Um homem que não se lembra de ter assumido tão solenes e
graves decisões não pode suscitar-nos compreensão e complacência, antes a
penalização e o desprezo.
Enquanto jornal empenhado na defesa do interesse público, o
que sabemos permite-nos desde já estabelecer a sua responsabilidade e a sua
culpa profissional e ética. Mas não basta: exigimos também que a Justiça se
envolva para que, como cidadãos, nos seja possível viver de cabeça levantada
por termos sido capazes de ajustar as contas com esse passado trágico e
vergonhoso.
Manuel Carvalho
7 de Junho de 2019, 18:23
A memória, ou a falta dela, tornou-se um dos ingredientes
fatais para impedir o país de ajustar as contas com uma faceta tenebrosa do seu
passado recente. Vítor Constâncio, ex-governador do Banco de Portugal foi mais
um dos que, instados a explicar as causas dos abusos da banca, invocaram o
esquecimento para se eximir das suas responsabilidades.
Está na hora de dizer basta a este tipo de atitude. Chegou o
momento de dizer que a falta de lembrança não pode ser considerada como uma
desculpa ou uma atenuante. Tem de passar a ser encarada como uma tentativa
consciente de escapar a culpas próprias num desastre que penaliza e envergonha
o país. Um homem que não se lembra de ter assumido tão solenes e graves
decisões não pode suscitar-nos compreensão e complacência, antes a penalização
e o desprezo.
A revelação pelo PÚBLICO de correspondência entre o conselho
de administração do Banco de Portugal e Berardo que prova a discussão de um
pedido do empresário para obter um empréstimo de 350 milhões de euros da CGD
confronta-nos com uma de duas possibilidades: ou Vítor Constâncio mentiu
deliberada e conscientemente na comissão de inquérito ao dizer que não sabia de
nada, ou tornou pública a sua irresponsabilidade e inaptidão para o cargo
relevante que exerceu.
Se o responsável máximo pela regulação do sector financeiro
consegue esquecer uma reunião cujo único ponto da agenda era um empréstimo de
tal magnitude, feito por um banco público sem garantias reais, é porque é
incompetente. Mesmo que nessa época o país tenha vivido momentos de
esplendorosa irresponsabilidade e tenha sido sujeito a uma operação criminosa
que visava o controlo do poder financeiro, 350 milhões sem garantias reais são
350 milhões sem garantias reais.
É por isso que Vítor Constâncio não pode passar por este
processo livrando-se das suas decisões com a desculpa da falta de memória. Ter
esquecido tão grande e grave momento faz dele candidato ao cargo do mais
incompetente servidor público das últimas gerações. E se não o foi, se guardou
a decisão na memória e a omitiu com uma mentira, torna-se um dos principais
cúmplices da trapaça financeira que tanto nos custa a pagar.
Enquanto jornal empenhado na defesa do interesse público, o
que sabemos permite-nos desde já estabelecer a sua responsabilidade e a sua culpa
profissional e ética. Mas não basta: exigimos também que a Justiça se envolva
para que, como cidadãos, nos seja possível viver de cabeça levantada por termos
sido capazes de ajustar as contas com esse passado trágico e vergonhoso.
Constâncio diz que não havia razões para pôr em causa a
“idoneidade” de Berardo
Ex-governador do Banco de Portugal defende-se, afirmando que
a operação do investidor, apesar de totalmente financiada em crédito bancário
garantido por títulos especulativos, cumpria a lei.
Sofia Rodrigues e Cristina Ferreira 7 de Junho de 2019,
22:44
O ex-governador do Banco de Portugal (BdP), Vítor
Constâncio, rejeitou nesta sexta-feira ter mentido ao Parlamento e afirmou ter
tido conhecimento do pedido de crédito da Fundação Berardo para a compra de
acções do BCP, em 2007, só “a posteriori”. Numa entrevista à RTP, Constâncio
alegou que, quando foi dado o aval à operação de compra das acções, a Caixa
Geral de Depósitos (CGD) já tinha concedido o financiamento. Mas não é verdade.
À data em que o BdP analisou a compra de acções tinha sido aberta apenas uma
linha de crédito, que é uma espécie de conta-corrente. E que nem previa a
entrega das acções do BCP como garantia.
Na entrevista à RTP, e depois de ter enviado um
esclarecimento à Lusa durante a tarde, Vítor Constâncio foi questionado sobre
se mentiu no Parlamento sobre o conhecimento que tinha da operação em que
Berardo pediu 350 milhões de euros à CGD para reforçar a sua participação no BCP.
“Não, de maneira nenhuma. Não omiti. Ninguém me perguntou sobre a não objecção
da participação qualificada”, afirmou.
Mas, na comissão de inquérito à recapitalização da CGD, a 18
de Março deste ano, Vítor Constâncio foi interpelado sobre as grandes operações
de crédito problemáticas dadas pelo banco público, e garantidas com acções
cotadas. E respondeu taxativamente: “Claro que [o BdP] só tem conhecimento
delas [operações de crédito] depois” de os bancos as efectivarem. Não tem
dúvidas: “Como é óbvio! É natural! Essa ideia de que [o BdP as] pode conhecer
antes é impossível!”
Vítor Constâncio rejeitou, assim, conhecer as operações de
financiamento da CGD garantidas com acções cotadas e referiu que só teve
conhecimento delas a seguir à crise financeira de 2008, omitindo que esta
operação Berardo já era uma operação especulativa. Ou seja, era problemática
por ser sustentada em títulos cotados.
O ex-vice-governador do BCE afirmou que, em casos como este,
o regulador, de acordo com a lei, só tem competência para averiguar se o
accionista tem idoneidade para se tornar qualificado e se os fundos têm origem
legal. “Não havia razão nenhuma para pôr em causa a idoneidade do accionista
nem a origem dos fundos”, afirmou.
O que está em questão, de facto, não é autorizar a operação
bancária da CGD. A responsabilidade do supervisor é garantir que um investidor,
como Joe Berardo, que se propunha ter uma posição qualificada até 9,9% no maior
banco privado português, tinha capacidade financeira para acorrer a um aumento
de capital do banco a qualquer momento. Ora, inicialmente, numa das cartas, Joe
Berardo admite financiar a compra das acções com recursos próprios e crédito da
CGD. Mas, a meio do processo, muda a natureza das suas intenções e informa o
regulador que vai reforçar a posição no BCP totalmente com os fundos da CGD e
dando como garantia os títulos especulativos (acções cotadas), o que era um
indício de que não dispunha de garantias reais suficientes para fazer face ao serviço
da dívida que estava a assumir junto da CGD.
Sublinhando que o BdP não pode interferir em operações de
crédito dos bancos nem as mandar “anular”, Vítor Constâncio referiu que os
serviços do regulador fizeram contactos com a CGD. “Acharam normal o contrato,
e na altura ninguém suspeitaria que as bolsas e a crise tiveram a evolução que
tiveram”, disse. Mas a consultora EY concluiu, na sua auditoria à CGD, que o
departamento de risco do banco público tinha posto em causa a operação de
crédito assinada com a Fundação Berardo.
Vítor Constâncio mostrou-se disponível para voltar à
comissão de inquérito, correspondendo assim a uma exigência de todos os
partidos, incluindo o PS. Da esquerda à direita foi visível a indignação sobre
o contraste entre a autorização dada, em 2007, pelo regulador, e as declarações
do governador de então, Vítor Constâncio, na comissão parlamentar de inquérito.
Pelo CDS-PP, a vice-presidente da bancada Cecília Meireles considera que o caso
pode ter “contornos criminais” e quer enviar as declarações de Constâncio para
o Ministério Público. “As pessoas não podem vir mentir às comissões de
inquérito”, afirmou aos jornalistas.
Enquanto o PS pedia uma nova audição, para que seja
explicada a “omissão” do ex-governador, o PSD justificou o mesmo pedido com a
necessidade de dar uma “segunda oportunidade” a Constâncio para “reavivar a sua
memória” e também “esclarecer o que começam a ser alguns indícios”. O deputado
Duarte Pacheco questionou mesmo “se não esteve o Banco de Portugal e o próprio
dr. Vítor Constâncio no coração do assalto ao BCP”.
À esquerda, a bloquista Mariana Mortágua não poupou o antigo
governador, considerando que “é quase impossível” que “não soubesse o que se
estava a passar”. A deputada exige que Constâncio explique “por que mentiu
quando disse que era impossível ter conhecimento antecipado” da operação de
crédito em causa. O comunista Duarte Alves usou uma expressão mais suave: “O
que Vítor Constâncio disse na primeira audição não corresponde à verdade”.
Nem o Governo deixou escapar que é preciso esclarecimentos.
O secretário de Estado Adjunto e das Finanças, Mourinho Félix, em declarações
aos jornalistas – por coincidência no final do debate da proposta de lei sobre
supervisão financeira –, acabou por afirmar que “as decisões que foram tomadas
em tempo têm que ser justificadas, explicadas e percebidas sobre porque é que
foram decididas dessa forma”.
Durante o dia, e depois das reacções duras dos partidos, o
ex-governador do Banco de Portugal disse não se lembrar do que estava em causa.
“Não tenho memória de nada assim nos últimos 15 anos”, escreveu na sua conta de
Twitter, acrescentando que, “normalmente, o supervisor (e a instituição) não
tem interferência em questões tão concretas de operações dessa natureza”.
tp.ocilbup@seugirdors tp.ocilbup@arierrefc
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