O crescimento do turismo de massas e do low-cost flying é profundamente criminoso
O Bureau de Turismo de Amsterdão passou a dedicar-se
precisamente ao oposto da sua função original. Ou seja a sua nova função será o
desencorajamento do turismo.
António Sérgio Rosa de Carvalho
31 de Maio de 2019, 21:44
As viagens aéreas low cost permitiram o acesso a uma inédita
mobilidade, traduzida num verdadeiro ‘tsunami’ turístico, que invadiu de forma
avassaladora, as cidades europeias.
O termo ‘invasão’ é aqui utilizado de forma consciente, pois
os efeitos negativos na ecologia urbana, e as alterações dos seus equilíbrios
locais, são nitidamente reconhecíveis e visíveis, e já foram vezes sem conta,
diagnosticadas.
O que, sim, é intuitivamente sentido, mas nunca
diagnosticado, são os efeitos erosivos resultantes da exposição permanente e
diária dos cidadãos a um caos e anarquia sem gestão, onde os seus direitos
básicos e fundamentais, nas áreas da segurança e sossego, direito à habitação,
custo de vida, direito ao transporte etc., ou seja, o espaço vital de
sobrevivência e vida e da identidade são postos em causa.
E aqui, chegamos ao prestígio e credibilidade da imagem da
Democracia e da efectividade da sua gestão.
Desta vez, em vez, de falarmos de Lisboa, vamos
deslocarmo-nos a Amsterdão, cidade que habito e experimento na vida quotidiana.
Amsterdão é importante pois devido à sua pequena escala e
espaço disponível limitado, transformou-se num laboratório directo, in
extremis, destes desafios. Mais ainda do que Veneza pela simples razão que
Amsterdão, apesar do êxodo motivado pelas tensões diárias das suas vivências e
pela expulsão dos habitantes locais devido à espiral de especulação
imobiliária, ainda é habitada por um milhão de pessoas.
Em Outubro de 2018 foi tomada uma decisão do mais alto valor
simbólico e que representa uma viragem radical da concepção da gestão do
Turismo. A autarquia decidiu retirar do ponto estratégico e emblemático, em
frente ao Rijksmuseum, em Dezembro de 2018, o famoso letreiro I AMSTERDAM, e
anunciou que as verbas destinadas à promoção do turismo iriam ser reduzidas, e
o respectivo Bureau do Turismo iria a partir desse momento dedicar-se à gestão
distributiva do mesmo turismo.
Por outras palavras, o Bureau iria dedicar-se precisamente
ao oposto da sua função original. Ou seja a sua nova função será o
desencorajamento do turismo.
A nova alcaide de Amsterdão,
Femke Halsema, abriu e definiu várias frentes de urgente regulação;
rigoroso regulamento para o Alojamento Local, forte limitação do turismo no red
light district, novo regulamento limitativo para a navegação nos canais, etc.
A cidade de Amsterdão está, por falta de espaço e por um
crescente número de pessoas a utilizarem este limitado espaço de forma autista,
egocêntrica e anárquica, a ‘rebentar pelas costuras’.
Para especificar apenas através de um exemplo. O trânsito em
Amsterdão é dominado pelas muitas centenas de milhares de ciclistas que
circulam numa rede bem desenvolvida de ciclovias. Nos últimos anos, estas
ciclovias foram também invadidas por scooters. Isto, e o facto de que estes
ciclistas, motorizados ou não, frequentemente não respeitarem os sinais de
trânsito, invadirem os passeios, e demonstrarem uma indiferença egocêntrica que
põe em perigo permanente os peões (muitas tensões hostis entre habitantes e
especialmente com turistas que não estão habituados às ‘regras’ arbitrárias da
‘roleta russa’) levou a situação a um ponto de ruptura. Assim foi estabelecido
que a partir de 8 de Abril não seria permitido às scooters circularem nas
ciclovias e seria obrigatório o uso de capacete, estabelecendo-se um período de
tolerância de dois meses. O problema é que, sem fiscalização, quase ninguém
respeita as regras pois Amsterdão, durante o ciclo neoliberal de privatização e
de desconstrução das instituições centrais do Estado, fechou muitas esquadras
de polícia.
Quando os efeitos múltiplos destes fenómenos resultantes de
uma conjugacão de factores globalizadores (turismo de massa tornado possível
pelo low-cost flying, falta de espaço,
destruição da identidade e autenticidade local através de uma actividade
monofuncional, expulsão dos habitantes locais devido a uma espiral
especulativa, etc.) atingem o ponto de uma ‘tempestade perfeita’, aí, como em
Veneza, torna-se impossível negar o crescer da irritação e da hostilidade dos
habitantes e as tensões tornam-se bem visíveis e explícitas.
Neste ponto de malaise a atitude liberal de laissez faire,
laissez passer torna-se insustentável do ponto de vista político e as
autarquias são confrontadas com um crescente cepticismo por parte dos
habitantes locais que se sentem cada vez menos representados nas suas
ansiedades e desesperam com a ausência de uma autoridade central reguladora e
de referência estimulante de pedagogia democrática.
Em Democracia, ‘A Sua Liberdade Termina Quando Começa a do
Outro’.
As cidades são também ecosistemas e portanto não podem
comportar o conceito de crescimento ilimitado. A salvaguarda dos equilíbrios da
civilitas na ecologia urbana precisa de uma regulação e vigilância permanente
por parte de uma autoridade central responsável e portadora de uma visão
estratégica.
O nosso futuro vai ser de forma crescente dominado pelo
desafio ecológico e pelas alterações climáticas. Nesta perspectiva, o
crescimento do turismo de massas e do low-cost flying não é só insustentável
mas é profundamente criminoso.
Portanto não é de espantar que a implementação de impostos
nos bilhetes e no combustível no transporte aéreo é urgentemente necessária e
inevitável.
A Europa vai reunir-se sobre esta questão em Junho.
Historiador de Arquitectura
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