quinta-feira, 27 de junho de 2019

A terrível tentação de mandar no Ministério Público / PS e PSD arriscavam transformar PGR na “Rainha de Inglaterra”




A terrível tentação de mandar no Ministério Público

Chega a ser chocante a quantidade de pessoas que em Portugal se esforça por associar o combate à corrupção a uma qualquer forma de populismo.

João Miguel Tavares
27 de Junho de 2019, 6:02

Se perguntarem a qualquer português se ele acha que precisamos de um Ministério Público mais autónomo ou de um Ministério Público mais dependente do poder político, eu diria que não é preciso ser vidente para adivinhar a resposta. É óbvio que as pessoas sentem que a Justiça deve aumentar a sua independência face ao poder executivo, e não diminuí-la. É óbvio que todos os portugueses conhecem os efeitos dramáticos de um Ministério Público politicamente manietado, como aconteceu nos tempos de Fernando Pinto Monteiro. É óbvio que o desprestígio actual da classe política e os problemas graves no combate à corrupção desaconselham que a Assembleia da República reforce os seus poderes de vigilância sobre os detentores do monopólio da acusação criminal em Portugal – é, aliás, precisamente o contrário que deveria estar a acontecer.

Por tudo isto, devo dizer que poucas greves serão tão justas e justificadas quanto a dos magistrados do Ministério Público, que decidiram parar três dias pela defesa, valorização e independência das suas carreiras, numa altura em que PS e PSD estão escandalosamente unidos no desejo de alterar o Estatuto do Ministério Público e a composição do seu Conselho Superior (CSMP). O CSMP tem actualmente 19 membros. Cinco são procuradores-gerais, cinco são eleitos pelo Parlamento, dois nomeados pelo ministro da Justiça e sete eleitos pelos procuradores. Ou seja, há 12 magistrados do MP para sete membros de nomeação política. O PS quer reduzir o número de procuradores que podem ser eleitos pelos seus pares. O PSD, nesta fase de absoluto desnorte, quer mesmo inverter a maioria que existe no CSMP. Rui Rio propõe diminuir o CSMP de 19 para 17 membros, passar de cinco para sete os conselheiros nomeados pela Assembleia da República e manter os dois que o ministro da Justiça já nomeia actualmente. Assim, o CSMP passaria a ter uma maioria de nove membros nomeados pelo poder político contra oito procuradores.

Mas há mais. Como Luís Rosa explicou no Observador, na proposta do PS há ainda outras medidas polémicas, como a restrição da autonomia financeira da PGR, colocando na dependência do governo autorizações para a realização de perícias essenciais para a investigação de crimes complexos; ou a necessidade de o Ministério Público justificar os pedidos de documentação a entidades privadas, pondo em causa o secretismo de investigações sensíveis. Este é daquele tipo de subtileza que costuma ser introduzido às escondidas no escurinho dos gabinetes, mas que pode ter um impacto gigantesco no dia-a-dia das investigações. E, em última análise, a pergunta que deve ser feita é: para quê? Para que é que estas alterações servem? Qual é a lógica que preside a tudo isto?

Eu digo-vos qual é a lógica: para PS e PSD, a independência do poder judicial deve estar restrita aos juízes e aos tribunais. O Ministério Público, no seu triste entendimento, deve ser apenas uma parte da administração pública, sujeita a controlo governamental. E é para isso que o Bloco Central está a trabalhar, à boleia de um PSD sem pingo de vergonha na cara, que tem vindo a destruir o excelente legado nesta matéria de Passos Coelho e Paula Teixeira da Cruz. A boa notícia é que as pessoas, desta vez, não estão a dormir. Estas propostas não podem passar. Nem nesta legislatura, nem nunca.

Chega a ser chocante a quantidade de pessoas que em Portugal se esforça por associar o combate à corrupção a uma qualquer forma de populismo.


PS e PSD arriscavam transformar PGR na “Rainha de Inglaterra”

A ex-procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal, disse que as propostas chumbadas do PS e do PSD punham em causa a autonomia do MP e transformariam a PGR na "Rainha de Inglaterra".

Lusa
8:42

A ex-procuradora-geral da República (PGR) Joana Marques Vidal reconheceu esta quarta-feira que, caso as propostas parlamentares de alteração do Estatuto do Ministério Público fossem aprovadas, o PGR seria transformado, finalmente, na “Rainha de Inglaterra”.

Recuperando, com ironia, uma imagem utilizada por Pinto Monteiro (seu antecessor) para justificar a alegada falta de poderes do PGR, Joana Marques Vidal precisou aos jornalistas no final da conferência Como Combater a Corrupção sem Autonomia que essa comparação tinha a ver com as alterações ao Estatuto do MP apresentadas pelos grupos parlamentares e não com a proposta do Governo, com a qual em linhas gerais concorda.

Numa sessão realizada em Lisboa, em que criticou as propostas avançadas pelo PSD e PS, Joana Marques Vidal adiantou que caso todas as alterações fossem efetivamente levadas à letra da lei, estariam a retirar o poder ao PGR de propor a nomeação dos cargos dirigentes dos departamentos de investigação criminal, incluindo do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), que trata dos processos ligados à corrupção e restante criminalidade económico-financeira mais grave e complexa.

A ex-PGR alertou que tais propostas levariam a uma transferência de competências nessa matéria do PGR para o Conselho Superior do Ministério Público (CSMP), “confundindo competências que tem que ser necessariamente separadas”. Joana Marques Vidal falava pouco antes das propostas de alteração à composição do Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) feitas pelo PS e pelo PSD terem sido chumbadas em sede de comissão parlamentar, sendo aprovada a proposta do Governo.

No entender de Joana Marques Vidal, o PGR tem de continuar a ser o responsável pela direção da atividade funcional e hierárquica do Ministério Público (MP) e o CSMP responsável pela avaliação de mérito, pelo poder disciplinar e pela gestão de quadros (colocação de magistrados mediante regras).

“Qualquer proposta que altere este equilíbrio de poderes e confunda as competências de certa forma põe em causa um modelo que é um modelo de equilíbrio de poderes”, declarou Joana Marques Vidal, notando que as propostas parlamentares levariam a um “desequilíbrio”, afetando o funcionamento interno do MP.

A ex-PGR acrescentou que “mais grave do que isso” seria o facto de tais propostas parlamentares permitirem a “possibilidade de uma eventual interferência do poder político naquilo que é a gestão processual e a atividade do MP, pondo em causa a autonomia [do MP]”, e, dessa forma, também a independência dos tribunais. Tudo somado, concluiu, poria em causa o “princípio da separação de poderes num Estado de Direito Democrático”.

Joana Marques Vidal admitiu, em contrapartida, que a proposta de aditamento que o PS apresentou na terça-feira terá resolvido na generalidade a questão do paralelismo entre a magistratura judicial e do MP, designadamente em matéria remuneratória, mas vincou que o paralelismo não se resume às questões salariais, pois tem também a ver com autonomia e independência.

A ex-PGR considerou que só a proposta do grupo parlamentar PCP assegura a autonomia financeira do MP, indo mais longe do que a própria proposta do Governo que prevê a autonomia financeira da Procuradoria-Geral da República.

Um dia após a divulgação do relatório do GRECO (Grupo de Estados contra a Corrupção) que coloca Portugal entre os países com menor taxa de implementação de medidas anticorrupção, Joana Marques Vidal aproveitou para lembrar que este órgão do Conselho da Europa recomenda há anos que seja atribuída autonomia financeira ao MP, tarefa ainda por realizar no caso português. “É preciso uma visão sistémica e integrada da autonomia do MP”, defendeu, na conferência, a ex-PGR.

No encontro esta quarta-feira, com a presença de centenas de magistrados do MP que estiveram em greve, intervieram ainda o diretor do DCIAP, Albano Pinto, e os jornalistas Eduardo Dâmaso e João Miguel Tavares. Albano Pinto, que iniciou funções há cinco meses no DCIAP, considerou que a proposta parlamentar do PS coloca em causa a autonomia do DCIAP, retirando-lhe capacidade operacional e controlo de meios humanos e técnicos.

“Se querem efetivamente combater a corrupção e o branqueamento de capitais, seria útil e importante atribuir ao DCIAP essa autonomia financeira”, enfatizou.

O diretor do DCIAP criticou também o artigo da proposta do PS sobre “dever de colaboração” que impõe que o MP para aceder a documentação e a informações de entidades públicas tenha que justificar o motivo, o que na prática levaria a que se soubesse o que estava a ser investigado e contra quem.

“O MP não requisita documentos por requisitar, fá-lo em nome da lei”, vincou num debate em que o jornalista Eduardo Dâmaso apontou a falta gritante de meios humanos na Unidade Nacional de Combate à Corrupção (UNCC) da Polícia Judiciária, uma polícia cuja colaboração é fundamental para o MP na investigação da corrupção e da grande criminalidade económico-financeira.

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