BdP tinha informação completa para travar Berardo como
accionista chave do BCP
Antes de autorizar José Berardo a subir a posição no BCP, a
administração do BdP, chefiada por Vitor Constâncio, sabia que o crédito da CGD
que o empresário ia usar para financiar o investimento era especulativo. E que
o investidor não tinha capacidade financeira para ser um accionista qualificado
da instituição.
Cristina Ferreira
Cristina Ferreira 11 de Junho de 2019, 6:01
Após dois meses em análise nos serviços do Banco de Portugal
(BdP), o então governador do supervisor bancário, Vítor Constâncio, teve
acesso, ainda no Verão de 2007, ao documento com a informação completa sobre o
pedido de José Berardo de compra de uma posição até 9,99% do maior banco
privado português, o BCP, onde na altura já possuía 3,88%. Apesar de Constâncio
ter vindo dizer que não esteve no conselho de administração que autorizou a
operação, o documento que lhe foi disponibilizado continha os detalhes e a
descrição da forma como Berardo pretendia financiar o investimento no BCP, ou
seja, totalmente financiado pela Caixa, em 350 milhões de euros, sem dar
garantias reais sólidas, mas com promessa de penhora das acções (títulos
especulativos) a adquirir.
Ao final da tarde deste sábado, em nota enviada à Lusa,
Vítor Constâncio comunicou que a entidade agora liderada por Carlos Costa o
informara que não estivera presente na reunião do conselho de administração do
BdP de 21 de Agosto de 2007, a mesma que formalizou a decisão de não oposição
(na prática, luz verde) ao reforço accionista de José Berardo, de 5% até 9,99%
no BCP. E que foi um dos seus dois ex-vice-governadores, José Matos, que em
2012 saiu do BdP para liderar a CGD, que o substituiu como presidente.
E Vítor Constâncio ficou por aqui. Não esclareceu que a sua
ausência do conselho de administração de 21 de Agosto de 2007 não foi motivada
por pedido de escusa (o que teria feito se em vez do BCP, estivesse em causa o
BPI, de que foi administrador), pelo que era (e deve ser) solidário com as
decisões tomadas em conselho de administração.
Também não constam das actas das reuniões do conselho de
administração do BdP posteriores à de 21 de Agosto referências a que tenha
suscitado objecções à operação Berardo.
O processo foi objecto de avaliação detalhada e demorada
(mais de dois meses) por parte dos serviços do BdP, que recepcionaram a 18 de
Junho de 2007 o pedido de Berardo para subir a posição qualificada no BCP, na
época liderado por Paulo Teixeira Pinto. O dossiê só ficou fechado em Agosto de
2007, mas não antes de Berardo ter mudado a meio a estratégia de financiamento.
Começou por informar o supervisor, em Junho, de que ia mobilizar, para além do
crédito da Caixa, recursos próprios. E acabou a abandonar essa intenção,
reportando em Agosto que seria financiado a 100% pelo banco do Estado.
Como não podia deixar de ser, por envolver a principal
tomada de posição accionista de um particular, no maior banco privado, os
técnicos do departamento de supervisão, que estudaram o dossiê, foram dando
reporte aos administradores da evolução da análise. E cumpriram-se os
procedimentos habituais do BdP.
Leia na íntegra os documentos de que Constâncio não se
recorda
Leia na íntegra os documentos de que Constâncio não se
recorda
Para além de Constâncio ter acompanhado o dossier, pois,
caso contrário, seria o reconhecimento de que no seu mandato o BdP funcionava
de forma disfuncional, logo na primeira reunião do conselho de administração em
que participou, quando regressou ao BdP, foi-lhe disponibilizado o documento
(que sustentou a luz verde dada a 21 de Agosto de 2007) com a descrição
completa da operação de financiamento de Berardo: o aumento do poder no BCP
seria feito com crédito de 350 milhões de euros da CGD uma promessa de penhora
de títulos especulativos. Resumindo: um crédito à partida com margem para se
tornar problemático.
Na estratégia de limitação de danos, Constâncio tem
insistido de que não cabe ao BdP aprovar crédito bancário, que só lhe é dado a
conhecer pelos bancos depois de o terem concedido. E nas várias declarações
públicas, Constâncio afirma que só conheceu a operação de financiamento da
Caixa a Berardo quando “já estava fechada há meses”. E, legalmente, não tinha
condições para se opor, nem para a anular. Não é bem assim.
O que aqui está em causa, na operação Berardo, é uma linha
de crédito (uma espécie de conta corrente) ainda por usar e que só poderia ser
executada (como aliás aconteceu) depois de o BdP o autorizar. E foi
precisamente o que o supervisor fez. Deste modo, possibilitou a Berardo ir
levantar 350 milhões de euros ao banco público para investir na bolsa (e
reforçar a sua posição na guerra de poder travada no BCP, um banco concorrente
da Caixa, e o segundo maior do sistema) sem mobilizar garantias reais, nem
capitais próprios.
Na próxima ida ao Parlamento, o ex-governador terá também
dificuldade de explicar outra coisa: enquanto supervisor, a sua
responsabilidade, era garantir que Joe Berardo, com intenção de tomar uma
posição qualificada no BCP, tinha capacidade financeira para acorrer, a
qualquer momento, a um aumento de capital. E Berardo não só foi autorizado a
investir totalmente financiado pela CGD, como também a fazê-lo dando em
garantia as acções cotadas. O que por si só constituía um indício de que não
dispunha de recursos próprios ou bens credíveis para fazer face ao serviço da
dívida. Não foi suficiente para se acenderam os alertas dentro do BdP, que se
tivesse questionado os técnicos da Caixa, teria apurado que no departamento de
risco houve quem tivesse dúvidas sobre a operação. E podia até ter concluído
que na CGD havia a prática de financiar clientes (alguns investidores do BCP)
naqueles moldes.
Foi neste quadro que o ex-governador se veio distanciar dos
seus colegas de gestão quando deu a conhecer, através da Lusa, que não
participou, no conselho de administração de 21 de Agosto de 2007. E assim
contrariando a notícia do PÚBLICO segundo a qual Constâncio autorizou
“investimento de Berardo no BCP com crédito tóxico de 350 milhões da Caixa”. De
facto, Constâncio não esteve presente no encontro (ao contrário do que se pode
interpretar do texto, quando se descreve que o conselho de administração é
liderado pelo governador), mas a informação do PÚBLICO coloca ênfase no depoimento
de Constâncio, quando no quadro da CPI à gestão e recapitalização do banco
público, confrontado sobre se sabia que a instituição pública tinha um
historial de dar crédito a clientes para especularem em bolsa, protegendo-se
com os títulos especulativos dados em garantia, o ex-governador se esqueceu de
mencionar a operação Berardo.
E argumentou que só teve conhecimento da situação no final
de 2008, a seguir à queda do Lehman Brothers, quando se acentuou o ciclo de
queda das cotações da banca que atingiu níveis históricos. A 26 de Junho de
2007, quando chegou ao BdP o pedido do investidor, o BCP negociava em bolsa a
4,3 euros por acção e a 16 de Janeiro de 2008 (antes mesmo de a crise ser
exposta) a cotação tombara para 1,86 euros, abaixo do patamar de 1,87 euros
calculado pelos serviços da Caixa para a cobertura de 100% da dívida de
Berardo. E o preço continuou a desvalorizar. A 31 de Dezembro de 2008 a acção
valia 0,8150 euros
Ao não gerar, já em 2007, cash-flow suficiente para pagar a
dívida que ia contrair junto da Caixa, Berardo constituía um risco acrescido
para o banco público. Onze anos depois ainda deve o que pediu.
“Essa ideia de que [o BdP as] pode conhecer [os créditos]
antes [dos bancos os darem] é impossível”, disse Constâncio na CPI.
Com a polémica instalada, surgiu a nota deste sábado com
Constâncio a esclarecer que não participou no conselho de administração que
autorizou Berardo a aumentar a participação no BCP, o que foi antecedida de
episódios contraditórios.
Na manhã em que foi publicada a notícia do PÚBLICO, 7 de
Junho, Constâncio reagiu no Twitter: “Não fui questionado sobre isto e ainda
estou a investigar. Não tenho memória disso nem de nada do género que tenha
acontecido há 15 anos e normalmente o supervisor (enquanto instituição) não tem
interferência em operações tão concretas dessa natureza.”
À tarde, através de comunicado, avançou com a mesma tese que
apresentaria, dali a horas, na RTP, onde acabou a assumir que liderou a reunião
de administração do BdP que deu luz verde para Berardo a aumentar a
participação no BCP, o que não confirmou contudo no dia seguinte. Questionado
sobre se mentiu no Parlamento ao não revelar ter sabido da operação Berardo
respondeu: “Não, de maneira nenhuma. Não omiti. Ninguém me perguntou sobre a
não objecção da participação qualificada.” Mas perguntaram-lhe se tinha
conhecimento que a Caixa dava créditos tóxicos, e disse que não.
Constâncio tem desviado a discussão para o tema da
autorização pelo BdP das operações de crédito. Mas não é o que está em causa. O
que está em causa é por um lado não ter dito na Assembleia da República que
desde 2007 sabia que a CGD tinha dado a Berardo um financiamento em condições
potencialmente problemáticas, e que o BdP o validara. E, por outro lado, que,
na avaliação do pedido de tomada de posição qualificada, Berardo já não tinha
condições para ser grande investidor do BCP, onde aliás desempenhou papel
essencial na guerra de poder que deflagrou no banco.
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