sábado, 8 de junho de 2019

Os bastidores do financiamento a Berardo



Os bastidores do financiamento a Berardo

O investidor José Berardo ganhou voz no BCP, onde chegou a deter 7% do capital, sustentado em crédito problemático da CGD. Mas Berardo é também o rosto de uma época. Estes são os seus bastidores.

 Cristina Ferreira
Cristina Ferreira 7 de Junho de 2019, 6:31

A história do financiamento ruinoso da CGD a Berardo, e a outros, esconde outra mais intrincada cheia de protagonistas que se cruzaram no BCP. Uma história que ganha asas em Maio de 2007, quando o Conselho Geral e de Supervisão (CGS) do BCP convoca a Assembleia Geral (AG), tendo na agenda um ponto (o oito) sensível: propor que a administração executiva seja nomeada pelo CGS. Por outras palavras: o líder do CGS, Jorge Jardim Gonçalves, queria ter o poder de escolher e de demitir o CEO, que era Paulo Teixeira Pinto.

E este foi o “combustível” que fez explodir a guerra pelo poder dentro do maior banco privado português. Na equipa de gestão executiva, os alinhamentos consolidaram-se em torno do CEO (Francisco Lacerda, presidente do Banco CTT, António Castro Henriques e o polaco B. Kott) e do fundador Jardim Gonçalves (Filipe Pinhal, Christopher de Beck, Alípio Dias, António Rodrigues, Bastos Gomes). A cotação do BCP, que nos primeiros três meses do ano se mantivera abaixo dos três euros por acção, chegará a Maio acima desse valor.


Com apenas 3,88% das acções, em parte por conversão em capital de obrigações do BCP, José Berardo corria ainda numa pista solta. Mas assim que a ordem de trabalhos da AG foi divulgada, posicionou-se: “Se o Jardim quer mandar, que lance uma OPA sobre o banco.”

“V” de vitória
Filipe Pinhal convidou-o então para almoçar em Belém, no Café In. A conversa rolou em torno do BCP: “Eu já vivi muitas guerras em empresas. E uma guerra provoca sempre mortes e destruição de ambos os lados. Pelas minhas contas, você [Berardo] tem uma mais-valia entre 100 a 150 milhões de euros.” Ao que o accionista replicou: “Upa! Upa!” Traduzindo: a mais-valia seria superior a 150 milhões. O executivo insistiu: “Já o ouvi dizer que as mais-valias só são mais-valias depois de realizadas.” E Pinhal sugeriu-lhe a “venda das acções”. Berardo perguntou-lhe: “Quem é o comprador?” Tratava-se de um accionista, Pedro Teixeira Duarte. Berardo perguntou: “Qual é o prémio?” Pinhal disse-lhe que “não há razão para haver prémio, mas sim para haver desconto”. Resumindo: com a progressão do conflito interno a cotação subia, mas assim que o banco estabilizasse o preço caia. Berardo disse que ia estudar o assunto, evoca Pinhal.

Nessa tarde, o investidor telefonou a Pinhal para lhe dizer que ia ser contactado por uma pessoa da sua confiança. E assim aconteceu. Quem apareceu foi Francisco Marques Pereira, da corretora Lisbon Brokers, que o BdP impedira, em 2006, de exercer funções por um período alargado de um ano. Ao telefone, o analista explicou ao então administrador “que estava a ligar a pedido de Berardo para confirmar uma notícia que era já do seu conhecimento”: “A Lisbon Broker ia emitir uma análise a definir 3,55 euros como price target do BCP. “ Leia-se, de novo: o patamar que iria servir para Berardo negociar com Teixeira Duarte.


E arrancou a negociação: Berardo não desceu abaixo dos 3,5 euros, Teixeira Duarte não descolou dos 3,3 euros, o valor a partir do qual o grupo de construção ficaria em risco. Então, da posição de vendedor, Berardo saltou para a de comprador.

A 28 de Maio de 2007, o dia da reunião, o título BCP já se transaccionava a 3,42 euros. Berardo encabeçou a contestação do ponto oito (mudança dos estatutos) e Jorge Jardim Gonçalves acabou por recuar.

Foi no Porto que Berardo se assumiu como o rosto da guerra a Jardim Gonçalves. À saída do Palácio da Bolsa, onde decorreu a AG, foi aplaudido pelos accionistas. Entusiasmou-se. Colocou a documentação entre as pernas para libertar as mãos e fazer o “V” da vitória. Era a guerra plena.

O acesso ao centro de decisão de qualquer banco é uma prioridade para muitos accionistas, pois é onde se aprovam as megas operações de crédito e os grandes negócios. Em clima de combate aberto, a fotografia é tirada ao minuto. E começou a ser planeada nova AG do BCP, para Agosto, agora com o intuito de afastar os executivos na órbita de Jardim.

A 19 de Junho de 2007, Berardo requereu autorização ao BdP para adquirir uma participação qualificada superior a 5% e inferior a 9,99%, com recursos próprios [o que não fez] e crédito da CGD. E, como sempre sucede, quando há tensões accionistas, as expectativas dos investidores especulativos dispararam. A 26 Junho, a cotação do BCP atingiu o pico máximo de 4,3 euros. Em bolsa, o BCP valia quase 18 mil milhões de euros.

Dos contactos entre o investidor e o BdP resultou uma carta do supervisor, data de 18 de Julho, a pedir detalhes sobre o contrato de financiamento com a CGD.

A 6 de Agosto, o BCP voltou a reunir no Porto, na Alfândega. Na mesa estava a destituição dos administradores alinhados com Jardim Gonçalves, proposta por Berardo e aliados. A EDP, a Sonangol e a CGD misturaram-se no meio. Para os substituir indicavam João Talone, António de Sousa, Alexandre Relvas, Manuel Fino, Esmeralda Dourado e até Proença de Carvalho. A lista não gera consensos e a reunião é interrompida para ser retomada a 27.

No dia seguinte, 7 de Agosto, Berardo comunicou ao BdP que o aumento da posição no BCP seria feito apenas com “recurso a fundos disponibilizados pela CGD” de 350 milhões de euros.

Sem ter ainda o aval do BdP, a 8 de Agosto, Berardo sentiu-se à vontade para anunciar na SIC-Notícias que já possuía 6,8% do BCP. Acusou Jardim de ter recebido do banco, “em apenas um ano”, a quantia de “50 milhões de euros”, o que considerou “inaceitável”, uma “fraude de colarinho branco”.

A 27 de Agosto de 2007, o BCP estava ao rubro. O palco voltou a ser a Alfândega do Porto. Contavam-se espingardas. Paulo Teixeira Pinto comenta que ali se viveu uma “espécie de psicodrama”. E renuncia ao cargo de CEO.

Passados dois dias, a 29 de Agosto, os serviços do BdP escreveram a Berardo a comunicar que o autorizavam a aumentar a posição no BCP, com o crédito de 350 milhões da CGD e a promessa de penhor das acções a adquirir – o mesmo que dizer, sem dar garantias reais. Os técnicos transmitem um pormenor relevante: o pedido de Berardo fora analisado e aprovado, a 21, pelo Conselho de Administração do BdP liderado por Vítor Constâncio.

Coligação de interesses
A sucessão de episódios expõe uma coligação de interesses financeiros, empresariais e políticos, desenhada na esfera do então primeiro-ministro, José Sócrates. No centro evidencia-se um plano de reconfiguração do poder accionista dentro das grandes empresas. E que não visava apenas o BCP, mas também a PT e a EDP, com a CGD (accionista da PT, EDP e BCP) a ser instrumental e o BES (accionista da PT e da EDP) a funcionar como veículo-apoio.

Desde Novembro de 2007 que o governador tinha nas mãos provas levadas por Berardo, de que Jardim Gonçalves criara em 2000-2002 offshores para manipular a cotação do banco, que na altura estava em queda livre (a crise das dot.com). E não lhe perdoava. E vai rejeitar a nomeação de Filipe Pinhal (que entretanto substituíra Teixeira Pinto como interino) como CEO do BCP.
Constâncio tornou-se assim peça-chave na polémica transferência da gestão da CGD – Carlos Santos Ferreira e os executivos Armando Vara (hoje a cumprir pena de prisão) e Vítor Fernandes (agora administrador do Novo Banco) – para o BCP. Com o apoio de três accionistas grandes devedores tóxicos do banco público: Berardo, Manuel Fino e João Pereira Coutinho.

As movimentações de 2007 em torno do BCP decorreram num quadro de reviravolta financeira, menorizada por todos mas que veio a tornar o desfecho da disputa imprevisível. A 31 de Dezembro de 2007, o BCP, que seis meses antes valia em bolsa os tais 4,3 euros por acção, fechou abaixo dos três euros: 2,98. E todos saíram a perder, incluindo os contribuintes. Entre CGD, BCP e Novo Banco, Berardo sozinho chegou a dever mais de 900 milhões.

tp.ocilbup@arierrefc

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