TURISMO
Tchernobil: Quando o fascínio pela História se transforma em
desrespeito pela tragédia
Fotografias com poses ousadas divulgadas nas redes sociais
têm gerado críticas sobre os comportamentos dos visitantes de Tchernobil, um
destino cada vez mais procurado por turistas desde que a minissérie da HBO
sobre o desastre estreou.
Filipa Almeida Mendes
15 de Junho de 2019, 22:02
Foi na madrugada de 26 de Abril de 1986, ainda na era
soviética, que a explosão do reactor 4 da central nuclear de Tchernobil, na
Ucrânia, resultou no acidente nuclear mais catastrófico até agora.
Cerca de 50 mil residentes (a maioria trabalhadores da
central de Tchernobil e as suas famílias) de uma zona com mais de quatro mil
quilómetros quadrados foram forçados a abandonar tudo o que tinham de um
momento para o outro.
Nuvens de resíduos radioactivos propagaram-se por boa parte
da Europa. Nos anos seguintes, mais 230 mil pessoas foram desalojadas de suas
casas, quando os cientistas descobriram que o cenário era muito pior do que se
pensava.
Segundo dados da Organização Mundial da Saúde, cerca de
quatro mil pessoas morreram devido à radiação a que foram expostas, mas até
hoje continua o debate sobre os efeitos que os elevados níveis de radiação
tiveram na população mais directamente afectada.
Desde 1986 que a cidade de Pripiat, nos arredores da
central, permanece inabitável. Ali, animais vagueiam e a vegetação tomou conta
dos edifícios abandonados. Uma cidade fantasma, até há pouco tempo silenciosa e
deserta, a fazer lembrar um cenário pós-apocalíptico.
Agora, mais de três décadas depois do acidente, algo mudou
em Pripiat e em Tchernobil, locais que voltaram a ter pessoas. O motivo desta
agitação súbita está na minissérie norte-americana Chernobyl, da HBO, que se
estreou em Maio deste ano e cujo guião se inspirou no livro Vozes de Chernobyl,
da escritora bielorrussa Svetlana Alexiévich. A série acompanha a forma como a
catástrofe foi gerida pelo regime soviético, as operações de limpeza, o
imbróglio político e a investigação que se seguiu, intercalando realidade e
ficção.
O boom turístico
O seu sucesso no pequeno ecrã — aliado a um fascínio pela
História e à curiosidade dos turistas — provocou um boom turístico na zona do
maior acidente nuclear de sempre, que está aberta aos visitantes desde 2011.
O reactor 4 é um dos locais mais procurados pelos turistas,
que podem ver também o agora famoso parque de diversões e a roda gigante que,
na verdade, nunca chegou a funcionar mas que se tornou um símbolo daquela
cidade fantasma.
Desde que a minissérie estreou, as agências turísticas que
organizam viagens até Tchernobil registaram um aumento entre 30% e 40% na
procura, com muita gente a evocar os cenários da série produzida pela HBO. As
visitas guiadas, em inglês, custam cerca de 90 euros por pessoa.
Sergiy Ivanchuk, gerente da agência SoloEast, confirmou à
Reuters que a empresa registou, em Maio, um aumento do número de turistas de
30%, face ao mês homólogo de 2018. Já as reservas para Junho, Julho e Agosto
aumentaram cerca de 40% desde que a HBO começou a emitir a série. Valores
semelhantes são referidos por Yaroslav Yemelianenko, gerente da agência
Chernobyl Tour.
Durante a visita, os turistas podem ver os monumentos de
homenagem às vítimas e as aldeias abandonadas. Pelo meio, almoçam no único
restaurante na cidade. São levados a ver o reactor número 4, que desde 2017
exibe uma nova cúpula de metal que atinge 105 metros de altura e cobre o núcleo
central da explosão. O dia termina com um passeio pela cidade de Pripiat.
“Muita gente faz perguntas sobre a série, sobre todos os
acontecimentos. As pessoas estão a ficar cada vez mais curiosas”, afirma à
Reuters a guia Viktoria Brozhko, assegurando que a área é segura para os
visitantes. “Durante toda a visita à zona de exclusão de Tchernobil, as pessoas
estão expostas a cerca de dois microsievert [o sievert é a unidade de medida de
radiação usada para avaliação do impacto no ser humano], o que é igual à
quantidade de radiação a que uma pessoa se expõe se ficar em casa durante 24h”,
defende. Embora os visitantes não sejam obrigados a usar fatos de protecção e
os níveis de radiação sejam controlados (através de dosímetros), é-lhes
aconselhado que não toquem em nada do que ali está exposto por questões de
segurança.
Há, por outro lado, quem defenda que os níveis de
radioactividade naquela zona não são inofensivos, ao mesmo tempo que muitos
turistas se aventuram (e desafiam os limites) a tocar em determinados vestígios
e se expõem voluntariamente a riscos mais elevados em locais onde as radiações
são mais altas. Megan Nolan, que visitou o local, revela ao Guardian que as
próprias empresas aproveitam-se do perigo para publicitar os seus serviços e
lucrar com estas visitas. “O potencial perigo é quase comercializado como parte
da visita”, garante a turista.
Já Thieme Bosman, um estudante de 18 anos da Holanda, aponta
à Reuters um outro lado negativo do aumento do turismo em Tchernobil. “Já há
muitos turistas aqui e isso acaba um pouco com a experiência de estar numa
cidade completamente abandonada”, conclui.
Mas quando é que o fascínio pela História se transforma em
desrespeito pela tragédia? E porquê?
O mundo do Instagram
Munidos de câmaras fotográficas e telemóveis, aproveitando
aquele cenário trágico como pano de fundo para uma fotografia ou uma selfie,
são muitos os visitantes que registam o momento e o partilham em redes sociais,
numa atitude que está a encher caixas de comentários com acusações de
“desrespeito”.
Algumas imagens mostram visitantes a posar numa atitude
jocosa (mãos na garganta e língua de fora, esgares de asfixiamento...) em
frente aos vários edifícios e veículos abandonados. No Instagram, uma das
muitas imagens partilhadas exibe uma mulher seminua a despir o fato de
protecção e a mostrar a roupa interior.
O sucesso da série da HBO levou, aliás, vários influencers
da era do Instagram à cidade de Pripiat em busca de likes, uma tendência que o
diário espanhol El País classifica de “sinistra e polémica”.
Mas mais do que os likes, são inúmeras as críticas,
especialmente no Twitter, aos comportamentos dos visitantes e aos conteúdos que
têm vindo a ser partilhados nas redes sociais. Uma vacuidade aliada a um desrespeito
pelas vítimas do maior acidente nuclear da História, dizem os críticos.
Um dos casos relatados é o de Julia Baessler, uma estudante
austríaca e influencer — cuja conta de Instagram soma 320 mil seguidores —, que
publicou várias fotografias em Tchernobil, uma delas sentada num baloiço
enferrujado. Os críticos acusaram-na de explorar uma tragédia para proveito
próprio. Já Baessler alega, em entrevista ao Business Insider, um interesse
pela História e física nuclear e garante que já tinha visitado o local antes de
este “estar na moda”.
"Comportem-se com respeito"
Esta leva de turistas e o seu comportamento no local da
explosão nuclear levou já o criador da série, Craig Mazin, a reagir através do
Twitter. “É maravilhoso que #ChernobylHBO tenha inspirado uma onda de turismo
na zona de exclusão. Mas, sim, eu vi as fotografias que circulam”, escreveu
Mazin. “Se visitarem [o local], por favor lembrem-se que uma tragédia terrível
aconteceu ali. Comportem-se com respeito por todos aqueles que sofreram e se sacrificaram”,
acrescentou.
Tchernobil não é, porém, caso único desta curiosidade
mórbida nem da “incontinência visual” que é hoje um dos principais combustíveis
das redes sociais.
Em Março, o museu de Auschwitz apelou também a um maior
respeito por parte dos visitantes, depois de terem sido divulgadas fotografias
que mostravam turistas a tentarem equilibrar-se nos trilhos do antigo campo de
concentração nazi.
“Quando visitarem o museu de Auschwitz lembrem-se que estão
no local onde mais de um milhão de pessoas foram mortas. Respeitem a sua
memória”, lê-se na publicação no Twitter.
Uma aproximação da morte
Certo é que o fascínio e a curiosidade por locais que outrora
foram palco das mais cruéis tragédias continua a mover muitas pessoas, um
fenómeno que é também potenciado pela mediatização desses locais.
As teorias são inúmeras, tantas quanto as motivações que
podem levar alguém a visitar estes destinos. Quando o próprio Craig Mazin,
criador da minissérie Chernobyl da HBO, visitou o local (antes ainda de começar
a escrever o argumento), relatou uma experiência quase transcendente. “Não sou
um homem religioso, mas isto foi o mais religioso que alguma vez me senti.
Andar por onde eles andaram pareceu-me tão estranho, e também estar sob o mesmo
céu faz-nos sentir um pouco mais próximos, de certo modo, de quem eles eram”,
afirmou o argumentista num podcast da HBO.
“Turismo negro” (Dark Turism, em inglês) é a expressão
utilizada pela comunidade académica para definir a atracção que determinadas
pessoas sentem por visitar locais onde ocorreram desastres, como acontece com
Tchernobil.
Tais visitas podem ser “motivadas por um desejo de encontros
reais ou simbólicos com a morte”, começa por explicar ao jornal The Telegrap
John Lennon, professor da Glasgow Caledonian University, em Londres, que ajudou
a cunhar o termo “turismo negro”.
Um fenómeno que não é recente, de acordo com este
especialista que dá como exemplo os combates dos gladiadores em Roma, aos quais
os espectadores assistiam como se de um desporto se tratasse, bem como as
execuções em massa em praça pública.
Já Tong Lam, professor da Universidade de Toronto, acredita
que este tipo de turismo se tornou popular porque é uma forma de as pessoas
lidarem com a ansiedade que sentem perante ameaças actuais como as alterações
climáticas, a globalização ou mesmo a morte, acrescenta ao The Telegraph.
O “fascínio da sociedade em relação à mortalidade” é também
um dos principais pontos de debate para Philip Stone, especialista neste
fenómeno. “Não sou uma pessoa que goste de visitar estes locais. Mas aquilo que
me suscita interesse é a forma como as pessoas encaram a sua própria
mortalidade ao olhar para outras mortes com significância”, destaca Philip
Stone à National Geographic.
De visita a estes locais, palcos de tragédias passadas, há
quem também tome consciência plena de que o ser humano não é efectivamente
imortal e sinta até uma certa ligação emocional e empatia com as vítimas de
sofrimento. “Podíamos ter sido nós naquela explosão ou atrocidade. Tornamos
relevante a nossa própria mortalidade”, garante Stone.
Mas numa altura em que as redes sociais baseadas na imagem,
como o Instagram, têm um enorme papel nas nossas vidas e experiências, surgem
também questões ético-morais. “Vivemos numa sociedade secular, onde as
directrizes da moralidade estão cada vez mais esbatidas. É fácil para nós
dizermos que aquilo é certo ou errado, mas para muitas pessoas não é assim tão
simples”, explica Philip Stone.
Hoje, a linguagem das redes sociais acabou por transitar de
um “eu estive aqui” para um “eu estou aqui – olhem para mim”. O que se traduz,
nalguns casos, numa necessidade de exibicionismo e de mostrar ao mundo onde
estamos e o que fazemos, surgindo até preocupações associadas a um certo
“voyeurismo macabro”, analisa o especialista.
Mas há quem não considere tudo negativo. Se há quem critique
o desrespeito pelas vítimas e associe determinados comportamentos a um certo
“esvaziamento” de sentido e “esquecimento” da dimensão de tais desastres, por
outro lado, há quem encare este fenómeno de um ponto de vista educacional ou de
enriquecimento pessoal e cultural. Para John Lennon, a visita a estes locais
pode ser crucial para que a Humanidade aprenda com os erros do passado e para
que estes desastres e atrocidades não caiam no esquecimento: “O turismo negro,
tal como a nossa História negra, ocupa um papel importante na nossa compreensão
do que é ser humano”.
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