terça-feira, 11 de junho de 2019

BdP tinha informação completa para travar Berardo como accionista chave do BCP / VIDEO:SIC Notícias “Vítor Constâncio está a mentir, mentiu ao Parlamento"




BdP tinha informação completa para travar Berardo como accionista chave do BCP

Antes de autorizar José Berardo a subir a posição no BCP, a administração do BdP, chefiada por Vitor Constâncio, sabia que o crédito da CGD que o empresário ia usar para financiar o investimento era especulativo. E que o investidor não tinha capacidade financeira para ser um accionista qualificado da instituição.

Cristina Ferreira
Cristina Ferreira 11 de Junho de 2019, 6:01

Após dois meses em análise nos serviços do Banco de Portugal (BdP), o então governador do supervisor bancário, Vítor Constâncio, teve acesso, ainda no Verão de 2007, ao documento com a informação completa sobre o pedido de José Berardo de compra de uma posição até 9,99% do maior banco privado português, o BCP, onde na altura já possuía 3,88%. Apesar de Constâncio ter vindo dizer que não esteve no conselho de administração que autorizou a operação, o documento que lhe foi disponibilizado continha os detalhes e a descrição da forma como Berardo pretendia financiar o investimento no BCP, ou seja, totalmente financiado pela Caixa, em 350 milhões de euros, sem dar garantias reais sólidas, mas com promessa de penhora das acções (títulos especulativos) a adquirir.

Ao final da tarde deste sábado, em nota enviada à Lusa, Vítor Constâncio comunicou que a entidade agora liderada por Carlos Costa o informara que não estivera presente na reunião do conselho de administração do BdP de 21 de Agosto de 2007, a mesma que formalizou a decisão de não oposição (na prática, luz verde) ao reforço accionista de José Berardo, de 5% até 9,99% no BCP. E que foi um dos seus dois ex-vice-governadores, José Matos, que em 2012 saiu do BdP para liderar a CGD, que o substituiu como presidente.

E Vítor Constâncio ficou por aqui. Não esclareceu que a sua ausência do conselho de administração de 21 de Agosto de 2007 não foi motivada por pedido de escusa (o que teria feito se em vez do BCP, estivesse em causa o BPI, de que foi administrador), pelo que era (e deve ser) solidário com as decisões tomadas em conselho de administração.

Também não constam das actas das reuniões do conselho de administração do BdP posteriores à de 21 de Agosto referências a que tenha suscitado objecções à operação Berardo.

O processo foi objecto de avaliação detalhada e demorada (mais de dois meses) por parte dos serviços do BdP, que recepcionaram a 18 de Junho de 2007 o pedido de Berardo para subir a posição qualificada no BCP, na época liderado por Paulo Teixeira Pinto. O dossiê só ficou fechado em Agosto de 2007, mas não antes de Berardo ter mudado a meio a estratégia de financiamento. Começou por informar o supervisor, em Junho, de que ia mobilizar, para além do crédito da Caixa, recursos próprios. E acabou a abandonar essa intenção, reportando em Agosto que seria financiado a 100% pelo banco do Estado.

Como não podia deixar de ser, por envolver a principal tomada de posição accionista de um particular, no maior banco privado, os técnicos do departamento de supervisão, que estudaram o dossiê, foram dando reporte aos administradores da evolução da análise. E cumpriram-se os procedimentos habituais do BdP.

Leia na íntegra os documentos de que Constâncio não se recorda
Leia na íntegra os documentos de que Constâncio não se recorda

Para além de Constâncio ter acompanhado o dossier, pois, caso contrário, seria o reconhecimento de que no seu mandato o BdP funcionava de forma disfuncional, logo na primeira reunião do conselho de administração em que participou, quando regressou ao BdP, foi-lhe disponibilizado o documento (que sustentou a luz verde dada a 21 de Agosto de 2007) com a descrição completa da operação de financiamento de Berardo: o aumento do poder no BCP seria feito com crédito de 350 milhões de euros da CGD uma promessa de penhora de títulos especulativos. Resumindo: um crédito à partida com margem para se tornar problemático.

Na estratégia de limitação de danos, Constâncio tem insistido de que não cabe ao BdP aprovar crédito bancário, que só lhe é dado a conhecer pelos bancos depois de o terem concedido. E nas várias declarações públicas, Constâncio afirma que só conheceu a operação de financiamento da Caixa a Berardo quando “já estava fechada há meses”. E, legalmente, não tinha condições para se opor, nem para a anular. Não é bem assim.

O que aqui está em causa, na operação Berardo, é uma linha de crédito (uma espécie de conta corrente) ainda por usar e que só poderia ser executada (como aliás aconteceu) depois de o BdP o autorizar. E foi precisamente o que o supervisor fez. Deste modo, possibilitou a Berardo ir levantar 350 milhões de euros ao banco público para investir na bolsa (e reforçar a sua posição na guerra de poder travada no BCP, um banco concorrente da Caixa, e o segundo maior do sistema) sem mobilizar garantias reais, nem capitais próprios.

Na próxima ida ao Parlamento, o ex-governador terá também dificuldade de explicar outra coisa: enquanto supervisor, a sua responsabilidade, era garantir que Joe Berardo, com intenção de tomar uma posição qualificada no BCP, tinha capacidade financeira para acorrer, a qualquer momento, a um aumento de capital. E Berardo não só foi autorizado a investir totalmente financiado pela CGD, como também a fazê-lo dando em garantia as acções cotadas. O que por si só constituía um indício de que não dispunha de recursos próprios ou bens credíveis para fazer face ao serviço da dívida. Não foi suficiente para se acenderam os alertas dentro do BdP, que se tivesse questionado os técnicos da Caixa, teria apurado que no departamento de risco houve quem tivesse dúvidas sobre a operação. E podia até ter concluído que na CGD havia a prática de financiar clientes (alguns investidores do BCP) naqueles moldes.

Foi neste quadro que o ex-governador se veio distanciar dos seus colegas de gestão quando deu a conhecer, através da Lusa, que não participou, no conselho de administração de 21 de Agosto de 2007. E assim contrariando a notícia do PÚBLICO segundo a qual Constâncio autorizou “investimento de Berardo no BCP com crédito tóxico de 350 milhões da Caixa”. De facto, Constâncio não esteve presente no encontro (ao contrário do que se pode interpretar do texto, quando se descreve que o conselho de administração é liderado pelo governador), mas a informação do PÚBLICO coloca ênfase no depoimento de Constâncio, quando no quadro da CPI à gestão e recapitalização do banco público, confrontado sobre se sabia que a instituição pública tinha um historial de dar crédito a clientes para especularem em bolsa, protegendo-se com os títulos especulativos dados em garantia, o ex-governador se esqueceu de mencionar a operação Berardo.

E argumentou que só teve conhecimento da situação no final de 2008, a seguir à queda do Lehman Brothers, quando se acentuou o ciclo de queda das cotações da banca que atingiu níveis históricos. A 26 de Junho de 2007, quando chegou ao BdP o pedido do investidor, o BCP negociava em bolsa a 4,3 euros por acção e a 16 de Janeiro de 2008 (antes mesmo de a crise ser exposta) a cotação tombara para 1,86 euros, abaixo do patamar de 1,87 euros calculado pelos serviços da Caixa para a cobertura de 100% da dívida de Berardo. E o preço continuou a desvalorizar. A 31 de Dezembro de 2008 a acção valia 0,8150 euros

Ao não gerar, já em 2007, cash-flow suficiente para pagar a dívida que ia contrair junto da Caixa, Berardo constituía um risco acrescido para o banco público. Onze anos depois ainda deve o que pediu.

“Essa ideia de que [o BdP as] pode conhecer [os créditos] antes [dos bancos os darem] é impossível”, disse Constâncio na CPI.

Com a polémica instalada, surgiu a nota deste sábado com Constâncio a esclarecer que não participou no conselho de administração que autorizou Berardo a aumentar a participação no BCP, o que foi antecedida de episódios contraditórios.

Na manhã em que foi publicada a notícia do PÚBLICO, 7 de Junho, Constâncio reagiu no Twitter: “Não fui questionado sobre isto e ainda estou a investigar. Não tenho memória disso nem de nada do género que tenha acontecido há 15 anos e normalmente o supervisor (enquanto instituição) não tem interferência em operações tão concretas dessa natureza.”

À tarde, através de comunicado, avançou com a mesma tese que apresentaria, dali a horas, na RTP, onde acabou a assumir que liderou a reunião de administração do BdP que deu luz verde para Berardo a aumentar a participação no BCP, o que não confirmou contudo no dia seguinte. Questionado sobre se mentiu no Parlamento ao não revelar ter sabido da operação Berardo respondeu: “Não, de maneira nenhuma. Não omiti. Ninguém me perguntou sobre a não objecção da participação qualificada.” Mas perguntaram-lhe se tinha conhecimento que a Caixa dava créditos tóxicos, e disse que não.

Constâncio tem desviado a discussão para o tema da autorização pelo BdP das operações de crédito. Mas não é o que está em causa. O que está em causa é por um lado não ter dito na Assembleia da República que desde 2007 sabia que a CGD tinha dado a Berardo um financiamento em condições potencialmente problemáticas, e que o BdP o validara. E, por outro lado, que, na avaliação do pedido de tomada de posição qualificada, Berardo já não tinha condições para ser grande investidor do BCP, onde aliás desempenhou papel essencial na guerra de poder que deflagrou no banco.

As voltas e reviravoltas de Constâncio indiciam outra coisa: é que o ex-governador, e ex-vice-presidente do BCE, se dirigiu, no passado 28 de Março, a São Bento sem antes se documentar devidamente junto do BdP. E não preparou a audição, o que agora lhe levanta problema

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