Airbnb: a história de uma boa ideia caseira que num instante
mudou Lisboa
Um livro quer traçar o retrato de uma década de Airbnb em
Lisboa, à boleia das profundas transformações que a capital atravessa. Em dez
anos, esta plataforma passou da promoção de uma forma de economia colaborativa
para um negócio que se “profissionalizou”. E isso é parte do problema. Lisboa e
a Airbnb é apresentado esta terça-feira.
Cristiana Faria
Moreira
Cristiana Faria Moreira 25 de Junho de 2019, 8:00
Um café numa esplanada no Largo de São Paulo, junto ao Cais
do Sodré, deixará de o ser porque o senhorio não quer renovar o contrato de
arrendamento à proprietária, nem sequer discutir o aumento da renda, que é já
de mil euros por mês. Logo adiante, uma senhora num bar falou-lhes do fim do
carácter do bairro, onde “já quase não mora ninguém”, tudo vendido para
alojamento local, com pouco mais que bares, cafés, restaurantes e lojas de
souvenirs no rés-do-chão. Não foi preciso uma grande volta pela cidade para um
grupo de investigadores do Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento de
Território, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, juntamente com Ana
Gago, do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território, da Universidade de
Lisboa, terem registado marcas de profunda transformação na vida da capital e
das suas gentes. Lisboa e a Airbnb (Book Cover), da autoria de José A. Rio
Fernandes, Luís Carvalho, Pedro Chamusca, Ana Gago e Thiago Mendes, é
apresentado esta terça-feira, às 18h30, na Fnac do Chiado.
À boleia de uma das principais plataformas de alojamento
local (AL), a Airbnb, apresentam agora um “atlas” sobre a capital — à
semelhança do que já tinham feito com o Porto —, composto por um conjunto de
mapas e textos que retratam a sua entrada e evolução na área metropolitana
durante a última década. Foi em 2009 que apareceram pela primeira vez prédios
registados na plataforma – um em Santa Maria de Belém, um nas Mercês (hoje
freguesia da Misericórdia) e outro em Alvalade. No ano seguinte, além de
aumentarem os números de registos na cidade, este tipo de alojamentos
estende-se para fora de Lisboa, aos concelhos vizinhos da Amadora, Cascais,
Mafra, Odivelas, Oeiras, Sesimbra ou Sintra. Logo aqui, escrevem os autores, as
“ruas perpendiculares da Baixa Pombalina apresentam os primeiros sinais de
densificação, nomeadamente nos bairros de Alfama e Bairro Alto. [Nesta altura],
um terço de toda a oferta da AML [Área Metropolitana de Lisboa] é composta por
quartos privados ou compartilhados, em linha com a ideia da economia de
partilha que lança a plataforma.”
Se em 2011, havia um total de 523 propriedades registadas
nos 18 concelhos da AML, quatro anos depois, em 2015, esse número tinha já
aumentado para 15.577 — 10.614 unidades listadas só no concelho de Lisboa. Ao
mesmo tempo, os dados apresentam “sinais de apego” por zonas mais litorais como
o centro histórico de Cascais, Estoril, Oeiras, o litoral de Sintra, Mafra,
Almada e Sesimbra, mas também a vila de Sintra.
Olhando para os dados de Outubro de 2018 (até ao dia 23,
data definida pelo estudo), são já 48.785 unidades listadas na plataforma,
sendo que 31.866 se localizam na capital. O número de hóspedes na cidade,
escrevem os autores, aumentou 27% desde 2014 e, em 2018, o aeroporto registou
um número recorde de chegadas — “14,5 milhões de pessoas, o que equivale a mais
de 26 vezes o número de habitantes na cidade”.
“Se em 23 de Outubro de 2018 todos os estabelecimentos
estivessem ocupados, na sua capacidade máxima, teríamos mais visitantes do que
residentes a dormir nas freguesias de Madalena, São Nicolau, Santa Justa,
Encarnação, Santo Estêvão, São Paulo, Sacramento, Sé, Santiago, Mártires,
Castelo, São Cristóvão e São Lourenço, Santa Catarina, São José, São Miguel e
Coração de Jesus” – freguesias antigas que pertencem ao centro histórico. Isto
sem contar com os hotéis, cujos estabelecimentos mais que duplicaram na última
década, passando de 105, em 2008, para 218 em 2018.
A cidade tem-se posicionado como um dos melhores destinos
europeus — os prémios que tem somado também ajudam à reputação. O centro da
cidade, sobretudo, transformou-se em local de passagem, mais do que de paragem,
de visitantes que chegam e partem. Como fica quem quer ficar, quem quer ter a
sua casa no centro de Lisboa?
Rio Fernandes, que é também presidente da Associação
Portuguesa de Geógrafos, diz que esta questão dos benefícios e prejuízos do AL
“não é uma questão preta e branco”. É antes “um certo nível de cinzento” que é
“interessante” até ao ponto em que começa a esbarrar “com outros valores de uma
cidade, que não são apenas económicos. Até ao ponto que coloca em causa valores
culturais, de bem-estar dos residentes”. A Rio Fernandes parece-lhe que
“claramente Lisboa já atingiu” o limite suportável em termos de pressão do AL e
que “faz todo o sentido haver uma acção política em torno da cidade que se
pretende — que não é apenas uma cidade para turistas”.
Em Lisboa, enquanto o regulamento municipal do Alojamento
Local não entra em vigor — está até 2 de Julho em consulta pública —, a
autarquia já suspendeu a emissão de registos nos bairros de Alfama, Mouraria,
Castelo, Madragoa e Bairro Alto.
Olhando para os números de Lisboa, se se comparar o número
de propriedades registadas na Airbnb com os seus habitantes, este “é muito
superior a outras cidades europeias”, alertam os investigadores. “Estamos a
falar de mais de 62 propriedades Airbnb por cada 1000 habitantes, em Lisboa. No
Porto é de 61,7”, aponta Luís Carvalho. Para os investigadores, já se atingiram
“claramente” os rácios que justificam uma intervenção da autarquia portuense.
A primeira legislação sobre o alojamento local entrou em
vigor em Outubro e, no mês seguinte, a câmara de Lisboa travou os novos
registos nestas zonas da cidade, mais pressionadas por este tipo de
alojamentos. Tardou em sair uma legislação que desse poder às autarquias para
intervir nestes negócios? Luís Carvalho, economista, avança com cautela: “Não
sei se tardou porque o AL, nomeadamente o que vemos com o Airbnb, teve um
crescimento muito rápido. Estamos a falar de uma realidade que aparece há dez
anos”. Mas foi sobretudo a partir de 2013, sublinha o economista, que começou a
“gerar problemas no território”.
Também na Europa se tenta lidar com o crescimento
exponencial do AL. “Em Amesterdão, li há dias que estão a pensar não expandir o
aeroporto. Do ponto de vista económico, é complicado, diria. É um pouco apostar
no empobrecimento. É uma medida extrema”, diz Rio Fernandes. Veneza está a
limitar as entradas e Barcelona está a proibir novos AL. “Claramente as cidades
estão a despertar para o problema do AL”, nota o geógrafo.
Ainda assim, observa,
existe uma “memória recente” da decadência dos edifícios nos centros históricos
de ambas as cidades, muito por causa do congelamento das rendas praticado
durante décadas, que ninguém quer que volte. E isso faz com que hoje a
reabilitação destes edifícios - “feita nem sempre da forma mais interessante”,
ressalva, e à boleia de oportunidades de negócio no AL – seja vista como
benéfica. “É por isso difícil algumas autarquias tomarem medidas de restrição.
Mas penso que são fundamentais”, sublinha. Só que além da suspensão, “seguramente”
serão necessárias outras medidas, sobretudo no que respeita à fiscalização,
onde o geógrafo reconhece haverem “grandes dificuldades”.
A profissionalização dos anfitriões
A ideia dos dois jovens designers americanos que, em 2007,
decidiram receber hóspedes na sua casa em colchões de ar (airbed) e com
pequeno-almoço (breakfast) incluído para ganhar um dinheiro extra, está longe
da realidade em que se transformou a Airbnb, inicialmente vista como uma
plataforma de partilha, em que se arrenda um quarto que não está a ser
utilizado durante uns meses. Fizeram-se grandes empresas, grandes empresários.
“Actualmente é um grande negócio”, diz Luís Carvalho, salientando um dado
curioso que encontraram durante o estudo: os 20 proprietários com um maior
número de propriedades exploram quase 3000 propriedades (6% do total) e são
responsáveis por mais de 8% do rendimento total gerado na AML (mais de 24,4
milhões de euros anuais). “Se formos fazer um cálculo económico, por um lado,
isto é bom. A curto prazo gera muita receita, muito imposto, muita economia
informal”. “O rendimento que a Airbnb gerou, num ano, em Lisboa, é o triplo do
que gerou no Porto. Estávamos a falar de cerca de 77,5 milhões. No caso de
Lisboa chega quase aos 220 milhões num ano.”
Para Pedro Chamusca, a juntar-se a esta estratégia de
contenção do AL, há que definir uma “política sobre a habitação. “Muita desta
problemática coloca-se dentro daquilo que é habitação disponível para
arrendamento temporário e de longa duração. O sucesso de qualquer política vai
depender do que for a capacidade de intervenção, não sei se nacional ou
municipal, neste sector da habitação. E o de criar alguma medida que obrigue a
que uma determinada percentagem das habitações que estão no mercado de
arrendamento seja destinado a um aluguer de longa duração”.
Lisboa e a Airbnb não é um livro neutro, mas pretende ser
isento, defendem os seus autores. “É um livro que quer levar a reflectir e não
propriamente a tomar uma posição”, diz Rio Fernandes. Por isso, além da análise
destes investigadores conta com contributos de outros especialistas e de
políticos de diferentes partidos que ajudam a compreender o retrato da
transformação de uma cidade.
tp.ocilbup@arierom.anaitsirc
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