Os bastidores do financiamento a Berardo
O investidor José Berardo ganhou voz no BCP, onde chegou a
deter 7% do capital, sustentado em crédito problemático da CGD. Mas Berardo é
também o rosto de uma época. Estes são os seus bastidores.
Cristina Ferreira
Cristina Ferreira 7 de Junho de 2019, 6:31
A história do financiamento ruinoso da CGD a Berardo, e a
outros, esconde outra mais intrincada cheia de protagonistas que se cruzaram no
BCP. Uma história que ganha asas em Maio de 2007, quando o Conselho Geral e de
Supervisão (CGS) do BCP convoca a Assembleia Geral (AG), tendo na agenda um
ponto (o oito) sensível: propor que a administração executiva seja nomeada pelo
CGS. Por outras palavras: o líder do CGS, Jorge Jardim Gonçalves, queria ter o
poder de escolher e de demitir o CEO, que era Paulo Teixeira Pinto.
E este foi o “combustível” que fez explodir a guerra pelo
poder dentro do maior banco privado português. Na equipa de gestão executiva,
os alinhamentos consolidaram-se em torno do CEO (Francisco Lacerda, presidente
do Banco CTT, António Castro Henriques e o polaco B. Kott) e do fundador Jardim
Gonçalves (Filipe Pinhal, Christopher de Beck, Alípio Dias, António Rodrigues,
Bastos Gomes). A cotação do BCP, que nos primeiros três meses do ano se
mantivera abaixo dos três euros por acção, chegará a Maio acima desse valor.
Com apenas 3,88% das acções, em parte por conversão em
capital de obrigações do BCP, José Berardo corria ainda numa pista solta. Mas
assim que a ordem de trabalhos da AG foi divulgada, posicionou-se: “Se o Jardim
quer mandar, que lance uma OPA sobre o banco.”
“V” de vitória
Filipe Pinhal convidou-o então para almoçar em Belém, no
Café In. A conversa rolou em torno do BCP: “Eu já vivi muitas guerras em
empresas. E uma guerra provoca sempre mortes e destruição de ambos os lados.
Pelas minhas contas, você [Berardo] tem uma mais-valia entre 100 a 150 milhões
de euros.” Ao que o accionista replicou: “Upa! Upa!” Traduzindo: a mais-valia
seria superior a 150 milhões. O executivo insistiu: “Já o ouvi dizer que as
mais-valias só são mais-valias depois de realizadas.” E Pinhal sugeriu-lhe a
“venda das acções”. Berardo perguntou-lhe: “Quem é o comprador?” Tratava-se de
um accionista, Pedro Teixeira Duarte. Berardo perguntou: “Qual é o prémio?”
Pinhal disse-lhe que “não há razão para haver prémio, mas sim para haver
desconto”. Resumindo: com a progressão do conflito interno a cotação subia, mas
assim que o banco estabilizasse o preço caia. Berardo disse que ia estudar o
assunto, evoca Pinhal.
Nessa tarde, o investidor telefonou a Pinhal para lhe dizer
que ia ser contactado por uma pessoa da sua confiança. E assim aconteceu. Quem
apareceu foi Francisco Marques Pereira, da corretora Lisbon Brokers, que o BdP
impedira, em 2006, de exercer funções por um período alargado de um ano. Ao telefone,
o analista explicou ao então administrador “que estava a ligar a pedido de
Berardo para confirmar uma notícia que era já do seu conhecimento”: “A Lisbon
Broker ia emitir uma análise a definir 3,55 euros como price target do BCP. “
Leia-se, de novo: o patamar que iria servir para Berardo negociar com Teixeira
Duarte.
E arrancou a negociação: Berardo não desceu abaixo dos 3,5
euros, Teixeira Duarte não descolou dos 3,3 euros, o valor a partir do qual o
grupo de construção ficaria em risco. Então, da posição de vendedor, Berardo
saltou para a de comprador.
A 28 de Maio de 2007, o dia da reunião, o título BCP já se
transaccionava a 3,42 euros. Berardo encabeçou a contestação do ponto oito
(mudança dos estatutos) e Jorge Jardim Gonçalves acabou por recuar.
Foi no Porto que Berardo se assumiu como o rosto da guerra a
Jardim Gonçalves. À saída do Palácio da Bolsa, onde decorreu a AG, foi
aplaudido pelos accionistas. Entusiasmou-se. Colocou a documentação entre as
pernas para libertar as mãos e fazer o “V” da vitória. Era a guerra plena.
O acesso ao centro de decisão de qualquer banco é uma
prioridade para muitos accionistas, pois é onde se aprovam as megas operações
de crédito e os grandes negócios. Em clima de combate aberto, a fotografia é
tirada ao minuto. E começou a ser planeada nova AG do BCP, para Agosto, agora
com o intuito de afastar os executivos na órbita de Jardim.
A 19 de Junho de 2007, Berardo requereu autorização ao BdP
para adquirir uma participação qualificada superior a 5% e inferior a 9,99%,
com recursos próprios [o que não fez] e crédito da CGD. E, como sempre sucede,
quando há tensões accionistas, as expectativas dos investidores especulativos
dispararam. A 26 Junho, a cotação do BCP atingiu o pico máximo de 4,3 euros. Em
bolsa, o BCP valia quase 18 mil milhões de euros.
Dos contactos entre o investidor e o BdP resultou uma carta
do supervisor, data de 18 de Julho, a pedir detalhes sobre o contrato de
financiamento com a CGD.
A 6 de Agosto, o BCP voltou a reunir no Porto, na Alfândega.
Na mesa estava a destituição dos administradores alinhados com Jardim
Gonçalves, proposta por Berardo e aliados. A EDP, a Sonangol e a CGD
misturaram-se no meio. Para os substituir indicavam João Talone, António de
Sousa, Alexandre Relvas, Manuel Fino, Esmeralda Dourado e até Proença de
Carvalho. A lista não gera consensos e a reunião é interrompida para ser
retomada a 27.
No dia seguinte, 7 de Agosto, Berardo comunicou ao BdP que o
aumento da posição no BCP seria feito apenas com “recurso a fundos
disponibilizados pela CGD” de 350 milhões de euros.
Sem ter ainda o aval do BdP, a 8 de Agosto, Berardo
sentiu-se à vontade para anunciar na SIC-Notícias que já possuía 6,8% do BCP.
Acusou Jardim de ter recebido do banco, “em apenas um ano”, a quantia de “50
milhões de euros”, o que considerou “inaceitável”, uma “fraude de colarinho
branco”.
A 27 de Agosto de 2007, o BCP estava ao rubro. O palco
voltou a ser a Alfândega do Porto. Contavam-se espingardas. Paulo Teixeira
Pinto comenta que ali se viveu uma “espécie de psicodrama”. E renuncia ao cargo
de CEO.
Passados dois dias, a 29 de Agosto, os serviços do BdP
escreveram a Berardo a comunicar que o autorizavam a aumentar a posição no BCP,
com o crédito de 350 milhões da CGD e a promessa de penhor das acções a
adquirir – o mesmo que dizer, sem dar garantias reais. Os técnicos transmitem
um pormenor relevante: o pedido de Berardo fora analisado e aprovado, a 21,
pelo Conselho de Administração do BdP liderado por Vítor Constâncio.
Coligação de interesses
A sucessão de episódios expõe uma coligação de interesses
financeiros, empresariais e políticos, desenhada na esfera do então
primeiro-ministro, José Sócrates. No centro evidencia-se um plano de
reconfiguração do poder accionista dentro das grandes empresas. E que não
visava apenas o BCP, mas também a PT e a EDP, com a CGD (accionista da PT, EDP
e BCP) a ser instrumental e o BES (accionista da PT e da EDP) a funcionar como
veículo-apoio.
Desde Novembro de 2007 que o governador tinha nas mãos
provas levadas por Berardo, de que Jardim Gonçalves criara em 2000-2002
offshores para manipular a cotação do banco, que na altura estava em queda
livre (a crise das dot.com). E não lhe perdoava. E vai rejeitar a nomeação de
Filipe Pinhal (que entretanto substituíra Teixeira Pinto como interino) como
CEO do BCP.
Constâncio tornou-se assim peça-chave na polémica
transferência da gestão da CGD – Carlos Santos Ferreira e os executivos Armando
Vara (hoje a cumprir pena de prisão) e Vítor Fernandes (agora administrador do
Novo Banco) – para o BCP. Com o apoio de três accionistas grandes devedores
tóxicos do banco público: Berardo, Manuel Fino e João Pereira Coutinho.
As movimentações de 2007 em torno do BCP decorreram num
quadro de reviravolta financeira, menorizada por todos mas que veio a tornar o
desfecho da disputa imprevisível. A 31 de Dezembro de 2007, o BCP, que seis
meses antes valia em bolsa os tais 4,3 euros por acção, fechou abaixo dos três
euros: 2,98. E todos saíram a perder, incluindo os contribuintes. Entre CGD,
BCP e Novo Banco, Berardo sozinho chegou a dever mais de 900 milhões.
tp.ocilbup@arierrefc
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