João Miguel Tavares
O lugar do padeiro é na padaria
A grande divisão da sociedade portuguesa não é entre
esquerda e direita. É entre os “legítimos” e os “ilegítimos”.
18 de Junho de 2019, 6:18
Desculpem lá voltar ao tema, mas vocês já me conhecem: eu
não resisto. Ao longo destes dias escutei críticas perfeitamente legítimas ao
meu discurso do 10 de Junho (Rui Tavares e Daniel Oliveira, por exemplo), das
quais discordo, mas que contribuem para a discussão e salubridade do espaço
público português. Mas depois houve outro tipo de críticas, tão ad hominem e
tão pedantes, que são importantes denunciar por aquilo que significam de
sobranceria, preconceito e fobia social. Essas críticas vêm de gente que age
como se fosse porteira de uma discoteca de meninos-bem, recusando entrada a
quem não engraxa os sapatos no clube dos bons intelectuais portugueses. O lugar
do padeiro – para citar uma inspirada frase de Inês Pedrosa – é na padaria.
Tais pessoas sentiram como uma afronta pessoal o facto de as
minhas palavras terem sido tão partilhadas, da esquerda à direita, e concluíram
que se elas chegaram ao “povo” só pode ter sido porque foram “populistas”. Não
há pingo de mérito na escrita, nas ideias ou na retórica do discurso. Fernando
Rosas chamou-me um “blogger qualquer” que cultiva o “populismo rasca” e que o
Presidente transformou em “vigilante da consciência nacional”. Pedro Silva Pereira
– esse, sim, um grande valor moral da pátria, de novo eurodeputado com
imunidade parlamentar, com o qual Rosas coabita num programa de televisão sem
quaisquer problemas, apesar de ter sido o homem de confiança de Sócrates anos a
fio e de a sua mulher ter recebido 98 mil euros de uma empresa de Carlos Santos
Silva – considerou que a minha escolha para presidir ao 10 de Junho foi um dos
pontos “mais negativos” do mandato de Marcelo.
Pacheco Pereira iniciou a sua intervenção na Circulatura do
Quadrado com um suspiro: “Há momentos da minha vida em que eu me sinto pedante;
não consigo evitar.” Rui Vieira Nery congratulou-se por já ter avisado que o
meu estilo não passava “de uma sebenta requentada de clichês neo-liberais”.
Irene Flunser Pimentel declarou no Facebook no dia 10: “Ai, vai ser tão bom
remover hoje uma quantidade de gente de ‘amigo’ e ‘amiga’.” E quando lhe
perguntaram se o critério para remover “amigos” era terem gostado do discurso
“do Tavares”, ela respondeu: “Sim, vão corridos/as.” É extraordinário que uma
mulher dedique tanto tempo da sua vida a estudar a PIDE para depois agir como
uma pequena ditadora no Facebook.
E, claro, a cereja em cima do bolo foi a intervenção de Inês
Pedrosa no programa O Último Apaga a Luz, onde 1) lastimou a ausência de um
“filósofo” ou de um “escritor” no 10 de Junho; 2) afirmou que “é ofender o país
todo chamar alguém” como eu para a tarefa; 3) garantiu ser “um gesto
antidemocrático”; 4) declarou que “a democracia não é baralhar e fazer de conta
que é tudo o mesmo”; e 5) concluiu que teria sido preferível chamar “o padeiro
de Portalegre”.
Porque é que é tão importante dar conta destas reacções? Não
é por masoquismo. É porque elas são oriundas da mesma linhagem preconceituosa
que nunca perdoou a Cavaco Silva comer bolo-rei de boca aberta ou que chama
“merceeiro” a Alexandre Soares dos Santos – e essa linhagem representa, de
facto, o pior de Portugal. A grande divisão da sociedade portuguesa não é entre
esquerda e direita. É entre os “legítimos” e os “ilegítimos”. Os porteiros do
regime até aceitam a diversidade ideológica. O que eles não aceitam é quem acha
“que é tudo o mesmo” – e que uma boleima alentejana possa ser mais útil ao país
do que um romance de Inês Pedrosa.
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