 (e depois disso), essa é a água em que Trump melhor navega. E, de acordo com todos os dados que hoje temos, o Senado “absolverá” o Presidente. O impeachment não teria efeito prático. Para que serviu?

Os democratas estavam perante um dilema. Entre uma posição de princípio e uma avaliação das vantagens e desvantagens. Queriam agir contra Trump. Mas Nancy Pelosi, a líder democrata na Câmara, recomendava prudência, argumentando que o impeachment poderia beneficiar politicamente o Presidente. E facilitar a sua reeleição. Mas, no dia 5 de Dezembro, ao confirmar a acusação de Trump, sublinhou duas palavras: no choice. “O Presidente não nos deixou outra escolha.” Se o impeachment não vai culminar na destituição do Presidente, passa a ter outro significado: a Câmara acusou Trump e marcou simbolicamente os limites do poder presidencial.

“Independentemente das consequências a curto prazo, este impeachment era a coisa justa a fazer”, diz ao Politico o constitucionalista Frank O. Bowman. Sem esta atitude, os democratas “nada teriam feito para travar este Presidente, ou futuros presidentes, e prevenir comportamentos ainda mais graves”, acrescenta Leah Litman, professora de Direito. “Se não tivéssemos actuado agora, teríamos negligenciado os nossos deveres”, conclui Pelosi. Encerra esta justificação um reconhecimento implícito de que o impeachment pode ser uma armadilha?

Os estrategas eleitorais de Trump estarão convencidos de que o impeachment jogará a seu favor. Polarizará ainda mais o eleitorado, aumentará a determinação dos seus eleitores e beneficiará as recolhas de fundos. Calculam também que a sua absolvição no Senado justificará a sua vitimização e gerará uma onda de ressentimento contra os democratas. Nos últimos tempos, Trump subiu o tom das suas intervenções nos comícios, instalando um clima de “guerra civil”: os seus adversários são inimigos da América.

Mas, se conta tirar proveito eleitoral, Trump terá razões para ficar furioso com os representantes. Quer passar à História como um Presidente da estatura de Washington ou de Lincoln. Mas ficará registado nas “actas” que, em 2019, foi acusado de violar a Constituição pela Câmara dos Representantes.

A crise americana
A divisão não é inédita na História americana. O que é novo é a intensidade da polarização que conduziu a uma fractura, essa sim, inédita. Hoje parece haver “duas Américas” em confronto. Quase metade dos cidadãos pensam que a Casa Branca foi usurpada por um criminoso autoritário, culpado de violar a Constituição. Para outra metade - não interessam aqui os números - o impeachment seria uma conspiração democrata para anular o resultado das eleições de 2016 e sequestrar a vontade popular.

A sociedade polarizou-se sob a forma de “guerra cultural”, com atitudes antagónicas sobre quase tudo: as elites políticas, o papel do Estado, as minorias, os imigrantes, as mulheres ou os costumes. Está em jogo a própria identidade americana. As fontes de informação das “duas Américas” não são as mesmas. Os noticiários da CNN e da MSNBC crêem na culpa de Trump. Os da Fox News, de Murdoch”, dão crédito à tese da conjura democrata.

No fim das primárias republicanas de 2016, o jornalista Jacob Weisberg fez um diagnóstico que o tempo confirmou: “O conflito da campanha de 2016 já não é entre Trump e os seus opositores republicanos: agora, é entre Trump e o sistema político americano. [Os pais fundadores] designaram uma ordem constitucional para prevenir o exercício de um poder tirânico. Podemos acreditar na eficácia do sistema, mas sem desejar vê-lo testado desta maneira.”

Temos assistido ao teste. O regime “presidencializou-se”. O poder legislativo desvalorizou-se. A radicalização política contaminou o sistema partidário que deixou de funcionar com o mediador entre os poderes. O Partido Republicano transformou-se num dócil instrumento de Trump. Ao mesmo tempo, também o eleitorado democrata se radicalizou e o partido entrou numa deriva “esquerdizante”.

O problema é que o Presidente não se limita a tentar exercer o maior poder possível mas usa-o em proveito próprio, para colher benefícios eleitorais ou proteger-se face à lei. O caso Biden-Ucrânia é paradigmático.

Não é exagerado apontar este momento como um dos mais graves para a democracia americana. O que está em jogo é a solidez das instituições.

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