Brasil e EUA lideram retrocessos ambientais, aponta estudo
que abrange mais de um século
Edison Veiga
30 maio 2019
No mais completo estudo do tipo já realizado, um grupo de
cientistas de diversas universidades estrangeiras, liderados pela ONG
Conservação Internacional, analisou todos os atos governamentais que resultaram
em redução de metragem, diminuição de restrições ou extinções de áreas de
proteção ambiental em todo o mundo de 1892 a 2018.
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decidiu restringir aborto
O resultado do trabalho, que sai na edição desta sexta da
revista científica Science, é preocupante: há uma tendência mundial de
retrocessos ambientais, acentuada nas últimas duas décadas. E tal movimento é
liderado por dois países de proporções continentais: Estados Unidos e Brasil.
"Antes campeões em conservação global, Estados Unidos e
Brasil estão agora liderando uma tendência mundial preocupante de grandes
retrocessos na política ambiental, colocando em risco centenas de áreas
protegidas", resume comunicado divulgado pela Associação Americana Para o
Avanço da Ciência (AAAS, na sigla em inglês. "As mudanças regressivas
buscam alterar ou remover legalmente o status de proteção e diminuir o tamanho
das áreas de conservação natural."
Nos 126 anos analisados, 73 países promulgaram 3.749
legislações do tipo, resultando na extinção de 519.857 quilômetros quadrados de
áreas protegidas - uma área maior do que a Espanha - e no afrouxamento da
proteção de outros 1.659.972 quilômetros quadrados - três vezes o tamanho da
França.
Afrouxmento de regulações na Amazônia se acentuou desde 2010
Reversão da proteção
De acordo com o biólogo e geocientista Bruno Coutinho,
diretor de gestão do conhecimento da Conservação Internacional Brasil - e
coautor do estudo -, é importante lembrar que a existência de áreas protegidas
"não representa a garantia, para sempre, de proteção legal da
biodiversidade e de serviços ecossistêmicos nelas gerados".
"Dizendo de modo claro e simples: áreas protegidas não
são para sempre", disse à BBC News Brasil a bióloga e cientista social
Rachel Golden Kroner, responsável pela área de governança ambiental e impactos
da ONG nos Estados Unidos e principal autora do estudo. "Elas podem ser e
estão sendo revertidas por meio de afrouxamentos de restrições, limites de área
reduzidas e extinções completas."
"A pesquisa mostrou que alterações na legislação
ambiental dos países estudados podem comprometer a durabilidade e a eficácia
das áreas protegidas, por recategorização, por redução de área ou por extinção
completa", afirmou Coutinho à BBC News Brasil.
Na maioria dos casos (62% do total), o afrouxamento
legislativo está relacionado a práticas de extração de recursos e
desenvolvimento industrial em grande escala - aqui incluindo para obras de
infraestrutura, mineração e agricultura de commodities.
A pesquisa sugere a necessidade de uma discussão estratégica
envolvendo os diversos atores que são impactados e impactam as áreas protegidas
e seus entornos, compreensão dos efeitos e tratamento dos atos promulgados, bem
como a própria manutenção da efetividade das áreas protegidas.
O levantamento ainda mostra uma tendência preocupante: 78%
dos atos legislativos do gênero no mundo foram promulgados do ano 2000 para cá.
"As reversões legais para áreas protegidas parecem estar se
acelerando", frisa Kroner.
"Respostas políticas são necessárias para salvaguardar
os esforços de conservação", acrescenta ela, destacando que tais processos
devem ser "transparentes, baseados em evidências, participativos e
responsáveis". Kroner ainda recomenda que credores e doadores
internacionais sempre considerem essa questão quando estiverem tomando decisões
de financiamentos.
O caso brasileiro
A pedido da reportagem, a Conservação Internacional destacou
os dados brasileiros do levantamento. No total, foram 85 atos legislativos
promulgados - todos entre 1900 e 2017 -, afetando uma área de 114.856
quilômetros quadrados, o que equivale a praticamente metade do tamanho do
Estado de São Paulo.
"Destes, 60 ocorreram na Amazônia", pontua
Coutinho. Em número, só a região Amazônia teve uma perda de pouco mais de 90
mil quilômetros quadrados de proteção apenas por culpa de mudanças da
legislação brasileira.
"A maioria desses eventos, 42 deles, ocorreram após
2010 - grande parte em função de obras de infraestrutura", acrescenta o
biólogo Coutinho. "A causa mais prevalente foram decorrentes de
autorizações de barragens de energia elétrica na Amazônia", enfatiza
Kroner.
Conforme dados compilados pela cientista, o Brasil é
responsável por 87% dos retrocessos em áreas protegidas da Amazônia, em um
levantamento que inclui os outros oito países amazônicos.
"Estamos assistindo a uma aceleração desses retrocessos
no Brasil", comenta ela. "Oitenta e quatro por cento das reduções
aprovadas ocorreram desde o ano 2000."
A bióloga e ambientalista Izabella Teixeira, ministra do
Meio Ambiente entre 2010 e 2016, ressaltou que muitas vezes, para equilibrar
interesses de diversas políticas públicas, sua gestão precisou alterar status
de áreas protegidas - mas que o fez sob compensações considerando a mesma
biodiversidade.
"Muitas vezes isso aconteceu", afirmou à BBC News
Brasil. "Por interesses sociais, programas que precisavam ser implantados.
Por outro lado, ampliamos ou compensamos a área, como aconteceu no Parque
Nacional dos Campos Amazônicos." Em 2012, por medida provisória, a então
presidente Dilma Rousseff alterou o limite de seis unidades de proteção para a
construção de hidrelétricas na Amazônia.
Teixeira ressalta que, de modo geral, esse tipo de
retrocesso em políticas de proteção pode ter diversas origens.
"Precisaríamos identificar caso a caso para saber. Mas há natureza
técnica, política e econômica", comenta. "Do ponto de vista político,
isso remete a uma situação de fragilidade e de não priorização da política
ambiental. É muito comum que interesses econômicos sejam preponderantes a
interesses da biodiversidade, mas isso é só um contexto: vejo como algo muito
grave."
Ministro do Meio Ambiente entre 2008 e 2010 e atualmente
deputado estadual, o geógrafo Carlos Minc avaliou o cenário como
"assustador". "Reflete a força da bancada ruralista e a
cumplicidade de vários governos estaduais", disse ele, à BBC News Brasil.
"Entendo que as reduções têm sua principal origem no
interesse econômico. Sobretudo da mineração e da pecuária. Também para obras e
empreendimentos do agronegócio", enumera. "Ganhou força o grupo
político mais conservador e reacionário que despreza e desqualifica os ganhos
ambientais e prega abertamente a extinção de leis e parques que protegem a
biodiversidade."
"Em nossa gestão no Ministério do Meio Ambiente,
criamos ou ampliamos 54 mil quilômetros quadrados de parques e reservas
extrativistas. Cada uma era uma guerra", argumenta. Ele diz que, na esfera
pública, há um verdadeiro cabo de guerra entre os ministérios na hora de criar
áreas protegidas. "Eu solicitei um estudo sobre os ganhos econômicos dos
parques e reservas para o turismo, o extrativismo, a água e o clima. Mas os
demais ministérios geralmente não consideram o ganho ambiental, social, de
biodiversidade e até de água para a agricultura."
Confrontado com os dados, o jurista, historiador e diplomata
Rubens Ricupero, ministro do Meio Ambiente entre 1993 e 1994, afirmou à BBC
News Brasil que "não chega a surpreender que tenha havido redução
significativa das áreas protegidas". "Atribuo a tendência à pressão
constante de interesses econômicos - madeireiros, de mineração, agropecuários,
grileiros de terras públicas - e, em menor grau, à pressão social de
trabalhadores sem-terra", avalia ele.
"Manter as áreas protegidas nunca foi fácil em razão da
enorme desigualdade existente entre os recursos de fiscalização e o poder de
grupos econômicos regionais", acrescenta Ricupero.
A BBC News Brasil questionou o atual ministro do Meio
Ambiente, o advogado Ricardo Salles, sobre quais medidas ele julga pertinente
serem adotadas frente aos dados apresentados pelo estudo. Até a publicação
desta reportagem, entretanto, ele não havia respondido.
Interesses econômicos foram apontados como grandes
impulsionadores da degradação
Futuro
Ricupero teme que a tendência de retrocessos ambientais que
o Brasil vem atravessando siga de forma ainda mais crítica. "O atual
governo vem contribuindo para agravar o quadro pela posição pessoal e o exemplo
altamente negativo do próprio presidente da República", diz.
"O sistemático desmantelamento do sistema já precário
do Ibama e do ICMBio estimula maiores violações dos espaços ainda protegidos e
desencoraja a ação dos fiscais. Isso sem mencionar os numerosos projetos em
tramitação no Congresso, que terão certamente impacto igualmente
destruidor."
O levantamento da Conservação Internacional demonstra que é
preciso ficar atento às propostas em tramitação. "O estudo encontrou 60
eventos propostos, sendo metade deles na Amazônia", pontuou Coutinho. No
total, afetariam outros 200 mil quilômetros quadrados de bioma - uma área do
tamanho do Paraná.
"A tendência é só piorar, dada a posição do presidente
e do atual ministro, e à maior força da bancada ruralista", acredita Minc.
"A maior ameaça à biodiversidade é o projeto de lei que acabaria com a
reserva legal, que pode ocasionar o maior desmatamento do planeta, da ordem de
1,3 milhão de quilômetros quadrados." A área corresponde a dez vezes o
tamanho da Inglaterra.
"Outros projetos de lei negam ao governo a iniciativa
de criar parques ou demarcar terras indígenas. Há ainda os que liberam a caça,
a lei do abate, até para espécies ameaçadas - que, segundo os autores, estariam
'ameaçando os rebanhos nas fazendas'", analisa o ex-ministro e agora
deputado. "Os projetos que esvaziam o licenciamento ambiental representam
outra grave ameaça aos rios e florestas e à saúde da população."
O biólogo Coutinho afirma que "reversões na
regulamentação devem ser amplamente discutidas". "Estamos sempre
dispostos a estabelecer diálogos para o desenvolvimento sustentável com base em
dados e boa informação científica", ressalta ele.
"O que os dados mostram é que a proteção do capital
natural - entendido aqui como a biodiversidade e os serviços ecossistêmicos -
pode ser grande aliada do desenvolvimento econômico e social, respeitando-se
direitos e interesses de diversos setores da sociedade uma vez que todos são
beneficiários dos serviços ecossistêmicos", defende. "A velocidade em
que a biodiversidade vem sendo perdida pode comprometer a funcionalidade do
sistema e consequentemente a humanidade no planeta."
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