Carta aberta a João Miguel Tavares
Portugal ainda é uma Portalegre ampliada, porque, como dizia
Raul Brandão a propósito de Gomes Freire de Andrade, aqui não ganham os
inteligentes, mas (para nossa desgraça colectiva) os mais espertos.
Ruy Ventura
12 de Junho de 2019, 1:38
Caro João Miguel,
Tomo a liberdade de tratar-te por tu. Somos afinal
conterrâneos, apesar de não nos conhecermos. A nossa idade é muito próxima.
Imagino que, como eu, tenhas nascido no velho Hospital da Misericórdia, em
pleno Rossio portalegrense; tu, em Setembro, eu dois meses depois. Escrevo-te
depois de ter escutado pela televisão, comovido, a tua intervenção como
responsável pelas comemorações do Dia de Portugal e de Camões. Não poderia
deixar de fazê-lo, ao ouvir-te evocar o teu avô que, ao fundo da nossa Rua de Elvas,
dava sopa àqueles que dela precisavam, ao sentir o significado daquela casa ao
cimo da Avenida Frei Amador Arrais que foi e é a tua e, sobretudo, ao ter
contido com alguma dificuldade as lágrimas quando te ouvi mencionar o destino
de tantos portalegrenses que, para cumprirem o seu destino, se viram obrigados
a deixar o nosso concelho.
Poderia ficar por aqui e agradecer-te, com a maior
profundidade. Mas cortaria metade da verdade. Poderia dizer que o meu destino
foi igual ao teu e ao de tantos da nossa terra. Mas não contaria a história
toda, porque é mentira.
Se bem conheces o nosso concelho, e acredito que sim, sabes
que o destino daqueles que nasceram e cresceram com a democracia não foi igual
para todos. Os filhos do funcionalismo público e das elites locais, seja lá
isso o que for, nascidos e criados na cidade, nunca tiveram o mesmo tratamento
que os filhos dos operários, das costureiras e dos pequenos agricultores que
tiveram como destino crescer nas aldeias da serra e dos arredores. Os sacrifícios,
acredito, seriam semelhantes em cada família; mas enquanto os sacrifícios da
classe média citadina podiam oferecer aos seus a universidade, fora de
Portalegre, quem vinha de outros meios era obrigado a contentar-se com os
cursos ministrados pelas escolas do Instituto Politécnico de Portalegre, mesmo
que tivesse notas e capacidades para marchar até outras paragens. Como dizia
uma grada senhora, era uma espécie de prémio de consolação...
Estou grato à democracia por ter criado instituições de
ensino superior em pequenas cidades de província; se assim não fosse, ter-me-ia
ficado pelo ensino secundário e ver-me-ia transformado num apagado empregado
bancário ou de secretaria, talvez num contabilista, mesmo que tivesse asas para
outros voos. Assim sendo, filho de um operário da Robinson e de uma costureira,
vindo das serranias das Carreiras, não tirei (é certo) o curso de História que
sempre ambicionei ou o de Geografia e Planeamento Regional para o qual tinha
altas classificações (apesar de ter sido um dos agraciados com o Prémio
Francisco Fino para os melhores alunos do secundário do nosso município), mas
desenrasquei-me com uma licenciatura em ensino de Português e Francês, tirada
na nossa cidade, porque para ela ainda ia havendo dinheiro, sabe Deus com que esforço
e privações, embora para mais fosse impossível. Sem cunhas e sem parentes que
me abrissem a porta fora de Portalegre, tive de me contentar com o que havia e
dar o meu melhor, sabendo bem demais, mas tentando esquecer, que partia para a
meta da vida numa posição diferente da de outros meus conterrâneos...
Foi no final dessa licenciatura que comecei a tomar
consciência de outra realidade. Aluno no último ano do nosso saudoso Carlos
Garcia de Castro, poeta grande cujo mérito, refugiado na interioridade, nunca
foi reconhecido como deveria ter sido pelo “meio literário”, foi ele quem me
abriu os olhos para o que Portalegre era há 25 anos e, infelizmente, continua a
ser. Nunca esquecerei a sua frase: “Concorra para sair daqui. Nesta terra nunca
lhe perdoarão ser filho de um operário e de uma costureira.” Concorri, mas
passados anos caí na tentação de aceitar um convite para regressar.
Durante três anos, fui professor na instituição de Ensino
Superior onde recebera a minha formação inicial. Seduzido entretanto para a
política por estratégias ardilosas, estive quase a entrar para o partido que
agora nos governa. Acontece que, no momento decisivo, me deu para ser
independente e recusei atravessar para esse lado. Paguei caro. Não tardou muito
que deixasse de haver lugar para mim e, apesar de ter o meu mestrado concluído
e iniciado o doutoramento, fui preterido. Eu tive de regressar ao exílio; quem
ficou, apenas com a licenciatura (!), teve o lugar garantido durante vários
anos, talvez por ser filha de um ex-autarca do partido da mão fechada. Só então
percebi tudo quanto Carlos Garcia de Castro me dissera e indicara e eu,
ingénuo, esquecera. Em Portalegre, cópia em miniatura do Portugal que abomina o
mérito e tu hoje denunciaste com a firmeza que te conhecemos, não se perdoa a
falta de currículo familiar e muito menos pensarmos pela nossa cabeça,
sobretudo se isso fizer sombra a alguém bem instalado ou puser em causa o seu
pequeno poder ou a sua mediocridade.
Sou hoje um portalegrense exilado que bem gostaria de curar-se
dessa doença chamada Portalegre. Teria uma vida muito mais tranquila… Não nego:
o exílio tem-me trazido muitos momentos felizes, algumas alegrias que nunca
atingiria se tivesse ficado pelo Corro lagóia. Mas, confesso-te, são alegrias
amargas ou com sabor diminuído que, a cada momento, me recordam essa condição
de migrante por vontade alheia. A minha árvore tem raízes e custa-me saber que
os seus frutos são colhidos por outros porque da minha terra vem uma incessante
e nefasta ventania que lhe vergou o tronco e fez crescer a copa noutra
direcção.
Sabes, João, ao ouvir o teu discurso de hoje – que só não me
fez verter lágrimas porque, caramba!, um homem não chora – vi pela televisão os
meus pais aplaudindo-te. Também devem ter sentido fundamente as tuas palavras,
lembrando o seu filho único que a várias centenas de quilómetros as ouviria.
Portugal ainda é uma Portalegre ampliada, porque, como dizia Raul Brandão a
propósito de Gomes Freire de Andrade, aqui não ganham os inteligentes, mas
(para nossa desgraça colectiva) os mais espertos.
Bem hajas pelas palavras que tiveste a coragem de dizer.
Espero que a voragem deste país não as apague tão depressa. Um abraço firme e
comovido do teu conterrâneo.
Escritor e investigador
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