No choice - a
guerra civil americana
A sociedade
polarizou-se sob a forma de “guerra cultural”, com atitudes antagónicas sobre
quase tudo: as elites políticas, o papel do Estado, as minorias, os imigrantes,
as mulheres ou os costumes. Está em jogo a própria identidade americana.
JORGE ALMEIDA
FERNANDES
20 de Dezembro de
2019, 7:00
Ganha ou perde
Donald Trump? A interrogação é legítima e não tem resposta segura. As
consequências políticas do impeachment não se confundem com a sua fundamentação
constitucional. Tudo o que se passa com Trump deve ser avaliado na óptica da
polarização da política americana. Não é arriscado prever que a votação do
impeachment pela Câmara dos Representantes tende a agravar a polarização
política e social. E, tal como se aprendeu na campanha eleitoral de 2016 (e
depois disso), essa é a água em que Trump melhor navega. E, de acordo com todos
os dados que hoje temos, o Senado “absolverá” o Presidente. O impeachment não
teria efeito prático. Para que serviu?
Os democratas
estavam perante um dilema. Entre uma posição de princípio e uma avaliação das
vantagens e desvantagens. Queriam agir contra Trump. Mas Nancy Pelosi, a líder
democrata na Câmara, recomendava prudência, argumentando que o impeachment
poderia beneficiar politicamente o Presidente. E facilitar a sua reeleição.
Mas, no dia 5 de Dezembro, ao confirmar a acusação de Trump, sublinhou duas
palavras: no choice. “O Presidente não nos deixou outra escolha.” Se o
impeachment não vai culminar na destituição do Presidente, passa a ter outro significado:
a Câmara acusou Trump e marcou simbolicamente os limites do poder presidencial.
“Independentemente
das consequências a curto prazo, este impeachment era a coisa justa a fazer”,
diz ao Politico o constitucionalista Frank O. Bowman. Sem esta atitude, os
democratas “nada teriam feito para travar este Presidente, ou futuros
presidentes, e prevenir comportamentos ainda mais graves”, acrescenta Leah
Litman, professora de Direito. “Se não tivéssemos actuado agora, teríamos
negligenciado os nossos deveres”, conclui Pelosi. Encerra esta justificação um
reconhecimento implícito de que o impeachment pode ser uma armadilha?
Os estrategas
eleitorais de Trump estarão convencidos de que o impeachment jogará a seu
favor. Polarizará ainda mais o eleitorado, aumentará a determinação dos seus
eleitores e beneficiará as recolhas de fundos. Calculam também que a sua
absolvição no Senado justificará a sua vitimização e gerará uma onda de
ressentimento contra os democratas. Nos últimos tempos, Trump subiu o tom das
suas intervenções nos comícios, instalando um clima de “guerra civil”: os seus
adversários são inimigos da América.
Mas, se conta
tirar proveito eleitoral, Trump terá razões para ficar furioso com os
representantes. Quer passar à História como um Presidente da estatura de
Washington ou de Lincoln. Mas ficará registado nas “actas” que, em 2019, foi
acusado de violar a Constituição pela Câmara dos Representantes.
A crise americana
A divisão não é
inédita na História americana. O que é novo é a intensidade da polarização que
conduziu a uma fractura, essa sim, inédita. Hoje parece haver “duas Américas”
em confronto. Quase metade dos cidadãos pensam que a Casa Branca foi usurpada
por um criminoso autoritário, culpado de violar a Constituição. Para outra
metade - não interessam aqui os números - o impeachment seria uma conspiração
democrata para anular o resultado das eleições de 2016 e sequestrar a vontade
popular.
A sociedade
polarizou-se sob a forma de “guerra cultural”, com atitudes antagónicas sobre
quase tudo: as elites políticas, o papel do Estado, as minorias, os imigrantes,
as mulheres ou os costumes. Está em jogo a própria identidade americana. As
fontes de informação das “duas Américas” não são as mesmas. Os noticiários da
CNN e da MSNBC crêem na culpa de Trump. Os da Fox News, de Murdoch”, dão
crédito à tese da conjura democrata.
No fim das
primárias republicanas de 2016, o jornalista Jacob Weisberg fez um diagnóstico
que o tempo confirmou: “O conflito da campanha de 2016 já não é entre Trump e
os seus opositores republicanos: agora, é entre Trump e o sistema político
americano. [Os pais fundadores] designaram uma ordem constitucional para
prevenir o exercício de um poder tirânico. Podemos acreditar na eficácia do
sistema, mas sem desejar vê-lo testado desta maneira.”
Temos assistido
ao teste. O regime “presidencializou-se”. O poder legislativo desvalorizou-se.
A radicalização política contaminou o sistema partidário que deixou de
funcionar com o mediador entre os poderes. O Partido Republicano transformou-se
num dócil instrumento de Trump. Ao mesmo tempo, também o eleitorado democrata
se radicalizou e o partido entrou numa deriva “esquerdizante”.
O problema é que
o Presidente não se limita a tentar exercer o maior poder possível mas usa-o em
proveito próprio, para colher benefícios eleitorais ou proteger-se face à lei.
O caso Biden-Ucrânia é paradigmático.
Não é exagerado
apontar este momento como um dos mais graves para a democracia americana. O que
está em jogo é a solidez das instituições.
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