O mês do volume máximo amplifica o ruído do ano inteiro
Câmara de Lisboa quer lançar no fim das festas uma campanha
de sensibilização contra o ruído na cidade, um tema que está a mobilizar cada
vez mais cidadãos.
João Pedro Pincha
João Pedro Pincha 11 de Junho de 2019, 21:13
O cheiro a grelhados e a cerveja enche o ar, as esplanadas
galgam os limites habituais, bancas espontâneas surgem por toda a parte, o
volume da música sobe e preenche todo o espaço sonoro: é Santo António em
Lisboa.
Há alguns anos podia dizer-se com certeza absoluta que esta
era a mais longa, a mais povoada, a mais animada, a mais barulhenta e a mais
confusa noite lisboeta. Hoje ainda é, mas a distância para outras noites
esbateu-se: não porque o 12 de Junho seja menos concorrido, mas porque a festa
se prolongou no tempo. Os arraiais populares, antigamente confinados a apenas
alguns dias, duram agora o mês inteiro, e as juntas de freguesia disputam entre
si os artistas mais sonantes – o que frequentemente se traduz em maiores
multidões no centro histórico.
Nos últimos anos a festa tem arrastado consigo as queixas de
muitos moradores, que reclamam de não terem sossego durante todo o mês de
Junho. Este ano, num gesto inédito, a EGEAC emitiu mesmo um comunicado a pedir
“moderação” nos festejos. “É fundamental que tanto parceiros como público
ganhem consciência de que quando as normas não são respeitadas estão a
prejudicar os moradores e uma das iniciativas mais queridas da cidade”, disse
Joana Gomes Cardoso, presidente da empresa de cultura de Lisboa, nesse
comunicado.
Se o Santo António é pretexto para um avolumar das
reclamações, quem vive no centro histórico há muito se habituou a lidar com
ruído excessivo durante todo o ano. “Há exemplos chocantes”, diz o realizador
Bruno de Almeida, um dos impulsionadores do “Menos Barulho em Lisboa”, uma
página de Facebook criada há dez dias e já com quase 2000 membros. O grupo
nasceu de uma forma “espontânea” e com base na experiência de umas três ou
quatro pessoas, explica Bruno de Almeida, mas as proporções que tomou
entretanto levaram-nas a perceber que “afinal há muita gente afectada por este
problema”.
“Alguns vídeos partilhados neste grupo são chocantes, coisas
que não são minimamente aceitáveis”, critica. Na página encontram-se relatos e
vídeos de barulho de várias origens (festas populares, obras, esplanadas,
etc.), que vão sendo assinalados num mapa da cidade. Brevemente será lançada
uma petição pública, a entregar à câmara de Lisboa.
Uma das ideias lançadas por Bruno de Almeida é que exista uma
“linha de apoio ao ruído” para que os cidadãos possam reportar situações
incomodativas e a polícia actue com rapidez.
Essa foi precisamente a proposta que a associação Aqui Mora
Gente decidiu apresentar ao Orçamento Participativo (OP) de 2016 – e ganhou.
Com o lema “Viver no centro histórico é possível”, o projecto previa a criação
de uma plataforma exclusiva para queixas de ruído, com número de telefone e
e-mail próprios, que mobilizasse a PSP ou a Polícia Municipal de imediato.
A proposta foi uma das vencedoras, embora tenha acabado por
não ser implementada tal e qual os seus criadores queriam inicialmente. No fim
de 2018 a câmara de Lisboa criou a categoria “Fiscalização de estabelecimentos
comerciais – horário e ruído” no Na Minha Rua, um site onde os lisboetas podem
fazer alertas e reclamações sobre a cidade.
Desde então e até à sexta-feira passada (cerca de meio ano)
foram feitas 546 queixas, segundo números que a autarquia forneceu ao PÚBLICO.
Em 2017 e 2018, quando não existia ainda aquela categoria específica e os
problemas de barulho eram apenas catalogados no chapéu mais genérico da
“Segurança pública e ruído”, houve 865 e 1346 protestos, respectivamente. Uma
fonte municipal ressalva que nestes dados há queixas mal catalogadas e
reincidências e que os números estão em linha com a realidade de outras capitais
europeias.
Isso parece ser fraco consolo para Isabel Sá da Bandeira, da
associação Aqui Mora Gente, que se diz desiludida com o tempo já decorrido. Até
porque o projecto tinha ainda outra vertente, uma campanha de comunicação, que
ainda não avançou. “Quando vejo as notícias do OP só penso: ‘Coitadas destas
pessoas, nem sabem onde se estão a meter’”, comenta Isabel Sá da Bandeira.
“Já foi definido o conceito da campanha e estão ser
desenhados os materiais gráficos e anúncio vídeo para, muito em breve,
apresentar a proposta de campanha à associação e serviços da câmara”, garante a
autarquia. “Se a proposta for aprovada, contamos ter a campanha na rua no final
de Junho, após as festas da cidade.”
Não se trata de exigir uma cidade quietinha e bem comportada
ou da reivindicação de uma imaginada "Lisboa antiga", sem arraiais,
vida noturna, bares, festas, fado vadio, onde tudo se deitaria com as galinhas.
Mas dá para não a transformar numa feira popular?
Fernanda Câncio
08 Junho 2019 — 09:46
Tive a sorte de veranear no Algarve desde o ano do meu
nascimento, em 1964, e de ter a memória de uma Albufeira vintage, vilória de
casas de cal com hippies a vender artesanato no largo, do perfume de maçã que
nele ficava à noite das bancas de fruta do pequeno mercado diário de rua, das
praias desertas de dunas selvagens que hoje serei incapaz de reconhecer no
contínuo de urbanização desenfreada que as assolou, do silêncio quieto dos dias
de calor.
Tenho também memória e desgosto do que se seguiu, e que
segue até agora, na maioria das zonas do Algarve que fui percorrendo: ausência
total de planeamento digno do nome, "empreendimentos" em concorrência
para prémio do mais medonho, a multiplicação de comércios com nomes
estrangeiros, dos menus "em estrangeiro" nos restaurantes, por vezes
sem sequer carta em português, e da progressiva dificuldade em comer algo de
parecido com comida da região à medida que os hamburgers, pizzas e fish &
chips se impunham porque, achava quem os prodigalizava, era isso que "os
turistas queriam".
Pensei, ou melhor, desejei, que todos os erros clamorosos
cometidos e reconhecidos no Algarve iriam servir para evitar que alguma vez
mais o frenesim de tentar agradar aos turistas destruísse de forma tão
irremediável o território e a sua identidade - e portanto, ironicamente, o seu
capital de atracão e de comercialização. Mas enganei-me. E desta vez não posso
nem quero, como no caso do Algarve, fugir à frente da onda: Lisboa é a minha
cidade e tenciono lutar por ela.
E como eu, muitos. Que estamos a atingir o ponto de rebuçado
tornou-se óbvio esta semana, quando foi criado no Facebook o grupo Menos
barulho em Lisboa, no qual vários habitantes do centro partilharam vídeos com o
ruído inacreditável que chega às suas casas, de dia e de noite, vindo de focos
daquilo a que costuma dar o nome de "animação".
"Importa considerar que o ruído é, não raro, um efeito
próprio ou colateral de uma atividade lucrativa, mas cujos custos são
suportados por terceiros, alheios às receitas. (...) A licença especial de
ruído não pode ser considerada como a alienação municipal da tranquilidade
pública, mediante a liquidação de uma taxa."
Na origem do grupo está a aproximação das festas de Lisboa,
cujos arraiais começaram a fazer-se ouvir no fim de semana passado, mas
sobretudo o evento de uma regata da qual fez parte um barco "de som"
que percorreu a margem do Tejo, para trás e para a frente, em permanente debitar
de decibéis para toda a frente de rio (incluindo as colinas de Santa Catarina,
Castelo e Alfama) até ao início da madrugada. A ajuntar à criação recente, de
acordo com testemunhos, de uma espécie de discoteca ao ar livre no novo
terminal de cruzeiros, em frente ao Campo das Cebolas. A isso os participantes
do grupo acrescentaram outras denúncias, incluindo imagens e sons de um
"roof top" estrepitoso na zona de Santos e de outras emissões
regulares e comerciais de forte ruído na zona central da cidade, nomeadamente
em esplanadas e espetáculos -- como o que tem lugar diariamente, a partir desta
altura, durante dois meses e meio e duas vezes ao dia, terminando perto da
meia-noite, nas ruínas do Convento do Carmo.
Não se trata - convém sublinhar -- de exigir uma cidade
quietinha ou da reivindicação de uma imaginada "Lisboa antiga", sem
arraiais, vida noturna, bares, festas, fado vadio, onde tudo se deitaria com as
galinhas. Nada disso: como alguém disse no citado grupo, este foi criado por
notórios boémios no virar das cinco décadas, que não poderiam, sem cair no
ridículo, insurgir-se contra os boémios mais novos ou com outros gostos e
hábitos. Tão-pouco se trata de vilipendiar o turismo. Está em causa, isso sim,
a necessidade de bom senso e de algo essencial que tem faltado, na
administração do ruído como noutras: ter em atenção que o centro da cidade,
erigido em "sala de visitas" ou mesmo "de espetáculos", é
um lugar onde vivem pessoas. E que o licenciamento, ou a promoção, pela
autarquia, de determinadas atividades tem de ter obrigatoriamente isso em
consideração.
Ter em consideração, por exemplo, que uma coisa é licenciar
três dias de arraial, num fim de semana, outra licenciar 10, incluindo dias
úteis (como está a suceder no Largo da Graça); que não é compreensível que se
instituam regras para o ruído nos bares e discotecas, com medições de níveis
máximos e exigências de insonorização, e que a seguir se permitam discotecas ao
ar livre, roof tops, esplanadas e barcaças no Tejo aos berros todo o santo dia
e até às tantas da manhã, sem qualquer barreira a conter o som - aliás pelo
contrário.
Que não é admissível existir um regulamento municipal que
interdita ruído, de obras e de música, a partir de certas horas e depois
multiplicar licenças "especiais" que permitem martelos pneumáticos às
sete da manhã de sábado e domingo e colunas de som em débito até altas horas
(um dos exemplos dados no grupo é o do mercado de Campo de Ourique: quando os
moradores ligam para a polícia a participar, é-lhes respondido que "têm
licença especial").
Como se lê num parecer do Provedor de Justiça de 2012,
intitulado Boas Práticas no Controlo Municipal de Ruído, "importa
considerar que o ruído é, não raro, um efeito próprio ou colateral de uma
atividade lucrativa, mas cujos custos são suportados por terceiros, alheios às
receitas", e portanto que "a licença especial de ruído não pode ser
considerada como a alienação municipal da tranquilidade pública, mediante a
liquidação de uma taxa."
O facto, frisa-se, "de a licença conferir licitude a
uma atividade que, de outro modo, representaria uma infração contraordenacional,
não permite perder de vista o seu caráter excecional. De outro modo, corre-se o
risco de a taxa a liquidar por conta da licença especial de ruído estimular o
seu deferimento multiplicado, a fim de angariar receitas públicas, mas sem
contrapartidas para os lesados."
Certificando que a esmagadora maioria das licenças especiais
de ruído que examinou (respeitantes a todas as autarquias do país) não estavam
convenientemente fundamentadas nem tão-pouco estabeleciam regras quanto ao
nível de ruído admissível, as precauções exigidas para minorar o incómodo ou
sequer a localização e duração exatas dos eventos, o Provedor advertia: "O
deferimento de licenças especiais de ruído, ainda que em estrita conformidade
com a lei, não isenta os municípios da eventual responsabilidade civil por
prejuízos imputados a sacrifícios especial e anormalmente impostos."
As câmaras não estão acima da lei, e não podem mercantilizar
direitos fundamentais dos seus habitantes. Nem, decerto, furtar-se a
prestar-lhes contas sobre as decisões que são tomadas e os afetam. Tal como
todos os estabelecimentos são obrigados a exibir as suas horas de abertura e
fecho -- por definição públicas -- a concessão de licenças especiais de ruído
tem de ser publicitada e escrutinável.
O que significa que aqueles por elas afetados devem saber
antecipadamente onde, quando e em que condições foi autorizado ruído anómalo e
conhecer os fundamentos da decisão. Até para, se for caso disso, tomarem
providências, desde ir dormir a outro lado - o Provedor chega a colocar a
hipótese de em certas circunstâncias os promotores terem de encontrar
alojamento alternativo para quem é manifestamente incomodado -- a manifestarem
oposição pelos meios legais ao dispor.
Como em relação a tantas outras decisões camarárias que
afetam a vida das pessoas - exemplo do corte de vias e praças, que em Lisboa
quase nunca é, de modo eficaz, sinalizado antecipadamente, constituindo-se em
"facto consumado"- exige-se informação, transparência e o princípio
fundamental de tudo: respeito pelos cidadãos. Sem isso, não há governo
democrático, mas tirania.
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