A terrível tentação de mandar no Ministério Público
Chega a ser chocante a quantidade de pessoas que em Portugal
se esforça por associar o combate à corrupção a uma qualquer forma de
populismo.
João Miguel Tavares
27 de Junho de 2019, 6:02
Se perguntarem a qualquer português se ele acha que
precisamos de um Ministério Público mais autónomo ou de um Ministério Público
mais dependente do poder político, eu diria que não é preciso ser vidente para
adivinhar a resposta. É óbvio que as pessoas sentem que a Justiça deve aumentar
a sua independência face ao poder executivo, e não diminuí-la. É óbvio que
todos os portugueses conhecem os efeitos dramáticos de um Ministério Público
politicamente manietado, como aconteceu nos tempos de Fernando Pinto Monteiro.
É óbvio que o desprestígio actual da classe política e os problemas graves no
combate à corrupção desaconselham que a Assembleia da República reforce os seus
poderes de vigilância sobre os detentores do monopólio da acusação criminal em
Portugal – é, aliás, precisamente o contrário que deveria estar a acontecer.
Por tudo isto, devo dizer que poucas greves serão tão justas
e justificadas quanto a dos magistrados do Ministério Público, que decidiram
parar três dias pela defesa, valorização e independência das suas carreiras,
numa altura em que PS e PSD estão escandalosamente unidos no desejo de alterar
o Estatuto do Ministério Público e a composição do seu Conselho Superior
(CSMP). O CSMP tem actualmente 19 membros. Cinco são procuradores-gerais, cinco
são eleitos pelo Parlamento, dois nomeados pelo ministro da Justiça e sete
eleitos pelos procuradores. Ou seja, há 12 magistrados do MP para sete membros
de nomeação política. O PS quer reduzir o número de procuradores que podem ser eleitos
pelos seus pares. O PSD, nesta fase de absoluto desnorte, quer mesmo inverter a
maioria que existe no CSMP. Rui Rio propõe diminuir o CSMP de 19 para 17
membros, passar de cinco para sete os conselheiros nomeados pela Assembleia da
República e manter os dois que o ministro da Justiça já nomeia actualmente.
Assim, o CSMP passaria a ter uma maioria de nove membros nomeados pelo poder
político contra oito procuradores.
Mas há mais. Como Luís Rosa explicou no Observador, na
proposta do PS há ainda outras medidas polémicas, como a restrição da autonomia
financeira da PGR, colocando na dependência do governo autorizações para a
realização de perícias essenciais para a investigação de crimes complexos; ou a
necessidade de o Ministério Público justificar os pedidos de documentação a
entidades privadas, pondo em causa o secretismo de investigações sensíveis.
Este é daquele tipo de subtileza que costuma ser introduzido às escondidas no
escurinho dos gabinetes, mas que pode ter um impacto gigantesco no dia-a-dia
das investigações. E, em última análise, a pergunta que deve ser feita é: para
quê? Para que é que estas alterações servem? Qual é a lógica que preside a tudo
isto?
Eu digo-vos qual é a lógica: para PS e PSD, a independência
do poder judicial deve estar restrita aos juízes e aos tribunais. O Ministério
Público, no seu triste entendimento, deve ser apenas uma parte da administração
pública, sujeita a controlo governamental. E é para isso que o Bloco Central
está a trabalhar, à boleia de um PSD sem pingo de vergonha na cara, que tem
vindo a destruir o excelente legado nesta matéria de Passos Coelho e Paula
Teixeira da Cruz. A boa notícia é que as pessoas, desta vez, não estão a
dormir. Estas propostas não podem passar. Nem nesta legislatura, nem nunca.
Chega a ser chocante a quantidade de pessoas que em Portugal
se esforça por associar o combate à corrupção a uma qualquer forma de
populismo.
PS e PSD arriscavam transformar PGR na “Rainha de
Inglaterra”
A ex-procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal,
disse que as propostas chumbadas do PS e do PSD punham em causa a autonomia do
MP e transformariam a PGR na "Rainha de Inglaterra".
Lusa
8:42
A ex-procuradora-geral da República (PGR) Joana Marques
Vidal reconheceu esta quarta-feira que, caso as propostas parlamentares de
alteração do Estatuto do Ministério Público fossem aprovadas, o PGR seria
transformado, finalmente, na “Rainha de Inglaterra”.
Recuperando, com ironia, uma imagem utilizada por Pinto
Monteiro (seu antecessor) para justificar a alegada falta de poderes do PGR,
Joana Marques Vidal precisou aos jornalistas no final da conferência Como
Combater a Corrupção sem Autonomia que essa comparação tinha a ver com as
alterações ao Estatuto do MP apresentadas pelos grupos parlamentares e não com
a proposta do Governo, com a qual em linhas gerais concorda.
Numa sessão realizada em Lisboa, em que criticou as
propostas avançadas pelo PSD e PS, Joana Marques Vidal adiantou que caso todas
as alterações fossem efetivamente levadas à letra da lei, estariam a retirar o
poder ao PGR de propor a nomeação dos cargos dirigentes dos departamentos de
investigação criminal, incluindo do Departamento Central de Investigação e Ação
Penal (DCIAP), que trata dos processos ligados à corrupção e restante
criminalidade económico-financeira mais grave e complexa.
A ex-PGR alertou que tais propostas levariam a uma
transferência de competências nessa matéria do PGR para o Conselho Superior do
Ministério Público (CSMP), “confundindo competências que tem que ser
necessariamente separadas”. Joana Marques Vidal falava pouco antes das propostas
de alteração à composição do Conselho Superior do Ministério Público (CSMP)
feitas pelo PS e pelo PSD terem sido chumbadas em sede de comissão parlamentar,
sendo aprovada a proposta do Governo.
No entender de Joana Marques Vidal, o PGR tem de continuar a
ser o responsável pela direção da atividade funcional e hierárquica do
Ministério Público (MP) e o CSMP responsável pela avaliação de mérito, pelo
poder disciplinar e pela gestão de quadros (colocação de magistrados mediante
regras).
“Qualquer proposta que altere este equilíbrio de poderes e
confunda as competências de certa forma põe em causa um modelo que é um modelo
de equilíbrio de poderes”, declarou Joana Marques Vidal, notando que as
propostas parlamentares levariam a um “desequilíbrio”, afetando o funcionamento
interno do MP.
A ex-PGR acrescentou que “mais grave do que isso” seria o
facto de tais propostas parlamentares permitirem a “possibilidade de uma
eventual interferência do poder político naquilo que é a gestão processual e a
atividade do MP, pondo em causa a autonomia [do MP]”, e, dessa forma, também a
independência dos tribunais. Tudo somado, concluiu, poria em causa o “princípio
da separação de poderes num Estado de Direito Democrático”.
Joana Marques Vidal admitiu, em contrapartida, que a
proposta de aditamento que o PS apresentou na terça-feira terá resolvido na
generalidade a questão do paralelismo entre a magistratura judicial e do MP,
designadamente em matéria remuneratória, mas vincou que o paralelismo não se
resume às questões salariais, pois tem também a ver com autonomia e
independência.
A ex-PGR considerou que só a proposta do grupo parlamentar
PCP assegura a autonomia financeira do MP, indo mais longe do que a própria
proposta do Governo que prevê a autonomia financeira da Procuradoria-Geral da
República.
Um dia após a divulgação do relatório do GRECO (Grupo de
Estados contra a Corrupção) que coloca Portugal entre os países com menor taxa
de implementação de medidas anticorrupção, Joana Marques Vidal aproveitou para
lembrar que este órgão do Conselho da Europa recomenda há anos que seja
atribuída autonomia financeira ao MP, tarefa ainda por realizar no caso
português. “É preciso uma visão sistémica e integrada da autonomia do MP”,
defendeu, na conferência, a ex-PGR.
No encontro esta quarta-feira, com a presença de centenas de
magistrados do MP que estiveram em greve, intervieram ainda o diretor do DCIAP,
Albano Pinto, e os jornalistas Eduardo Dâmaso e João Miguel Tavares. Albano
Pinto, que iniciou funções há cinco meses no DCIAP, considerou que a proposta
parlamentar do PS coloca em causa a autonomia do DCIAP, retirando-lhe
capacidade operacional e controlo de meios humanos e técnicos.
“Se querem efetivamente combater a corrupção e o
branqueamento de capitais, seria útil e importante atribuir ao DCIAP essa
autonomia financeira”, enfatizou.
O diretor do DCIAP criticou também o artigo da proposta do
PS sobre “dever de colaboração” que impõe que o MP para aceder a documentação e
a informações de entidades públicas tenha que justificar o motivo, o que na
prática levaria a que se soubesse o que estava a ser investigado e contra quem.
“O MP não requisita documentos por requisitar, fá-lo em nome
da lei”, vincou num debate em que o jornalista Eduardo Dâmaso apontou a falta
gritante de meios humanos na Unidade Nacional de Combate à Corrupção (UNCC) da
Polícia Judiciária, uma polícia cuja colaboração é fundamental para o MP na
investigação da corrupção e da grande criminalidade económico-financeira.
Sem comentários:
Enviar um comentário