Dêem-nos alguma coisa em que acreditar
Os portugueses lutaram pela liberdade em 1974. Lutaram pela
democracia em 1975. Lutaram pela integração na Comunidade Europeia nos anos 80.
Lutaram pela entrada na moeda única durante a década de 90. Não é fácil saber
porque é que estamos a lutar hoje em dia. O discurso na íntegra de João Miguel
Tavares nas comemorações do 10 de Junho, a cuja comissão organizadora presidiu.
João miguel Tavares
10 de Junho de 2019, 14:08
Senhor Presidente da República Portuguesa,
Senhor Presidente da República de Cabo Verde,
Autoridades civis e militares,
Minhas senhoras e meus senhores.
I
Eu vivi e cresci a 100 metros do local onde me encontro, ali
mesmo, no cimo da Avenida Frei Amador Arrais. Foi nessa casa que habitei até
fazer aquilo que a maior parte dos portalegrenses faz após acabar o secundário:
deixar a cidade para ir estudar fora, na universidade. Boa parte dos
portalegrenses, infelizmente, já não volta a viver aqui. Eu não voltei. Mas
aquela será sempre a minha casa. E esta foi, é e será sempre a minha cidade.
Tenho a honra de ser o primeiro filho da democracia a
presidir às comemorações do 10 de Junho. Não sei o que é viver sem liberdade.
Devo ao Portugal democrático e ao Estado português boa parte daquilo que sou.
Sou filho de dois funcionários públicos. Fiz o ensino básico e secundário numa
escola pública. Licenciei-me numa universidade pública.
Portugal não falhou comigo. Permitiu que um simples
estudante de uma cidade do interior, sem qualquer ligação à capital e às suas
elites, fosse subindo aos poucos na vida e chegasse até aqui.
O meu crescimento acompanhou o crescimento da democracia
portuguesa.
Vi o quanto o país mudou.
Até ao final da década de 90, Lisboa estava a mais de quatro
horas de autocarro de Portalegre, e a essa distância física correspondia uma
ainda maior distância cultural. Os livros eram poucos e vendiam-se nas
papelarias; o cinema só funcionava ao fim-de-semana; as bandas que nós
queríamos ouvir não passavam por cá.
Mas o país progredia, e eu via-o progredir. Os meus pais
estudaram mais anos e tiveram mais oportunidades do que os meus avós. Eu
estudei mais anos e tive mais oportunidades do que os meus pais.
Como acontecia em tantas casas, a minha família investia
parte do salário a comprar livros e enciclopédias que chegavam pelo correio, a
prestações. Esses livros representavam o conhecimento e a educação que as
famílias ambicionavam para os seus filhos.
A geração dos meus pais sacrificou-se para que os filhos
tivessem o que eles nunca tiveram. Mas é possível que eles tenham tido aquilo
que mais nos tem faltado nos últimos vinte anos: um objectivo claro para as
suas vidas e um caminho para trilhar na sociedade portuguesa
Os pais lutavam por isso – lutavam menos por eles, do que
pelas suas crianças, para que elas tivessem uma vida melhor, estudassem, fossem
“alguém”. Os seus filhos chegariam às universidades. Estudariam dezasseis,
dezassete, vinte anos, se fosse preciso. Viajariam mais. As suas férias não
estariam limitadas aos 15 dias em Albufeira. Seriam grandes. Seriam felizes.
Seriam europeus.
A geração dos meus pais sacrificou-se para que os filhos tivessem
o que eles nunca tiveram. Mas é possível que eles tenham tido aquilo que mais
nos tem faltado nos últimos vinte anos: um objectivo claro para as suas vidas e
um caminho para trilhar na sociedade portuguesa.
Os portugueses lutaram pela liberdade em 1974. Lutaram pela
democracia em 1975. Lutaram pela integração na Comunidade Europeia nos anos 80.
Lutaram pela entrada na moeda única durante a década de 90.
Não é fácil saber porque é que estamos a lutar hoje em dia.
II
É nessa dificuldade que repousam tantas das nossas
angústias.
As pessoas de hoje não são diferentes das de ontem: enquanto
indivíduos, continuamos a amar, a sofrer, a chorar, a rir, hoje como sempre.
Boa parte de nós, talvez julgue mesmo que a política é somente um cenário
longínquo, distante da vida que nos importa, que é aquela que está mais próxima
de nós. Daí o chamado “desinteresse pela política”.
Mas creio que este sentimento é já uma consequência dos
nossos próprios fracassos. A integração na Europa do euro não correu como
queríamos. Construímos auto-estradas onde não passam carros. Traçámos planos
grandiosos que nunca se cumpriram. Afundámo-nos em dívida. Ficámos a um passo
da bancarrota. Três vezes – três vezes já – tivemos de pedir auxílio externo em
45 anos de democracia. É demasiado.
Perguntamo-nos como foi isto possível. Criámos comissões de
inquérito para encontrar responsáveis. Descobrimos um país amnésico, cheio de
gente que não sabe de nada, que não viu nada, que não ouviu nada. Percebemos
que a corrupção é um problema real, grave, disseminado, que a Justiça é lenta a
responder-lhe e que a classe política não se tem empenhado o suficiente a
enfrentá-la.
A corrupção não é apenas um assalto ao dinheiro que é de
todos nós – é colocar cada jovem de Portalegre, de Viseu, de Bragança, mais
longe do seu sonho.
O sonho de amanhã ser-se mais do que se é hoje vai-se
desvanecendo, porque cada família, cada pai, cada adolescente, convence-se de
que o jogo está viciado. Que não é pelo talento e pelo trabalho que se ascende
na vida. Que o mérito não chega. Que é preciso conhecer as pessoas certas. Que
é preciso ter os amigos certos. Que é preciso nascer na família certa.
Os miúdos que não nasceram nesse tipo de “família certa” têm
direito aos mesmos sonhos que os filhos das elites portuguesas – todos nós
concordamos com isto. Mas será que estamos a fazer alguma coisa para que aquilo
com que concordamos se torne realidade? Será que podemos garantir que o talento
conta mais do que a família em que cada um nasceu? Será que a igualdade de
oportunidades existe?
No nosso país instalou-se esta convicção perigosa: um jovem
talentoso que queira singrar na carreira exclusivamente através do seu mérito,
a melhor solução que tem ao seu alcance é emigrar. Isto é uma tragédia
portuguesa
Quando eu digo à Carolina, ao Tomás, ao Gui ou à Rita – os meus quatro filhos – “leiam mais, trabalhem mais, que o vosso esforço será recompensado” – será que lhes estou a dizer a verdade?
Os meus pais disseram-me isso a mim. E eu estou aqui. Mas
será que a mesa está equilibrada e o elevador social funciona hoje da mesma
forma? Ou a vida estará bem mais difícil para um jovem na casa dos vinte anos,
que numa economia de baixo crescimento tem de competir com uma geração mais
velha já licenciada, integrada num mercado de trabalho rígido, que confere
muita protecção a quem tem um lugar no quadro e muito pouca protecção a quem
não o tem?
No nosso país instalou-se esta convicção perigosa: um jovem
talentoso que queira singrar na carreira exclusivamente através do seu mérito,
a melhor solução que tem ao seu alcance é emigrar. Isto é uma tragédia
portuguesa.
Não podemos condenar os nossos filhos ao discurso fatalista
de um Portugal que é assim, porque nunca foi de outra maneira.
O desespero não nasce do erro, mas do sentimento de que não
vale a pena esforçarmo-nos para que as coisas sejam de outra forma – porque
nunca serão.
A falta de esperança e a desigualdade de oportunidades podem
dar origem a uma geração de adultos desencantados, incapazes de acreditar num
país meritocrático.
Esta perda de esperança aparece depois travestida de
lucidez, e rapidamente se transforma numa forma de cinismo. Achamos que temos
de ser pessimistas para sermos lúcidos. Que temos de ser desesperançados para
sermos realistas. Que temos de ser eternamente desconfiados para não sermos
comidos por parvos.
Há o “eles” – os políticos, as instituições, as várias
autoridades, muitas das quais (receio bem) se encontram hoje aqui presentes. E
há o “nós” – eu, a minha família, os meus colegas, os meus amigos. Entre o
“nós” e o “eles” há uma distância atlântica, com raríssimas pontes pelo meio
Guardamos os bons sentimentos para as nossas relações
pessoais, onde somos certamente seres encantadores, mas quando se trata de
reflectir sobre o nosso papel enquanto cidadãos, partes de uma nação e de um
tecido social e político comum, colocamos uma mola no nariz e dizemos que pouco
temos a ver com isso, porque os políticos não se recomendam.
Há o “eles” – os políticos, as instituições, as várias
autoridades, muitas das quais (receio bem) se encontram hoje aqui presentes. E
há o “nós” – eu, a minha família, os meus colegas, os meus amigos.
Entre o “nós” e o “eles” há uma distância atlântica, com
raríssimas pontes pelo meio.
“Eles” não têm nada a ver connosco. “Nós” não temos nada a
ver com eles.
III
O senhor Presidente da República costuma dizer com
frequência que os portugueses, quando querem, são os melhores do mundo. O
senhor Presidente da República que me perdoe o atrevimento: não há qualquer
razão para os portugueses serem melhores do que os finlandeses, os nepaleses ou
os quenianos.
Partilhamos uma língua, um país com uma estabilidade de
séculos, sem divisões, e é uma pena que por vezes pareçamos cansados de nós próprios.
Tivemos História a mais; agora temos História a menos. Passámos da exaltação
heróica e primária do nosso passado, no tempo do Estado Novo, para acabarmos
com receio de usar a palavra “Descobrimentos”
Mas tenho uma boa notícia para dar: também não precisamos de
ser melhores.
Para quem ainda acredita numa ideia de comunidade, os
portugueses são aqueles que estão ao nosso lado. E isso conta. E conta muito.
Partilhamos uma língua, um país com uma estabilidade de
séculos, sem divisões, e é uma pena que por vezes pareçamos cansados de nós
próprios. Tivemos História a mais; agora temos História a menos. Passámos da
exaltação heróica e primária do nosso passado, no tempo do Estado Novo, para
acabarmos com receio de usar a palavra “Descobrimentos”. Simplificamos a
História de forma infantil.
No século XVI, Luís de Camões já cantava os seus amores por
uma escrava de pele negra – tão bela e tão negra que até a neve desejava mudar
de cor. Para desarrumar os estereótipos, talvez precisemos de um pouco menos de
Lusíadas e de um pouco mais de lírica camoniana.
Menos exaltação patriótica e mais paixão por cada ser humano
– eis uma fórmula que me parece adequada aos tempos que vivemos. Sendo já
poucos os que acreditam nas grandes narrativas, continuamos a acreditar nas
pessoas que temos ao nosso lado. E esse é o caminho para a identificação
possível dos portugueses com Portugal.
Sozinhos somos ninguém. A velha pergunta bíblica “acaso sou
eu o guarda do meu irmão?” tem uma única resposta numa sociedade decente: “Sim,
és.” Num país algo desencantado, o grande desafio está em tentar desenvolver um
sentimento de pertença que vá além dos prodígios do futebol.
IV
Quando o senhor Presidente da República me convidou para
presidir a estas cerimónias houve muita gente que ficou espantada, incluindo eu
próprio. Mas com o tempo fui-me afeiçoando à ideia de que talvez não seja absolutamente
necessário ter méritos extraordinários para estar aqui, e que Portugal precisa
cada vez mais de um 10 de Junho feito de pessoas comuns e para pessoas comuns.
Um 10 de Junho que aproxime as linhas entre o “nós” e o
“eles”. Uma festa do português anónimo, da arraia-miúda, daquelas pessoas que
todos os dias fazem mais por este país do que elas próprias imaginam.
O 10 de Junho do meu avô, que tinha uma casa de pasto no
fundo da rua de Elvas e oferecia um prato de sopa a quem não tinha dinheiro para
pagar uma refeição.
O 10 de Junho dos meus sogros, que tiveram de fugir de
Moçambique em 1975 e reconstruir toda a vida em Portugal com seis filhos para
criar, alguns dos quais ficaram dispersos pela família até eles voltarem a ter
condições para os acolher.
O 10 de Junho das três mulheres que criaram a minha mulher,
uma delas originária de Timor, que viajaram desde o outro lado do mundo para
acolher um bebé nascido em Moçambique e fazê-lo crescer numa pequena aldeia da
Beira Interior.
São histórias de vida impressionantes.
Portugal não é composto apenas por instituições longínquas,
Parlamentos em Lisboa, políticos distantes de quem dizemos mal no café.
Temos o hábito de levantar a cabeça à procura de grandes
exemplos, e nem sempre os encontramos – mas muitas vezes os melhores exemplos
estão ao nosso lado, e alguns deles começam em nós mesmos. Sobre cada um de nós
recai a responsabilidade de construir um país do qual nos possamos orgulhar
Portugal somos nós. Sou eu. São as pessoas que estão
sentadas em lugares privilegiados nestas bancadas. São os militares que
desfilam à nossa frente. São os portalegrenses debaixo do sol de Junho. São as
pessoas lá em casa, a ouvir estas palavras.
Todos temos nas nossas famílias histórias destas, de gente
banal envolvida em feitos extraordinários.
Temos o hábito de levantar a cabeça à procura de grandes
exemplos, e nem sempre os encontramos – mas muitas vezes os melhores exemplos
estão ao nosso lado, e alguns deles começam em nós mesmos.
Sobre cada um de nós recai a responsabilidade de construir
um país do qual nos possamos orgulhar.
Aos políticos que dirigem Portugal, e representam os seus
cidadãos, compete-lhes contribuir para esse esforço, propondo-nos um caminho
inteligível e justo. Os portugueses podem não ser os melhores do mundo, mas são
com certeza capazes de coisas extraordinárias desde que sintam que estão a
fazê-las por um bem maior.
Aquilo que melhor distingue as pessoas não é serem de
esquerda ou de direita, mas a firmeza do seu carácter e a força dos seus
princípios. Aquilo que se pede aos políticos, sejam eles de esquerda ou de
direita, é que nos dêem alguma coisa em que acreditar. Que alimentem um
sentimento comum de pertença. Que ofereçam um objectivo claro à comunidade que
lideram
A política não falha apenas quando conduz o país à
bancarrota. A política falha quando deixa o país sem rumo e permite que se
quebre a aliança entre o indivíduo e o cidadão.
Aquilo que melhor distingue as pessoas não é serem de
esquerda ou de direita, mas a firmeza do seu carácter e a força dos seus
princípios. Aquilo que se pede aos políticos, sejam eles de esquerda ou de
direita, é que nos dêem alguma coisa em que acreditar. Que alimentem um
sentimento comum de pertença. Que ofereçam um objectivo claro à comunidade que
lideram.
Nós precisamos de sentir que contamos para alguma coisa.
(Além de pagar impostos.)
Cada português precisa de sentir que conta, precisa de
sentir que os seus gestos não contribuem apenas para a sua felicidade
individual, ou para a felicidade da sua família, mas que têm um efeito real na
sociedade, e podem, à sua medida, servir o país.
É preciso dizer ao velho que perdeu tudo nos incêndios de
Pedrógão – tu contas.
É preciso dizer ao miúdo que habita na pobreza do Bairro da
Jamaica – tu contas.
É preciso dizer ao cabo-verdiano que trocou a sua terra por
Portugal, em busca de um futuro melhor para os seus filhos – tu contas, e os
teus filhos não estão condenados a passarem o resto das suas vidas a limpar as
casas da classe alta de Lisboa ou do Porto.
É preciso dizer à mãe ou ao pai que se sacrifica diariamente
para que o seu filho possa estudar numa boa escola – tu contas, o teu esforço
não será desperdiçado, e enquanto cidadão português tens os mesmos direitos e a
mesma dignidade que um primeiro-ministro ou um Presidente.
E se alguma pessoa emproada vos perguntar pelo vosso
currículo, digam-lhe que currículo tem tanto o académico que decide dedicar a
sua vida ao estudo como o pai que decide dedicar a sua vida aos filhos.
Currículo tem tanto o cientista que dedica o seu tempo à
investigação como o reformado ou o jovem que dedicam o seu tempo a ajudar os
outros.
São diferentes tipos de currículo, mas são currículo.
E se ainda assim vos perguntarem “quem é que tu achas que
és?”, respondam apenas: “Sou um cidadão que todos os dias faz a sua parte para
que possamos viver num Portugal melhor e mais justo.”
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