Dinheiro e poder
Na verdade, com ilegalidades se cumpre a lei. E legalmente
se fazem verdadeiros golpes financeiros. Por isso, a política tem tanta
importância para o poder económico.
António Barreto
23 de Junho de 2019, 7:42
É possível que as comissões de inquérito parlamentar e os
grandes processos judiciais relativos a casos políticos e financeiros não dêem
qualquer resultado prático, nem sequer permitam o apuramento de
responsabilidades. Os assaltos, os roubos qualificados, a destruição de
empresas, os empréstimos públicos pecaminosos e vários tipos de corrupção
ficarão, provavelmente, impunes. Grande parte deles, pelo menos. Os casos de
que hoje se fala, a utilização de dinheiro para obter poder e o exercício de
poder político para conquistar propriedade e fortuna, serão capítulo importante
na história do país. Dentro de algumas décadas, os estudiosos, os escritores e
os cineastas terão ao seu alcance centenas de milhares de páginas de relatórios
e de processos que apenas servirão para isso: fazer história. Já não é nada
mau. Os procedimentos judiciais e o voto das comissões de inquérito pouco ou
nada servem para apurar a verdade, mas serão de enorme utilidade para fazer
história.
Na verdade, aquilo a que estamos ainda a assistir, já na
fase de rescaldo, é um dos maiores episódios de luta pelo poder, de partilha
dos dinheiros públicos e de concorrência entre famílias e partidos de que há
memória. Ficará na história como mais uma reviravolta na balança de poder. Nos
últimos cinquenta anos, é certamente a terceira vez que tal acontece. Primeiro,
com a Revolução de Abril, destruiu-se o capitalismo português, liquidaram-se
alguns grupos económicos e alterou-se a relação de forças entre capital e
trabalho. Já nessa altura se deu um sinal de que o capitalismo estrangeiro,
apesar de ter ficado sob observação, não seria ameaçado. Poucos anos depois, a
vaga democrática restaurou algum capitalismo, desta vez mais dependente do
exterior. A Comunidade Económica Europeia, futura União, ajudou. Os processos
de revisão da Constituição e das reprivatizações serviram para dar alguma
esperança à iniciativa privada, tendo-se construído ou reconstruído grupos
económicos e financeiros, cada vez mais dependentes, mas com algumas raízes em
Portugal. A crise internacional de 2008, a bancarrota de 2009 e a segunda vaga
de privatizações, acompanhadas da meia década de austeridade e de assistência
internacional, liquidaram de uma vez para sempre os grupos nacionais ou
parcialmente nacionais, destruíram algumas empresas portuguesas ou com bases
importantes em Portugal e entregaram a multinacionais próximas (europeias) ou
remotas (chinesas e angolanas) o essencial da economia e praticamente todo o
sistema financeiro.
O que se tem passado com o BES, o BPN, a CGD e o BCP deve
compreender-se nesta visão mais alargada, mas os que, no sector privado ou na
política, agiram com cupidez, dolo e malícia, só serão totalmente identificados
dentro de muitos anos. Do mesmo modo, a acção de alguns governantes socialistas
e social-democratas ficará um tempo longo à espera de verdadeira
responsabilização. Só então os comportamentos criminosos serão devidamente
apontados. Tarde de mais para reparação e castigo, mas sempre oportuno para o
conhecimento histórico. De qualquer maneira, é bom notar que não se tratou
exclusivamente de corrupção e crime. Muito do que aconteceu, com grandes
empresas e vários serviços públicos, assim como parcerias, concursos e regimes
fiscais, foi produzido e protegido por meios legais, embora constituísse
veículo essencial para a transferência de propriedade, de poder e de dinheiro.
Os telefones, a electricidade, o gás, os cimentos, os petróleos e os correios
fazem parte deste vasto sector de interesses e de luta das classes, onde a
corrupção e o crime são relativamente menores quando comparados com o uso da
lei. Na verdade, com ilegalidades se cumpre a lei. E legalmente se fazem
verdadeiros golpes financeiros. Por isso, a política tem tanta importância para
o poder económico. Há uma espécie de offshore moral e legal: na política, a
noção de responsabilidade é outra.
Não se pense que uns partidos só se interessam pelo
dinheiro, enquanto outros só pela política. De todo! A verdade é que os
partidos têm interesse no poder político e no dinheiro, só que por ordem
diferente. Uns querem apoderar-se da fortuna e da propriedade para consolidar o
seu poder político. Outros querem este último para ganhar dinheiro e aumentar a
propriedade. Parece simples e rude, mas a verdade é que a luta política é
muitas vezes simples e rude.
O assalto fenomenal ao poder e ao dinheiro revela bem estes
interesses e este jogo político. O processo actual, diante dos nossos olhos, é
o terceiro ou quarto desde o 25 de Abril de 1974. A Revolução e a
reprivatização das empresas e dos grupos redundaram em monumental banquete de
que se aproveitaram, simultânea ou sucessivamente, direita ou esquerda.
Incluindo vários ministros, primeiros-ministros, secretários de Estado,
deputados, altos funcionários, secretários-gerais de partidos, banqueiros,
gestores e empresários.
É aliás possível encontrar tendências dominantes de
comportamento nos principais partidos políticos e nos seus simpatizantes. O PCP
detesta o dinheiro e quem o tem. O Bloco abomina o dinheiro dos outros. O PS
aprecia o dinheiro, desde que também tenha. O PSD gosta do seu dinheiro. E o
CDS deseja dinheiro, mas não diz.
Assim, os revolucionários e os comunistas querem acabar com
os ricos e os proprietários. Querem substituir-se a eles, preferem que seja o
Estado o titular dos bens e dos rendimentos, mas que o Estado seja deles. Os
reformistas não querem acabar com os ricos, nem com os proprietários, mas
querem submetê-los ao poder político e também beneficiar. Uns directamente,
tornando-se proprietários, nem que seja ilegalmente. Outros indirectamente,
transformando-se em gestores públicos e políticos, se possível legalmente. Os
conservadores, nomeadamente os de direita, são mais simples e directos: não
querem alterar nada de essencial, querem fazer parte da mesa de quem tem
propriedade e fazenda.
Admite-se que os partidos, todos os partidos, tenham também
uma visão própria do que se chama o “bem comum” ou o “interesse nacional”. Com
certeza. Não se pode ser totalmente cínico a ponto de negar seriedade e virtude
aos outros. Mas convém ser realista a fim de perceber tudo quanto está em
causa. Pena é que, para apuramento de responsabilidades, os magistrados e os
deputados não ajudem. Por isso, confiamos nos historiadores. Será tarde, mas alguma
coisa se aprenderá.
Sociólogo
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