COMISSÃO DE INQUÉRITO À CGD
Constâncio esteve presente na reunião que formalizou não
oposição a Berardo
O ex-governador teve oportunidade formal de se opor à subida
de participação de Berardo no BCP, sustentada em crédito da Caixa. Semanas
antes, tinha recebido o investidor no Banco de Portugal.
Cristina Ferreira
Cristina Ferreira 18 de Junho de 2019, 6:00
No dia 26 de Julho de 2007, Vítor Constâncio recebeu José
Berardo no Banco de Portugal (BdP) levando na agenda, entre outros temas, o
pedido para se assumir como um dos principais accionistas particulares do maior
banco privado do país, o BCP. Este encontro dá-se um mês antes de Constâncio
participar, a 28 de Agosto de 2007 (devidamente documentado), no Conselho de
Administração (CA) do BdP que aprova a acta da reunião anterior (na qual o
governador esteve ausente) e em que Constâncio não se opõe ao pedido de reforço
da posição qualificada da Fundação José Berardo (FJB) no BCP. Só depois dessa
reunião, ainda nesse mesmo dia, 28 de Agosto, é que o BdP emitiu nota a dar luz
verde ao investidor para aumentar a sua posição no BCP.
Eram 11h00 da manhã de 26 de Julho de 2007 quando José
Berardo – que era então o rosto da campanha publicitária do American Express, a
marca de cartões representada pelo BCP – deu nas vistas ao entrar na sede do
BdP, na baixa de Lisboa, para se reunir, não com o vice-governador do BdP,
Pedro Duarte Neves (com o pelouro da supervisão), mas sim com o governador
Vítor Constâncio. Uma das matérias que seria abordada estava relacionada com a
intenção de subida da participação qualificada da FJB no BCP de 3,88% para
entre cinco e 9,99%, pedido esse que tinha sido enviado a 19 de Junho ao CA do
BdP.
O encontro (bem com os que se seguiriam), bem como a sua
data, foram dados confirmados ao PÚBLICO por fonte oficial da FJB, sustentada
em registos de agenda. Interpelado por e-mail sobre esta reunião, Vítor
Constâncio não respondeu em tempo útil. Na última sexta-feira, em entrevista à
RTP3, questionado sobre se alguma vez tinha chamado Berardo para avaliar os
objectivos do aumento da posição no BCP, o antigo governador respondeu: “Não.”
O encontro de 26 de Julho de 2007 dá-se quando os serviços
do BdP analisavam a operação financeira subjacente ao pedido de aumento de
posição accionista de Berardo no BCP. E decorre ainda onze dias antes (7 de
Agosto) de ter sido comunicado pelo investidor ao supervisor que este iria ao
mercado integralmente financiado pela CGD, ou seja, sem avançar com recursos
próprios, como constava da informação que tinha sido prestada quando requereu
inicialmente, a 19 de Junho, o aumento da posição qualificada.
Na argumentação que tem vindo a apresentar publicamente,
Vítor Constâncio refere duas coisas: a 19 de Junho, quando o CA do BdP
recepcionou um pedido de aumento de posição no BCP, já o contrato de crédito
entre a Caixa e Berardo estava fechado, e nada podia fazer (apesar de se tratar
de uma conta corrente); e o crédito não dependia de autorizações do BdP (a
assinatura deste contrato e o cumprimento de todas as obrigações dele
decorrentes não necessitam de qualquer autorização que não tenha sido
devidamente obtida), nem se destinava apenas à compra de acções do BCP.
Ora, a FJB está a dar essa garantia à Caixa e não ao BdP,
dado que é uma declaração do mutuário (devedor) a favor do banco, que consta
habitualmente nos contratos de mútuo (empréstimo). E nada tem a ver com a
utilização dessa conta corrente para ultrapassar os 5% do BCP, decisão que,
essa sim, dependia de o BdP não considerar desadequado financeiramente comprar
uma participação qualificada apenas com recursos alheios.
Estes são os factos: a 19 de Junho de 2007, Berardo dirige-se
directamente ao Conselho de Administração chefiado por Vítor Constâncio a pedir
para aumentar a presença no BCP e, nos termos do Aviso número 3/94 do BdP,
anexa documento. No qual começa por referir que a FJB tinha, na altura, três
contratos de crédito celebrados com o BCP, a saber: “conta-corrente caucionada
para aquisição de acções em bolsa de até 350 milhões de euros. Utilizada quanto
a 15,7 milhões à data de 21 de Junho de 2007; linha para aquisição de
computadores de 1.700.000 euros, utilizada quanto a 300 mil euros [linha
garantida pelo Governo Regional da Madeira]; linha de apoio à tesouraria da
Fundação no montante de 41.250.000 euros. Utilizada quanto a 41,1 milhões à
data de 21 de Junho de 2007”.
A FJB comunica mesmo ao CA do BdP que “nenhuma dessas linhas
do BCP se encontra utilizada com o fim de adquirir acções BCP, nem o será para
as projectadas novas aquisições”.
Segue-se outra explicação, constante da terceira página do
documento: “A aquisição das acções [BCP] será feita com recursos próprios e
linha de crédito aberta junto da Caixa Geral de Depósitos.”
Reviravolta nos meios próprios
A 18 de Julho, oito dias antes de Berardo ir ao BdP, o
departamento de supervisão prudencial do supervisor pede que lhe sejam enviados
os detalhes das fontes de financiamento para compra das acções com “cópia das
condições contratuais da linha de crédito” aberta junto da Caixa. E aqui ocorre
uma reviravolta.
Na missiva de resposta, a 7 de Agosto de 2007, Berardo
comunica que o investimento no BCP será sustentado em crédito da CGD, sem
mencionar agora a mobilização de meios próprios. Relata que “a aquisição das
acções será feita com recurso a fundos disponibilizados pela CGD, através de
contrato de abertura de crédito em conta corrente, celebrado a 28 de Maio de
2007, até ao montante de 350 milhões de euros pelo prazo de cinco anos.” E
avança, no contrato, que propõe entregar como colateral acções cotadas, que são
títulos sujeitos às variações de mercado. E é aqui que a operação financeira
subjacente ao reforço accionista se tornou de risco, tendo em conta o sinal de
que Berardo não dispunha de recursos próprios para fazer face ao serviço da
dívida.
A 21 de Agosto, o CA do BdP - sem a presença do governador,
que se fez substituir por um dos vice-governadores José Matos (que em 2012
seria nomeado presidente da CGD) - decide não se opor ao reforço da posição
qualificada de Berardo no BCP. Como juridicamente o CA do BdP é um órgão
colegial, os gestores presentes e ausentes são solidários entre si. Teria sido
diferente se Vítor Constâncio requeresse escusa, o que poderia fazer em
situação de conflito de interesses, mas não foi o caso. Como sempre acontece,
todos os gestores, incluindo os ausentes, acedem às matérias que vão ser
abordadas em CA. E os que não estão presentes podem pronunciar-se ou por
escrito, ou na primeira reunião a seguir em que participam.
Dali a uma semana, o CA do BdP de 28 de Agosto já conta com
a participação de Constâncio. É nessa reunião que os administradores que
decidiram pela “não oposição” à subida da presença da FJB no BCP, sustentada
numa conta corrente de 350 milhões na Caixa, assinam a acta de 21 de Agosto. E
na altura, de acordo com a acta do conselho de 28 de Agosto, Constâncio não
colocou qualquer entrave ao dossiê Berardo. Questionado pelo PÚBLICO sobre esta
posição, Constâncio não esclareceu em tempo útil.
Este é o ponto sensível. E sublinhado já publicamente por
alguns juristas, como António Lobo Xavier, que disse na TVI que “ao saber como
Berardo se ia financiar, o BdP concordou com a operação e autorizou-a
indirectamente. Podia ter-se oposto e não se opôs”. Ou Marques Mendes, que na
SIC sublinhou que, sabendo que a operação era “especulativa, então porque aprovou
que Berardo entrasse naquelas condições? Podia ter dito não”. Posições que
coincidem em considerar que Berardo não tinha condições financeiras para ser um
grande accionista qualificado do maior banco privado português. Isto porque
investiu 100% alavancado na Caixa, sem mostrar músculo para mobilizar recursos
próprios caso fosse chamado a injectar capital no BCP. Ou seja: estava em causa
uma posição qualificada sustentada numa estrutura financeira especulativa. Para
além disso, entendem que o supervisor devia ter chamado à razão a Caixa, pelo
excesso de exposição ao risco Berardo e BCP. Acresce que, no limite, ao
permitir aos accionistas comprarem posições em bancos financiados pelos outros
bancos, o BdP estava criar um problema de capital ao sistema.
É neste contexto que, aliás, ganha relevância o Artigo 118.º
do RGICSF, o conjunto de regras que
enquadra legalmente o sector financeiro. No ponto 1 é dito que “se as condições
em que decorre a actividade de uma instituição de crédito não respeitarem as
regras de uma gestão sã e prudente, o Banco de Portugal pode notificá-la para,
no prazo que lhe fixar, tomar as providências necessárias para restabelecer ou
reforçar o equilíbrio financeiro, ou corrigir os métodos de gestão”. E, mais
especificamente para o caso Berardo, o ponto 2 sublinha que “sempre que tiver
conhecimento do projecto de uma operação por uma instituição de crédito que, no
seu entender, seja susceptível de implicar a violação ou o agravamento da
violação de regras prudenciais aplicáveis ou infringir as regras de uma gestão
sã e prudente, o Banco de Portugal pode notificar essa instituição para se
abster de realizar tal operação”.
A guerra accionista
Constâncio disse ainda, no Parlamento, que apenas tomou
conhecimento de que na CGD havia uma prática de dar crédito para os clientes
investirem na bolsa, com entrega dos títulos especulativos, no final de 2008,
após a crise. Mas a 4 de Janeiro de 2008, o PÚBLICO noticiava já o seguinte:
“Berardo, Moniz da Maia (Sogema), Manuel Fino, Pedro Teixeira Duarte e José
Goes Ferreira receberam crédito da CGD” de 500 milhões para comprarem acções do
BCP, o que lhes tem permitido ter uma palavra a dizer nos destinos da
instituição”. E deram em garantia as acções especulativas.
De acordo com o que esclareceram Faria de Oliveira e Jorge
Tomé ao PÚBLICO, foi só no final de 2009 que o BdP enviou inspectores para a
Caixa para avaliar as posições de risco de clientes como Berardo. Aliás, o
conselho fiscal da CGD inclui nas contas de 2007 que, no final desse ano, a Caixa
já tinha uma exposição de 4,6 mil milhões de euros a clientes com crédito para
investir na bolsa.
Na entrevista ao DN/TSF, Constâncio explica que “o BdP, se
tivesse na altura qualquer razão legal para não reconhecer a idoneidade do
requerente, [e] não tivesse autorizado a participação qualificada, o contrato
continuava válido, a Fundação Berardo podia usar o crédito que estava já
comprometido pela Caixa desde Maio, podia comprar acções do BCP acima dos 5% e
o que aconteceria, no máximo, é que, o Banco de Portugal nessa altura inibiria
os direitos de voto das acções que fossem acima dos 5%”. Seriam precisamente
esses os direitos de voto, usados na sua plenitude, que viriam mais tarde a
revelar-se decisivos, quando Berardo teve um papel activo na guerra accionista
que estava em curso no BCP.
É que o encontro de Berardo com Constâncio, a 26 de Julho de
2007, não ocorreu apenas no período entre o pedido para aumentar a presença no
BCP e a decisão de não oposição do supervisor. Aconteceu 10 dias antes de o BCP
reunir, no Porto, os accionistas na assembleia-geral de 6 de Agosto, convocada
pelo núcleo que tinha Berardo por protagonista. E cujo objectivo era destituir
parte dos administradores alinhados com o antigo presidente Jorge Jardim
Gonçalves.
Foi no seguimento destas movimentações que Berardo voltou ao
BdP a 13 de Novembro de 2007 para falar com o governador e o director de
supervisão bancária Silva Ferreira. E terá sido nessa altura que entregou
documentos sobre as 21 offshores criadas pelo BCP, entre 2000 e 2002, para a
compra de acções próprias (o que acabou em multas e inibições a vários membros
da equipa de Jardim Gonçalves, um deles, Filipe Pinhal). No dia 21 de Dezembro
de 2008, Berardo apareceu no BdP com os demais accionistas portugueses
detentores de mais de 2% do capital. O grupo foi recebido pelo Conselho de
Administração do BdP. À RTP3, Constâncio disse que não havia actas destes
encontros. A 15 de Janeiro de 2008, os accionistas do BCP nomeiam Carlos Santos
Ferreira, presidente, e Armando Vara, vice-presidente.
A idoneidade da Fundação
Vítor Constâncio procurou garantir, nas suas várias
intervenções mediáticas deste fim-de-semana, que “a Fundação Berardo tinha um
histórico de solidez financeira” e de” idoneidade”. E, portanto, não havia
motivo para o BdP questionar o seu investimento no BCP. Fê-lo sem referir o
episódio da Lavagem do Cupão onde a Fundação José Berardo (FJB) esteve
envolvida e chegou a ser visada pela justiça portuguesa.
Em causa estava um processo fiscal. Para evitarem a
tributação sobre rendimentos de obrigações, algumas instituições vendiam
obrigações, no final do exercício ou vencimento do prazo, a entidades isentas
de IRC, para as voltar a comprar pouco tempo depois. E foi no que esteve
envolvida a FJB, registada como sendo uma instituição de solidariedade social,
tendo como finalidade fins criativos, educativos, artísticos e científicos.
Depois de ter sido alvo de fiscalização tributária, da 1º Repartição de
Finanças do Funchal, que apurou que a FJB reteve impostos que devia ter
entregue ao Estado, a 7 de Outubro de 1993, a instituição foi notificada para
devolver 1,069 milhões de contos ao Tesouro, ou seja, 5,3 milhões de euros.
A FJB contestou e, em 2003, uma ordem superior anulou a
liquidação adicional de impostos que lhe era pedida, depois de as Finanças não
terem interposto recurso. A decisão foi polémica como provam as notícias que
foram sendo publicadas pela comunicação social, uma vez que o Estado perdeu 5,3
milhões de euros.
Nessa altura, o PÚBLICO avançava que o chefe da repartição
das Finanças do Funchal era o presidente do clube de futebol da Madeira, o Marítimo,
cujo presidente da AG era José Berardo, que dali a quatro anos ia procurar
junto do BdP ser um dos maiores accionistas individuais do maior banco privado
português.
Manuel Carvalho
EDITORIAL
Vítor Constâncio no país onde ninguém tem culpa
18 de Junho de 2019, 6:15
Vítor Constâncio anda incansável a reagir às notícias do
PÚBLICO que o associaram aos empréstimos ruinosos da Caixa Geral de Depósitos
(CGD). Juntando promessas de processos judiciais a acusações de calúnias,
mentiras, efabulações e confusões, o ex-governador do Banco de Portugal (BdP)
tenta reescrever a história. Está no seu legítimo direito de salvaguardar a sua
versão dos acontecimentos – foi, aliás, nesse pressuposto, garantido por lei,
que lhe concedemos, a 13 de Junho, duas páginas, com ampla chamada na capa da
edição impressa. Mas, ao defender a sua narrativa através da combinação de
formalismos legais que o impediram de travar o negócio ruinoso e um ataque à
credibilidade do PÚBLICO, Constâncio tenta instalar junto dos leitores e da
opinião pública em geral a ideia de que tudo não passa de uma invenção. Que
ele, na qualidade de governador do BdP no período crítico dos empréstimos, não
teve nada a ver com o problema. Que nada podia ter feito para travar o devaneio
que, em 2007, tomou de assalto a banca.
É, por isso, importante fazer baixar a poeira e regressar ao
essencial. E o essencial tem por base uma pergunta: afinal, que
responsabilidade teve Vítor Constâncio na concessão de parte dos empréstimos da
Caixa que geraram ao país um prejuízo na ordem dos mil milhões de euros?
Quando a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) aos
empréstimos ruinosos da CGD chamou o actual governador do Banco de Portugal,
Carlos Costa, e o seu antecessor, Vítor Constâncio, para deporem, tinha uma
preocupação essencial: perceber como é que esses empréstimos puderam ser feitos
sem que a instância que regula e supervisiona os bancos nada tivesse notado nem
nada tivesse feito para os evitar ou anular.
Quando chegou a sua vez, Vítor Constâncio divagou sobre
falhas (“Não foi só em Portugal, mas em todos os países europeus”, disse), mas
assumiu na pose e nas palavras uma única e principal preocupação: a de se
eximir a toda e qualquer responsabilidade. Falando sobre empréstimos como o da
Caixa, que concedeu 350 milhões a Berardo para adquirir uma participação
qualificada no BCP sem apresentar garantias reais de pagamento, disse: “Claro
que [o BdP] só tem conhecimento delas [operações de crédito] depois” de os
bancos as efectivarem. E, para que não sobrassem dúvidas, sublinhou: “Como é
óbvio! É natural! Essa ideia de que [o BdP as] pode conhecer antes é
impossível!” Mais tarde, já fora da CPI, insistiu: “O Banco de Portugal (BdP)
não tem competência para ter conhecimento de operações de crédito antes de
serem decididas pelos bancos, nem muito menos competência para as mandar
anular.” Disse mais: que só conheceu a operação de financiamento da Caixa a
Berardo quando “já estava fechada há meses”.
A investigação do PÚBLICO partiu deste pressuposto. O de
verificar se Vítor Constâncio sabia ou não do empréstimo. E, caso tivesse
conhecimento, saber se fez o que estava ao seu alcance para o evitar.
A zona cinzenta entre a lei e o formalismo
Direito de resposta: “Constâncio omitiu ao Parlamento que
autorizou Berardo a levantar 350 milhões da CGD”, publicado a 7 de Junho
Comecemos pelo princípio: Constâncio sabia ou não sabia do empréstimo?
Vamos pegar nas suas palavras e admitir que só soube depois de a Caixa o
efectivar, a 29 de Maio de 2007. Mas, para podermos encontrar uma resposta
completa, convém ter em conta duas características do empréstimo. Primeira:
esse empréstimo foi feito com uma finalidade concreta, a de dar ao empresário
meios para comprar uma posição qualificada no BCP; segunda: para que essa
compra pudesse avançar, ou, por outras palavras, para o dinheiro sair da Caixa
para Berardo, o Banco de Portugal tinha de lhe conceder a devida autorização.
Sem essa autorização, lembra Constâncio, Berardo poderia comprar acções sem os
correspondentes direitos de voto, é certo. Mas, para lá de perderem valor, para
que quereria Berardo uma participação qualificada que não lhe dava poder algum
no BCP?
Há mais: se é verdade que o BdP não tinha poder para evitar
a celebração do contrato, é discutível que não tivesse meios para o travar
depois de ter sido assinado, tal como vários juristas, entre os quais António
Lobo Xavier, vieram recordar. Mal soube do contrato entre a Caixa e Berardo, o
BdP poderia ter evocado o número 2 do artigo 118 do Regime Geral das
Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, que manda ao BdP “notificar”
bancos onde seja detectada uma operação susceptível “de implicar a violação ou
o agravamento da violação de regras prudenciais aplicáveis ou infringir as
regras de uma gestão sã e prudente”. O poder que a lei dá ao BdP, ao
permitir-lhe esta notificação, tem uma finalidade em concreto: fazer com que os
bancos se “abstenham de realizar tal operação” duvidosa. Este artigo,
recorde-se, foi redigido em 2002.
Ora, todos os procedimentos posteriores indiciam que havia
bastas razões para se suspeitar de que o crédito da Caixa não cumpria nem
“regras prudenciais” nem as “regras de uma gestão sã”. É por isso necessário
descer ao nível do “diabo” dos detalhes para se perceber que a observação
destas exigências foi, no mínimo, leviana. Quando Joe Berardo pede autorização
do BdP para assumir uma posição qualificada superior a 5% e inferior a 10% no
capital do BCP (e inerentes direitos de voto) com dinheiro da Caixa, o regulador
não se sente em condições de responder e pede mais informação. A 19 de Junho de
2007, pede: “[Que] nos habilitem com uma descrição detalhada das fontes e forma
de financiamento da aquisição em apreço”, nomeadamente a “cópia das condições
contratuais da linha de crédito aberta na CGD”. É então que Berardo abre o
jogo, respondendo que em causa estava uma conta-corrente no valor de 350
milhões de euros aberta na CGD a 28 de Maio. Num primeiro momento, diz que
entrará também com bens pessoais; numa segunda missiva, essa referência
desapareceu.
Esta troca de correspondência prova que o BdP governado por
Constâncio sabia que Berardo iria comprar parte do BCP com um empréstimo da
Caixa. Não o soube antes de ser aprovado, nem podia, mas soube-o ainda antes de
o empréstimo ser aplicado na aquisição de acções. E prova também que Vítor
Constâncio e a sua equipa sabiam, ou tinham condições de saber, que essa
concessão de crédito tinha garantias duvidosas. Com base nesta informação,
poderiam ter travado a operação da compra de acções do BCP. Meios não lhe
faltavam para o conseguir – quanto mais não seja, o poder de influência.
Vítor Constâncio e a sua equipa poderiam ter perguntado que
capitais próprios Joe Berardo iria aplicar, depois de perceberem que o
empresário contaria apenas com o apoio da Caixa, sem ter de arriscar um
centavo. Poderiam ter questionado que garantias iria dar, para lá do penhor das
acções, um bem por natureza volátil e cheio de riscos. Poderiam ter indagado
que músculo financeiro teria o novo accionista de referência do BCP para acudir
a eventuais aumentos de capital ou a qualquer contingência no futuro. Poderiam
ter associado o pedido aos alertas que o auditor da Caixa Geral de Depósitos,
Manuel de Oliveira Rego, fez repetidamente ao Governo e ao BdP sobre os
problemas na gestão da CGD. Poderiam ter acentuado o óbvio, notando que só num
país de loucos um banco empresta dinheiro a alguém para comprar acções,
recebendo como garantia exclusiva essas mesmas acções. Não o fez. Meia dúzia de
cartas para lá e para cá bastaram para que o BdP desse aval ao negócio.
Constâncio tentou nas suas mais recentes explicações à
imprensa dizer que, no contrato de Berardo com a Caixa, estava em aberto a
possibilidade de o empresário poder comprar outros títulos do PSI-20. No
contrato podia estar, mas na correspondência para o BdP ficou claro e
inequívoco que o alvo do empresário era um e só um: o BCP. Não colhe, por isso,
esse detalhe contratual. Uma vez mais, Constâncio confunde a formalidade com a
realidade que se lhe impôs. Uma realidade, repita-se, que nem sequer foi
construída sob qualquer tipo de camuflagem. Berardo disse ao que ia, sem equívocos
nem segredos, nas cartas que enviou à instituição que Constâncio governava.
Se é verdade que, como diz o ex-governador, “o BdP não
aprova créditos decididos pela gestão comercial dos bancos”, já não é verdade
que, no caso, o regulador não tivesse meios para os “impedir de vigorar depois
de terem sido celebrados entre as partes e nos termos que tenham sido acordados
entre elas”. Vítor Constâncio poderia ter invocado o regime das sociedades
financeiras para “notificar” a Caixa, exigindo prudência e uma gestão sã, e não
o fez; e poderia ter travado a ambição de Berardo no BCP, recusando o seu
pedido e, acto contínuo, anulando a exclusiva finalidade da linha de crédito
negociada na CGD, nesse tempo gerida pela dupla Carlos Santos Ferreira/Armando
Vara. E não o fez.
A omissão negligente do Banco de Portugal presidido por
Constâncio pode não ser um crime; mas, numa altura em que o país tenta a todo o
custo afastar os fantasmas desse passado venal que ainda hoje pagamos, Vítor
Constâncio não se pode eximir das suas responsabilidades. Ele não fez o que
deveria ter feito e não pode dizer que não podia fazer nada. Podia, e devia,
ter feito mais. Se nada fez por incompetência, negligência ou dolo, não
sabemos. Só não podemos aceitar que, depois da investigação do PÚBLICO, ele
possa continuar a dizer que não teve nada a ver com esses dias de vergonha, em
que uma elite espúria tentou tomar de assalto o sistema financeiro.
Mesmo que as operações desta complexidade sejam império de
formalismos legais e de pormenores regulatórios, mesmo que o Banco de Portugal
gerido por Vítor Constâncio não fosse comprovadamente a origem desse negócio
ruinoso para o país e para os portugueses, ele foi, no mínimo, cúmplice da sua
consumação. Porque os homens contam nas condições em que decidem, Constâncio
poderia ter previsto que aquele negócio tinha todas as feições da trapaça.
Bastava ouvir o ruído, ler os indícios, notar a turbulência em torno do BCP e
consultar os auditores da Caixa para dar conta de que a operação era arriscada.
Não era preciso ser presciente para a parar; bastava ser corajoso.
Confusões, calúnias e mentiras
Compreende-se que, face aos documentos e respectivo
encadeamento revelados pelo PÚBLICO, Vítor Constâncio tente salvar a aura da
sua longa carreira. Compreende-se e aceita-se. Mas não é através de ataques aos
mensageiros que apaga a mensagem e salva a sua reputação profissional. Mesmo
que lhe seja fácil suscitar e atribuir ao PÚBLICO a “confusão” entre o aval à
compra de acções e o empréstimo da Caixa para a financiar, o que sobra na
investigação do jornal é um evidente nexo de causalidade entre ambas. Se o BdP
de Constâncio travasse a descabelada aventura de Berardo no BCP, teria travado
o empréstimo. E sairia desta história com a aura de herói; não o fez e não pode
ambicionar para si o estatuto de vítima.
Caímos então nas calúnias das quais se diz alvo. Não é a
probidade nem honestidade material de Vítor Constâncio que está em causa. No
PÚBLICO, não julgamos o carácter dos homens públicos, a não ser que haja razões
objectivas nos seus actos que o obriguem. Não é o caso. Nem é o caso de uma
denúncia ad hominem. O que nos compete é escrutinar as suas decisões ou
omissões e, sem reservas, torná-las acessíveis à avaliação e julgamento dos
cidadãos. Por isso não colhe essa tentativa de justificar as suas decisões e
omissões com a ausência da reunião que aprovou a compra de uma participação
qualificada no BCP, dizendo: “Não apreciei a respectiva documentação nem
deliberei sobre ela”. Ou recordar que a sua principal função era viajar
quinzenalmente para Frankfurt para cumprir a sua “principal função”, que “foi a
participação na definição da política monetária europeia como membro do
conselho de governadores do Banco Central Europeu”. Essas funções no quadro de
um órgão colegial não o eximem de responsabilidades. Um governador, um líder de
uma equipa, é sempre o principal responsável pelas suas decisões.
Finalmente, a mentira que nos aponta. Apesar de erros dos
quais já nos penitenciámos (escrever que Constâncio era o responsável da
supervisão no BCE ou não ter dado conta das diligências que fizemos para ouvir
a sua versão – e, já agora, na pouca insistência com que o fizemos), recusamos
a acusação. Todos os factos que noticiámos tiveram por base documentos. Todas
as correlações entre eles que fizemos resultam da nossa liberdade crítica e do
direito de informar. E todas as conclusões a que chegámos se inscrevem na
obrigação de um jornal responsável, que não pode ficar calado quando um ex-alto
responsável vai ao Parlamento dizer que não teve nada a ver com um negócio
ruinoso que, na verdade, poderia ter travado. Essa é a natureza do jornalismo
do PÚBLICO e não serão processos judiciais a alterá-la.
Berardo admite chamar Constâncio como testemunha contra os
bancos
O investidor está a estudar a possibilidade de chamar Vítor
Constâncio como testemunha a seu favor, contra os bancos que estão em tribunal
a tentar recuperar as dívidas de mil milhões. O ex-governador tem vindo a
sublinhar que os ex-gestores da Caixa “deviam ter tomado decisões” sobre as
garantias, uma ideia que o próprio Berardo já defendeu.
Cristina Ferreira
Cristina Ferreira 17 de Junho de 2019, 19:16
José Berardo admite chamar o ex-governador do Banco de
Portugal como testemunha no processo que a banca lhe moveu para recuperar 962
milhões de euros, disse ao PÚBLICO fonte oficial da Fundação José Berardo.
Em causa está o facto de o ex-governador, que liderou o BdP
entre 2000 e 2010, ter vindo defender que a Caixa “deveria ter tomado decisões
antes de as acções terem começado a descer”, e “isso não aconteceu”.
Sexta-feira passada, em entrevista ao programa 360º da RTP3, Constâncio, quando
lhe perguntaram por que razão a Caixa não o fez, disse: “Não sei, não posso
responder porque essas decisões são da exclusiva responsabilidade dos órgãos de
gestão da Caixa, como é evidente.”
Já na entrevista do fim-de-semana ao DN/TSF, o ex-governador
reforçou a ideia: “Em qualquer momento, a Caixa podia travar o empréstimo,
apropriar-se das acções que estavam em penhor e vendê-las”, voltando a repetir,
quando questionado sobre as razões de os gestores do banco não o terem feito,
que não podia responder, porque “essas decisões são da exclusiva
responsabilidade dos órgãos de gestão da Caixa, como é evidente”.
A mesma tese foi apresentada em Maio, pelo próprio José
Berardo, na CPI à recapitalização da Caixa quando, para se desresponsabilizar
de não ter pago as dívidas, observou que se o banco público perdeu dinheiro,
foi porque não executou as acções do BCP, quando começaram a cair. A declaração
levou, na mesma CPI, Jorge Tomé, ex-administrador da Caixa, a contrapor: “O que
Berardo aqui disse foi tudo conversa, o mutuário não queria vender acções
nenhumas.”
Ao PÚBLICO, conforme notícia desta segunda-feira, Jorge Tomé
comentou a opinião de Vítor Constâncio, a defender que a Caixa deveria ter
executado os títulos BCP, deste modo: “Como é possível a um ex-governador do
BdP vir dizer que o problema é do credor, e não é do mutuário?”. Este
fim-de-semana, vários órgãos de comunicação fizeram eco da posição do ex-governador,
de remeter responsabilidades para a Caixa.
José Berardo reagiu, em nota enviada ao PÚBLICO, às
declarações recentes de Constâncio, admitindo “seriamente arrolar como
testemunha o drº Vítor Constâncio, o ex-Governador do BdP”, no processo judicial
que os credores lhe moveram. Não apenas Constâncio, mas também outras
“personalidades com responsabilidades nos diversos eventos ocorridos em 2007”.
A 20 de Abril, a CGD, BCP e o Novo Banco, meterem uma acção
contra Berardo a reclamar o pagamento de dívidas de 962 milhões de euros.
A Caixa chegou a deter 185 milhões de acções do BCP
entregues por Berardo como colateral do empréstimo de 350 milhões de euros que
recebeu em 2007 para financiar o aumento da posição qualificado no BCP de 3,88%
para 7,7%.
Depois de em 26 Junho de 2007, a cotação do BCP ter atingido
o pico máximo de 4,3 euros, no final de ano a carteira de títulos do BCP, na
posse da CGD, iniciou um ciclo contínuo de desvalorização. A 16 de Janeiro de
2008, a cotação do BCP estava a 1,86 euros, abaixo de 1,87 euros, o patamar
calculado pelos serviços para a cobertura de 100% da dívida (nível contratualizado
de 1,94 euros).
tp.ocilbup@arierrefc
Vítor Constâncio: "O Público falhou - e será
processado"
Num artigo de opinião, Vítor Constâncio responde na primeira
pessoa ao que considera as calúnias do jornal Público - num texto que era
originalmente um direito de resposta aquele jornal.
Vítor Constâcio *
18 Junho 2019 — 07:44
https://www.dn.pt/poder/interior/vitor-constancio-o-publico-falhou---e-sera-processado-11020411.html
INQUÉRITO PARLAMENTAR
Assis recusa "linchamento moral": "Constâncio
é um homem sério"
Quero começar por sublinhar muito fortemente que este texto
não faz um juízo de valor sobre a operação de crédito referida nos artigos do
PÚBLICO, mas sim sobre a interpretação abusiva que dela fez este jornal e,
acima de tudo, sobre a forma como usou essa interpretação para montar um
conjunto de calúnias contra mim. Dito de outro modo, o que está em causa neste
texto é muito mais o que o PÚBLICO noticiou e como noticiou do que a matéria
sobre a qual noticiou.
"O que o PÚBLICO noticiou foi que o pedido do
investidor [Fundação Berardo] ao Banco de Portugal (BdP) tinha subjacente uma
operação de crédito polémica, cuja execução estava contratualmente condicionada
ao parecer positivo do supervisor". Assim resumiu o próprio PÚBLICO, numa
"Nota da Direção" de dia 13 de Junho de 2019, as suas notícias dos
dias 7 e 11. Portanto, a questão é o que diz o PÚBLICO sobre o contrato de
abertura de crédito entre a Caixa Geral de Depósitos (CGD) e a Fundação
Berardo: 1) esse contrato incluiria uma cláusula que o condicionava à aprovação
do BdP, de tal forma que a linha de crédito que ele abria "só podia ser
executada (como, aliás, aconteceu) depois de o BdP o autorizar"; 2) o
mesmo contrato seria "polémico" porque careceria de garantias
patrimoniais ou, segundo a formulação do PÚBLICO, não previa mais do que
"uma promessa de penhora [sic] de títulos especulativos [sic]".
Contudo, é extraordinário que isto seja afirmado por um
jornal, e depois repetido à exaustão por terceiros ao longo de mais de uma
semana, sem que, aparentemente, haja pelo menos alguém que tenha lido o
referido contrato e, portanto, sem que se faça a menor ideia do que
efectivamente se declara nele.
Quanto ao ponto 1): o contrato não inclui nenhuma cláusula
que o condicione a uma aprovação posterior do BdP, e o contrato declara até de
forma expressa o contrário: "a assinatura deste contrato e o cumprimento
de todas as obrigações dele decorrentes não necessitam de qualquer autorização,
interna ou externa, que não tenha sido devidamente obtida". Ou seja, uma
vez assinado o contrato, a sua validade e eficácia não estão dependentes de
quaisquer autorizações ulteriores, e é um facto (aliás, não contestado pelo
PÚBLICO) que o contrato foi assinado antes do ser enviado para o BdP o pedido de
participação qualificada no capital do BCP. Por ser assim, é também um facto
que todas as notícias do PÚBLICO sobre este assunto, ao assentarem na pretensa
existência da referida cláusula, são falsas.
No que respeita ao ponto 2), o contrato estabelece várias garantias
que não são referidas pelo PÚBLICO: obriga a Fundação a "constituir o
penhor sobre os valores mobiliários adquiridos com os fundos disponibilizados
através do presente financiamento, na data da sua aquisição" (coisa muito
diferente de uma "promessa de penhora"); o direito de a todo o
momento executar o penhor das acções no caso de o respectivo valor descer
abaixo do dinheiro em dívida; um "Rácio de Cobertura de Dívida igual ou
superior a 105%"; e um "Rácio de Autonomia Financeira mínima de
20%" da Fundação que assegure a sua solidez. Não é este o lugar próprio
para explicar o que isto significa, nem para fazer juízos de valor sobre estas
garantias (coisa que, de todo o modo, não competia ao BdP fazer num contexto
legal em que, perante um pedido de participação qualificada, se tratava apenas,
para o BdP, de verificar a origem legal dos fundos).
É preciso sublinhar também que nada no contrato isenta a
Fundação Berardo de responder pelo cumprimento do contrato com todo o seu
património. Neste sentido, todo o património da Fundação constitui uma garantia
- todo.
Por fim, também não deixa de ser importante dizer que o
contrato abre uma linha de crédito que permite comprar acções não só do BCP,
mas também de outras grandes empresas portuguesas (PT, EDP, Brisa, BPI, Sonae
etc). Também neste ponto, como nos dois primeiros, o contrato diz o contrário
do que foi "noticiado" pelo PÚBLICO e repetido ad nauseam por
terceiros. Frequentemente, e em particular no caso das notícias do PÚBLICO,
isso foi feito em termos que causavam grave prejuízo ao meu bom nome e imagem
pública, embora fosse falso e embora não houvesse qualquer relação entre o meu
exercício do cargo de Governador e a assinatura do contrato em questão.
Em suma: os factos são, em todos os pontos, o exacto oposto
do que foi "noticiado", logo tudo o que foi dito sobre mim neste
quadro é também falso.
Outro ponto decisivo
O PÚBLICO afirmou que o conteúdo que atribuiu falsamente
àquele contrato constava "da documentação a que o PÚBLICO teve
acesso" (edição de 7 de Junho), e que portanto tudo o que noticiou foi
escrito "com base em documentos" ("Nota da Direção de 13 de
Junho). Foi por isso que o PÚBLICO achou por bem dar à notícia de 11 de Junho o
seguinte título: "Constâncio tinha os dados todos para travar Berardo no
BCP".
Dado que tenho neste momento o contrato comigo (depois de,
na qualidade de ex-Governador, o ter obtido da parte do BdP), sei o que ele
diz. O que não sei é como não concluir do que vimos acima sobre a diferença
entre o contrato e o que o PÚBLICO disse sobre o contrato que os jornalistas do
PÚBLICO fingiram conhecer um documento que não conheciam e efabularam sobre o
seu conteúdo de forma a poderem dar a outros documentos que conheciam (e que
divulgaram) uma interpretação que fazia deles uma pretensa prova da minha
suposta responsabilidade no processo de concessão e gestão de uma operação de
crédito da CGD. Mas, repito, tudo que se "noticiou" sobre a abertura
desse crédito era, afinal, falso, e eu nada tive que ver seja com a aprovação
desse crédito seja com a sua gestão, que são da exclusiva responsabilidade da
CGD, não ao BdP - como sempre afirmei e reafirmo.
Tanto quanto julgo saber, os que repetiram as
"notícias" do PÚBLICO nunca o fizerem dizendo que tinham lido o
contrato. Limitaram-se a fazer fé no PÚBLICO e na interpretação dada pelo
PÚBLICO aos documentos que divulgou (e que eram uma troca de correspondência
entre a Fundação Berardo e o BdP). Julgo que deviam ter perguntado pelo
documento-chave, mas não foram tão longe quanto o PÚBLICO nem foram eles a
origem das calúnias. Nesta história, uns confiaram demais no nome do PÚBLICO,
outros abusaram do nome do PÚBLICO. Talvez se possa mesmo dizer que uns
confiaram no jornalismo, outros abusaram dessa confiança.
A calúnia da aprovação do crédito
O artigo de 11 de Junho repete as três calúnias do artigo de
7 de Junho, mas aduz novos aspectos. A primeira, a calúnia da aprovação do
crédito, começou a ser rebatida no meu texto de dia 13 e foi, de novo, rebatido
acima, mas agora já com base no conhecimento do contrato de crédito (que o BdP
só pôde facultar-me no dia 13, depois de publicado o meu primeiro texto). Nada
do que o PÚBLICO escreveu pode ser confundido com um pedido de aprovação de uma
operação de crédito, a Fundação Berardo pediu apenas a não oposição à aquisição
do estatuto de accionista com participação qualificada entre 5% e 10%, uma
eventual oposição do BdP não impedia a Fundação Berardo de adquirir mais de 5%
do capital do BCP - quando muito impedia-a de ter mais de 4,99% dos votos em
AG. Dou isto por estabelecido (porque está): o BdP não aprova créditos.
O aspecto novo na notícia de 11 de Junho é um conjunto de
efabulações sobre o que eu teria sabido antes da Reunião do Conselho de
Administração do BdP de 21 de Agosto de 2007. A necessidade de publicar estas
efabulações resultou do facto de, no dia 8 de Junho de 2019, eu ter recebido do
BdP a Acta daquela Reunião e de ter tornado público que ela revelava que eu não
estive presente nessa Reunião. Este facto foi importante porque a notícia
inicial do PÚBLICO fazia crer que eu pessoalmente e enquanto Governador teria
aprovado o crédito da Caixa à fundação (ou até "autorizado Berardo a ir
levantar 350 milhões de euros"). Na notícia do dia 11, o PÚBLICO afirma
que, embora seja verdade que não estive presente nessa reunião, mesmo assim
"[tive] acesso ainda no Verão de 2007 ao documento com informação completa
sobre o pedido de José Berardo".
Ora, isto também não corresponde à verdade. Tive apenas
conhecimento de que havia um pedido de participação qualificada, mas, dado que
não despachava com os serviços da supervisão (por não ter esse pelouro, como já
várias vezes referi), e dado que a análise que os serviços fizeram dos
documentos em causa só foi concluída já muito perto da Reunião do Conselho de
Administração, não tive conhecimento deles.
A calúnia da mentira no Parlamento
A notícia do PÚBLICO de 11 de Junho gira, em parte, em torno
deste tema: se menti, se omiti, se disse apenas que me esqueci, se disse
primeiro uma coisa, depois outra etc. Não vale a pena perder mais tempo com
este assunto. Só há aqui três pontos que considero importantes: 1) na CPI nada
me foi perguntado a respeito do pedido de não-oposição à participação
qualificada; 2) na CPI, disse várias vezes que tinha tido conhecimento (a
posteriori) do crédito concedido a essa fundação (o que é diferente de ter
apreciado e deliberado sobre os documentos referidos pelo PÚBLICO); 3) a
calúnia inicial do PÚBLICO era a de que, ao dizer na CPI que o BdP não aprova
créditos, eu teria mentido porque a não-oposição ao pedido da fundação seria
sinónimo de uma aprovação de crédito.
A calúnia da interferência no BCP
Sobre esta terceira calúnia, o artigo de dia 11 não diz nada
de novo. Mas não a retira ou desfaz. O que tenho a dizer sobre ela ficou dito
na minha resposta de dia 13.
As falhas deontológicas do PÚBLICO
Quer no que respeita à notícia de dia 7, quer no que
respeita à de dia 11, o PÚBLICO nunca me contactou (nem ao BdP) para ouvir o
contraditório. Na "Nota da Direção" de dia 13, declara que tentou
contactar-me ligando para um número com a terminação 7809, mas "o telefone
tocava, mas a chamada caía". Contudo, não reconheço essa terminação em
nenhum dos números de telefone que tenho ou já tive, e a primeira jornalista
que me contactou depois de sair a notícia de dia 7 foi uma jornalista da RTP,
que usou um método muito simples: enviou-me uma Mensagem Directa pelo Twitter.
Não sou difícil de contactar por jornalistas.
Segundo me reportaram, no dia 7 de Junho o PÚBLICO publicou
online um vídeo em que usava imagens minhas, na CPI, a dizer que não me
lembrava de uma carta que me teria sido enviada em 2002 como se me estivesse a
reportar, não a essa carta, mas sim a um contrato de crédito celebrado entre a
CGD e a Fundação Berardo em 2007. Depois de eu ter denunciado semelhante
manipulação na minha entrevista à RTP no dia 7 de Junho, o vídeo foi desactivado
pelo PÚBLICO sem que tenha sido dada qualquer explicação para tal - e continua
desactivado à hora em que escrevo:
https://www.publico.pt/2019/06/07/video/declaracoes-vitor-constancio-cgd-berardo-parlamento-20190607-113918
Para não fazer um outro texto dedicado apenas à "Nota
da Direção" e à publicação do meu direito de resposta no dia 13,
acrescento de forma muito sucinta os seguintes pontos: 1) essa Nota não se
limitava a ser uma réplica factual ao meu artigo (como a lei exige) e tinha, em
vez disso, a forma de uma resposta argumentativa; 2) o seu principal argumento
era o de que o meu texto usava uma linguagem técnica ao passo que o artigo do
PÚBLICO usava uma "linguagem jornalística", o que parece querer dizer
que há uma "linguagem jornalística" que se pode permitir ser inexacta
e confundir A com B e B com C e inventar A, B e C; 3) por um lado, a Nota dizia
que o PÚBLICO "não coloca em causa a idoneidade do dr. Vítor
Constâncio" (o que é falso) e que "não há matéria para o fazer"
(o que é verdadeiro), por outro repetia, com novas formulações, as mesmas
calúnias (o que talvez não seja um problema na tal "linguagem
jornalística", mas nas outras linguagens, é); 4) sem justificação, o
PÚBLICO decidiu eliminar o título do meu texto: "Resposta às calúnias do
jornal Público"; 5) na sua edição em papel,não deu ao meu texto o devido
destaque: em vez de o publicar na secção "destaque", nas páginas, 2,
3 e 4, publicou-o da forma comprimida em duas páginas em vez de em três, sendo
essas as páginas 24 e 25 da secção de economia; 6) na edição online, a minha
resposta não teve (de modo algum) o destaque que teve a notícia de dia 7.
Conclusão
Tal como escrevi no meu primeiro texto e agora repito,
"sou contra o levantamento de processos-crime contra jornalistas e órgãos
de comunicação social. Mas há casos em que o processo cível tem de ser
ponderado - salvo se a verdade for reposta". Ora, o que acabo de mostrar é
que o artigo do dia 11 e a Nota do dia 13 não repõem a verdade. O PÚBLICO
parece apostado em tornar-se um jornal que publica calúnias, comete graves
falhas deontológicas, não se retrata quando erra, e não cumpre a lei de
imprensa. É por tudo isto que não vejo outra alternativa senão mover contra o
PÚBLICO, em sede própria, uma acção cível.
*Este texto era o segundo direito de resposta enviado ao
jornal Público, no dia 16 de Junho, que não foi publicado.
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